Segundo produto do levantamento desenvolvido por Felipe Fonseca e Luciana Fleischman sobre arranjos experimentais colaborativos em cultura digital, sob encomenda do Ministério da Cultura do Brasil (Coordenação-Geral de Cultura Digital). O documento pode ser acessado pelos links abaixo, e também está disponível para download no Scribd.
Este documento compõe a segunda de três etapas do estudo sobre modos de produção de cultura digital situados na fronteira entre arte, ciência, tecnologia, ativismo e educação produzido para a Coordenadoria-Geral de Cultura Digital do Ministério da Cultura do Brasil. Reflete um interesse especial nos arranjos coletivos, espaços de articulação e trabalho, bem como metodologias de desenvolvimento de tais modos de produção. Esta segunda etapa se segue a uma primeira na qual foram oferecidos tanto um panorama do contexto simbólico e institucional representados pela herança do discurso de uma cultura digital brasileira como também um retrato de oito experiências no Brasil, América Latina e mundo que se situam no campo dos laboratórios experimentais em rede.
A presente etapa trata de contextualizar de maneira mais qualitativa e nuançada as características particulares de desenvolvimento de alguns dos mais significativos entre os diferentes modelos de laboratórios experimentais observados. São também oferecidas recomendações para a elaboração e implementação de políticas públicas de cultura digital atentas a construções experimentais, orientadas a uma cultura de abertura e do bem comum, e incorporando reflexões sobre inclusão, diversidade e interdisciplinaridade. Para trabalhar estas questões, lançou-se mão de dois tipos de fontes: entrevistas com atores envolvidos com projetos experimentais passados e correntes; e a retomada dos registros do encontro Redelabs realizado em novembro de 2010 – que até então não foram devidamente analisados.
Ao longo desta pesquisa, tem-se utilizado a imagem do laboratório experimental para denominar arranjos institucionais, métodos colaborativos e processos coletivos bastante diversos. Para delimitar o recorte de experiências dentro do quase inesgotável universo de possibilidades na fronteira entre cultura, educação, arte, tecnologia e comunicação, optou-se por dialogar com o histórico de uma série de modos de trabalho interdisciplinares que estiveram ligados de forma íntima ao surgimento da própria ideia de uma cultura digital com características que lhe seriam particulares. Esta busca não se limitou, entretanto, ao senso comum que via de regra aponta o Media Lab do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts, nos Estados Unidos) como modelo ideal de laboratório. Pelo contrário, com base em trabalhos anteriores (FONSECA, 2014) buscou-se dar visibilidade à pluralidade de iniciativas que podem ser identificadas como laboratórios, para então buscar padrões e indicar caminhos possíveis para o desenvolvimento de políticas públicas relevantes para o setor.
Como sugere Pedro Soler, um dos entrevistados desta pesquisa:
“Na América Latina é importante não importar modelos, mas gerar a partir dos próprios contextos locais e as próprias experiências, isso é absolutamente fundamental. Se a gente usar ideia da cultura como bosque, cada vegetação está relacionada a seu contexto, que oferece condições favoráveis e apropriadas. Não faz sentido tentar transplantar um pinho na Amazônia porque não vai vingar. Temos que observar quais são as necessidades e desejos, e como criamos este espaço, estas estufas, espaços protegidos onde a diversidade pode se manifestar.” (SOLER, 2014).
Neste sentido interessam aqui menos os formatos específicos ou modelos de trabalho pontuais adotados por experiências como o MIT Media Lab do que a maneira como estes modelos e formatos respondem a variáveis que são particulares do cenário onde ele nasce. O Media Lab é herdeiro direto de um contexto que remonta às demandas militares dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Foi lá que se modelaram os formatos de colaboração interdisciplinar que resultariam tanto no surgimento da bomba atômica quanto da cibernética enquanto área do conhecimento. O Media Lab surge neste contexto, ligado a uma Universidade de elite estadunidense, bancado com recursos da indústria (e ainda de setores militares), associado de forma íntima a braços midiáticos como a revista Wired e as conferências TED, sempre adotando uma postura explícita de utopismo tecnológico1. Tem uma expectativa intrínseca de geração de conhecimento aplicado formatado como propriedade intelectual (e assim fechado, restrito e disseminado exclusivamente através de mercados).
Não se trata de questionar a legitimidade do internacionalmente reconhecido Media Lab, que é de fato um caso central. É necessário entretanto colocá-lo lado a lado com outras iniciativas de igual ou maior importância dentro do recorte temático com o qual se trabalha neste estudo. O Media Lab do MIT surge fortemente influenciado pela gradual aproximação entre a contracultura hippie estadunidense dos anos sessenta e setenta do século passado, e o capitalismo informacional – em especial na nascente indústria de tecnologias de informação que a partir dos mesmos anos setenta desenvolveu-se exponencialmente. Entretanto, outras narrativas sobre laboratórios interdisciplinares devem também ser levadas em conta. É o caso, por exemplo, de uma vertente que surge na Europa com traços do situacionismo de maio de 1968, bebe da postura punk do faça-você-mesmo na década seguinte e toma corpo nos hacklabs politicamente situados e articulados com o movimento squatter em diversas cidades europeias nos anos oitenta e noventa. Eles criam um campo que, mesmo que por vezes desenvolvam atividades similares àqueles laboratórios institucionais e corporativos, elabora um discurso e um imaginário totalmente diversos (FONSECA, 2014).
Da mistura entre a postura mais contestadora dos hacklabs europeus originais e a disseminação de um imaginário construído como formação de uma cultura digital por todas as camadas da sociedade, outros formatos passaram a fermentar. Os hackerspaces, por exemplo, surgiram a partir dos hacklabs mas ganharam muito terreno depois que grupos de hackers estadunidenses participaram de uma edição da Chaos Computer Conference na Alemanha. No retorno aos Estados Unidos, trataram de implementar seus próprios labs. Estes hackerspaces estadunidenses não poderiam evitar uma postura mais permeável à inovação com objetivos comerciais e ao imaginário das tecnoutopias encontradas no MIT Media Lab e de modo mais geral na cultura daquele país. Por outro lado, novos formatos que surgiram no seio do Media Lab como os Fablabs – laboratórios de fabricação digital – dariam origem aos makerspaces, espaços mais orientados à solução de problemas particulares do que às expectativas industriais daqueles (ibidem).
Nos dias de hoje, essas e outras narrativas se misturam e influenciam mutuamente. Segundo Atau Tanaka, existiriam diversas configurações para os labs:
“Labs industriais ligados a corporações de tecnologia (inspirados em laboratórios de pesquisa como os Bell Labs), labs de artemídia (centros como o austríaco Futurelab em Linz, ligado ao festival Ars Electronica, ou o ZKM em Karlsruhe, na Alemanha), labs universitários diretamente inspirados no próprio MIT Media Lab (como o Media Lab da Universidade Aalto de Helsinque), e por fim (….) laboratórios comunitários (como o Medialab Prado de Madri e o Kitchen Budapest – também conhecido como KiBu – na Hungria).” (TANAKA, 2011)
A categorização proposta por Tanaka esbarra, entretanto, nas implicações de uma delimitação estreita de objeto. Ele trata essencialmente de laboratórios institucionais e com pretensões de estabilidade. Ou seja: deixa de incorporar tanto aquelas experiências situadas à margem da formalização organizacional quanto outras que são – por vezes intencionalmente – efêmeras. A seguir-se esta definição deixaríamos de valorizar o potencial criativo, a pluralidade de formatos de trabalho e postura política presentes nestas áreas híbridas e dinâmicas.
Sem prejuízo aos laboratórios institucionais mencionados por Tanaka, é importante que a elaboração de políticas públicas que dialoguem com laboratórios experimentais também levem em conta iniciativas como os hacklabs e hackerspaces, os fablabs e makerspaces, além de diversos formatos como labs temporários, intervenções urbanas, residências artísticas e ocupações culturais.
É comum que tais labs ampliados mantenham um relacionamento dinâmico e produtivo com outras formas institucionais – o ateliê, o estúdio de produção, a escola, o museu –, sem entretanto submeter-se totalmente à lógica de funcionamento destas formas. O que os caracterizaria como labs é de fato esta postura avessa à cristalização de expectativas. Já se falou aqui anteriormente a respeito do lab como espaço em branco. Isso dialoga com o conceito de colaboração que Florian Schneider sugere no post "Colaboração - 7 notas sobre novas formas de aprender e trabalhar juntos"2:
"As colaborações são os buracos negros dos regimes do conhecimento. Elas intencionalmente produzem vazio, opulência e mau comportamento. E a própria vacuidade delas é sua força."
Essa visão expandida dos laboratórios também dialoga com a perspectiva de permacultura apresentada na entrevista com Pedro Soler:
“A ideia da 'cultura como bosque' vem da observação de como a cultura cresce e se multiplica, fazendo uma analogia direta do funcionamento da natureza e como a gestão e as políticas públicas poderiam aplicar o ponto de vista da permacultura. A base do trabalho é a escuta, o olhar, ou a atenção. Prestar atenção a tudo o que acontece ao redor, o que realmente existe, o que as pessoas estão gerando e desejando. A partir daí é possível começar a entender o que está acontecendo com a cultura. Muitas vezes achamos que sabemos o que é melhor para os outros, mas às vezes estamos enganados. E a partir do fazer, das práticas é possível construir políticas públicas de gestão e espaços para dar acolhida a este tipo de práticas.” (SOLER, 2014).
Outro aspecto a levar em conta é a ideia de circuitos de eventos, nos quais a ideia de laboratório desenvolve-se de maneira algo diversa. Isso se dá em três níveis de articulação: o festival como catalisação de ações pontuais, o festival como justificativa para ações permanentes, e a circulação entre festivais. O Festival Future Everything (Manchester) propõe a ideia do “festival como laboratório”: o acontecimento do evento funciona como catalisador para a articulação de atividades, o desenvolvimento de protótipos e a troca de experiências. Temáticas desenvolvidas pelo evento atraem pessoas interessadas em debater, criticar e propor soluções para questões locais. Diversos eventos têm seus próprios projetos permanentes ou periódicos, como o caso da Pixelversity ligada ao festival Pixelache (Helsinque). E muitos atores importantes da cultura digital, da arte eletrônica e da arte-ciência frequentam eventos ligados a um circuito internacional: os próprios Future Everything e Pixelache, e ainda Ars Electronica (Linz, Áustria), Interactivos? e ISEA (itinerantes), FILE (São Paulo), Transmediale (Berlim), entre outros. Este circuito proporciona uma troca continuada de experiências, explorando diferentes configurações contextuais e institucionais. Argumena-se aqui que no contexto brasileiro pode ser útil pensar também em termos de um circuito contando com eventos independentes uns dos outros, acontecendo em diferentes localidades, mas trabalhando de forma coordenada.
1Richard Barbrook e Andy Cameron identificam o utopismo digital como base e reflexo do que chamam de “ideologia californiana” - as crenças de que quase todos os problemas do mundo poderiam ser resolvidos com tecnologias de comunicação digital desenvolvidas por empresas privadas (BARBROOK; CAMERON).
2Post disponível no website http://www.kein.org/node/89 (acessado em 16/08/2014)
Com o objetivo de contribuir para a formulação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento de produção criativa em cultura digital, elenca-se a seguir uma série de propostas de encaminhamento. Elas baseiam-se tanto na leitura do contexto corrente a partir de pesquisa e entrevistas com atores relevantes nos cenários brasileiro e internacional, quanto em um histórico pregresso de iniciativas institucionais e informais no país que dialogam com as temáticas deste estudo.
Entre os incômodos expressados por praticamente todas as pessoas entrevistadas ou consultadas, são centrais a fragmentação e a falta de continuidade das ações de políticas públicas voltadas às áreas de fronteira entre a cultura e a tecnologia, entre a arte e a ciência, entre a experimentação e o mercado. Sugerem a necessidade de desenvolver por um tempo mais prolongado mecanismos que frequentemente foram implementados como pilotos (um entrevistado propõe que se mantenham por cinco anos, para só depois avaliar o sucesso dos modelos implementados).
Especial relevância neste contexto têm uma série de iniciativas desenvolvidas entre os anos de 2009 e 2010 no entorno do Ministério da Cultura. É o caso de editais como os prêmios de Mídia Livre e Cultura Digital. O primeiro foi criado a partir de um intenso diálogo com atores e eventos envolvidos com o campo da Mídia Livre do Brasil. A criação do edital contribuiu para consolidar um conceito de mídia livre particularmente brasileiro. Já o prêmio de Cultura Digital deu reconhecimento institucional e concedeu maior autonomia de ação para iniciativas que haviam participado intensamente da construção do campo da cultura digital dentro do universo das políticas públicas de cultura. Ambos os editais, juntos, premiaram dezenas de projetos que dariam muitos frutos nos anos seguintes. O Mídia Livre chegou a ter duas edições, e desapareceu do horizonte.
Ainda dentro das ações do Minc consideradas próximas por atores envolvidos com projetos e laboratórios experimentais experimentais encontra-se o edital XPTA. Neste caso, os comentários são mais ambíguos. Mesmo à época, alguns potenciais interessados reclamavam da excessiva burocratização e engessamento do formato do edital, que previa que os proponentes coordenassem uma série de subprojetos. Por outro lado, a orientação explícita do XPTA à pesquisa em novas mídias é tida como um ponto a favor, que legitima a área. O mesmo se dava no caso da Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre Conteúdos Artísticos em Mídias Digitais/Internet, que declarava claramente a internet como campo de produção cultural.
Lucas Bambozzi, artista e curador entrevistado para esta pesquisa, considera que
“Há muita dificuldade de entender o experimental. Eu sou sempre o membro que entende o estranho. Raramente surgem editais que dão conta do aspecto experimental. Os poucos que aparecem não duram. Não há interesse em montar uma cena, mas sim de se aproveitar da cena. É o avesso do laboratório, é o avesso da pesquisa. Se não há ressonância de marketing, parece que as iniciativas se apagam. Exemplo prático, o edital de arte e tecnologia da Telefônica que escolheu o Labmovel teve projetos bem arrojados muito interessantes, bem-sucedidos. Mas o edital acabou, talvez porque ao valorizar o lado processual eles não tiveram resultados marqueteiros e não acharam que compensava a continuidade. Quando o labmovel ganhou eu senti o peso da quantidade de gente que estava de olho no edital e me falou 'você ganhou, hein?'. Tinha muita concorrência. Pouco antes teve um do MINC, o XPTA, para pensar arte e tecnologia com a vertente da educação. Havia uma expectativa imensa com relação a esse edital. Foi extremamente concorrido, bastante debatido, existia muito interesse que ele acontecesse e continuasse existindo. Mas ocorreu uma única vez. E eu me pergunto: por quê?” (BAMBOZZI, 2014).
Como vemos, a falta de continuidade de tais iniciativas, que muitas vezes tiveram somente uma edição, é apontada como causa de insegurança e dificuldade de planejamento para ações mais aprofundadas e prolongadas. É fundamental que a elaboração de políticas públicas para a cultura incorpore algumas destas percepções.
Durante o Fórum da Cultura Digital Brasileira de 2010, o Ministério da Cultura chegou a anunciar um edital de bolsas de cultura digital experimental que deveria ser publicado por aqueles dias. A elaboração do edital, a exemplo do Mídia Livre, tinha se baseado em um diálogo, então em andamento, com diferentes grupos e instituições interessados no tema1. As transformações nas circunstâncias políticas acabaram fazendo com que o edital fosse deixado de lado. Esta consultoria considera hoje fundamental retomar a articulação de mecanismos de apoio voltados especificamente para a produção experimental em cultura digital que garantam autonomia, capacidade de planejamento, possibilidade de cooperação, longevidade e liberdade de experimentação. Não se trata simplesmente de lançar o edital que foi deixado de lado, mas de reformulá-lo de acordo com as novas condições da cultura digital sobre as quais falou-se no produto anterior. Os tópicos abaixo trazem elementos que podem colaborar com essa construção.
No primeiro produto deste levantamento, foi encontrada uma dificuldade em particular: a efemeridade da documentação digital sobre projetos experimentais. Surgiram desde links apontando para páginas que não existem mais até websites que cumpriam uma função meramente promocional, não se prestando a uma memória mais aprofundada dos eventos acontecidos e atividades desenvolvidas. E isso não se limita às iniciativas informais ou precárias. Pelo contrário, foi possível comprovar que alguns dos projetos que tinham acesso a mais recursos foram aqueles nos quais a documentação demonstrou-se mais efêmera. Muita informação que seria valiosa - para fins de memória coletiva, como material de pesquisa, curadoria, replicação e inspiração para outros projetos - perdeu-se pela ausência de um pensamento de longo prazo neste particular.
A promoção de uma cultura distribuída e compartilhada implica, segundo Pedro Soler, considerar a necessidade de estratégias de documentação e gestão do conhecimento. Por isso, “é importante que os conhecimentos sejam abertos e compartilhados, o que vai além de publicar um documento na internet. Há todo um trabalho para que a cultura seja acessível, replicável, que seja estendida para além de uma atividade pontual.” (SOLER, 2014).
Para Susana Serrano, pesquisadora e produtora cultural, a perspectiva das Práticas Culturais de Código Aberto traz “uma nova visão da cultura que não é só cultura livre mas que também está contagiada da ética hacker, e que não se limita à distribuição. Tem a ver com aproveitar o conhecimento que foi gerado anteriormente, o que já foi criado, procurar a sustentabilidade”. (SERRANO, 2014).
Entende-se pelo exposto que políticas públicas voltadas a arranjos experimentais em cultura digital precisam necessariamente incorporar estratégias de documentação que atuem em três diferentes âmbitos:
a) A comunicação processual através de ambientes online de comunicação colaborativa. Trata-se aqui menos de uma estrutura para a publicação de conteúdo finalizado do que de instrumentos que facilitem a gestão distribuída de iniciativas coletivas. Neste quesito, são usualmente utilizadas ferramentas colaborativas como wikis (ambientes de edição coletiva), pads (editores de texto colaborativos e em tempo real), grupos de e-mail, blogs, acervos para imagens, áudio e vídeo, entre outros.
b) A divulgação de atividades em curso com o objetivo de atrair colaboradores, patrocinadores, público e visibilidade. As redes sociais e weblogs aparecem aqui, junto a mídias tradicionais como rádio, jornais e TV. É comum também o uso de mídia impressa de alcance local, com cartazes e flyers que podem ainda ser compartilhados digitalmente.
c) O registro final de atividades. É frequente que se utilizem vídeos editados, catálogos, relatórios formais, assim como compilações que relatem repercussão na mídia ou seleções de material produzido durante ou a partir dos projetos. Aqui deveria entrar uma perspectiva mais ligada às discussões sobre acervos digitais, que adote uma política de disponibilização de materiais com licenças livres que garanta seu acesso e reutilização em outros contextos, quando for o caso.
Além de facilitar o acesso à memória das atividades, uma estratégia de documentação dialoga com a ideia de uma cultura de abertura, da qual falou-se no primeiro produto. Oferecendo material que pode ser acessado, reinterpretado e no limite remixado, estaremos contribuindo para o universo de conteúdo disponível à humanidade e com a construção da ideia de bens comuns e de diversidade cultural como fundadora do campo do digital.
Neste sentido, Lucas Bambozzi, destaca a importância de uma documentação consistente dos processos não só em termos de memória coletiva, mas como maneira de avaliar as práticas experimentais:
“O produto está sobretudo na documentação feita, que mostra tanto o processo quanto o potencial de afecção, de encantamento e transformação. A ideia [do Arte.mov e Labmóvel] não era gravar só o resultado, era gravar enquanto estava acontecendo, fazendo, depois que parou de fazer, e gravar depois da coisa pronta. [...] Quando o patrocinador cobrava o produto, a gente mostrava o processo e a alegria de alguém fazendo. Isso sanava a ansiedade por um produto. A mediação envolvia mostrar que isso também é produto. O sorriso na criança também é produto.” (BAMBOZZI, 2014)
No caso do Arte.mov, o artista e curador entende que “foi um equívoco pensar o site [do projeto] como divulgação factual e promocional para o ano, e não de conteúdo disponível para um futuro próximo”. (ibid.)
Redes sociais também costumam funcionar como catalisadoras de participação e debate. Correntemente utilizam-se as redes sociais corporativas como Facebook, Twitter e em menos escala o Google Plus. Isso cria diversas complicações no que tange à autonomia (depende-se da perpetuação da gratuidade destas plataformas, ou antes da manutenção da situação presente, de troca do uso gratuito pela captura de dados pessoais para venda de perfis ao mercado publicitário), à privacidade (como episódios internacionais recentes demonstram, não existe privacidade absoluta nas redes sociais corporativas) e à memória de longo prazo (é relativamente complexo ter acesso a posts passados em tais plataformas). Tudo isso sem falar nas políticas de censura e moderação que seguem critérios frequentemente obscuros e potencialmente conflitantes com a preocupação com diversidade cultural. Uma estratégia de documentação apropriada para tal contexto demandaria o estímulo à criação de outras redes sociais.
O ambiente online CulturaDigital.Br, criado pelo Ministério da Cultura como uma rede social de weblogs e fóruns de discussão, poderia ser um ponto de partida interessante para experimentar com tais estratégias. Mas é necessário um reposicionamento que proponha a migração de uma postura que oferecia uma infraestrutura centralizada de publicação de conteúdo para uma que se proponha a facilitar também a documentação distribuída de processos abertos e a ampla divulgação de atividades.
Uma solução que se proponha a funcionar como ambiente de criação, gestão e registro precisa incorporar alguns elementos importantes do debate contemporâneo sobre redes sociais. Um dos principais é sua configuração como rede descentralizada e federada. Ou seja, permitir que um usuário de uma determinada rede social possa relacionar-se com outras, mas mantendo seu universo de relacionamentos e contatos com usuários de outras redes. Existem nos dias de hoje instrumentos como o OpenID, a autenticação federada e os protocolos abertos de intercâmbio entre diferentes sistemas que caminham justamente nesta direção.
Deve-se também promover a integração com possibilidades versáteis como pads, repositórios git, acesso e uso em plataformas móveis, chats via XMPP e compartilhamento na nuvem. É ainda interessante a utilização de padrões como o RSS ou mesmo APIs específicas para garantir o intercâmbio de dados. A portabilidade é outro tema importante: assegurar que os usuários possam, a qualquer momento, decidir mudar para outro sistema similar e levar junto seus dados e contatos.
Nos dias de hoje, até como resposta às crises que emergiram entre as redes sociais corporativas em anos recentes, existem diversas plataformas livres e abertas que propõem-se à criação de redes sociais temáticas e autogeridas e acabam incorporando alguns dos elementos citados acima. Exemplos dessa construção são Lorea, Pump.io, Diaspora, Friendica/Rede Matrix, Corais, Kune, Noosfero, entre muitas outras. Também plataformas abertas já estabelecidas e amplamente utilizadas como Drupal e Elgg são utilizadas cotidianamente para cumprir a função de comunicação em um sentido amplo. A plataforma CulturaDigital.Br poderia apropriadamente adotar alguma destas tecnologias para criar novas possibilidades, e com este movimento também colaborar para o desenvolvimento das próprias tecnologias.
Uma variável particularmente clara percebida no contato com diferentes atores envolvidos com a arte e a cultura digitais no Brasil foi a carência por instrumentos de incentivo à curadoria de acervos e documentação já existentes. Registros em áudio e vídeo de eventos como, por exemplo, o festival Mídia Tática Brasil 2003, estão praticamente abandonados e correndo risco de desaparecerem. Para não falar no Estúdio Livre, no Findetático, no LAMiMe, LabX, entre centenas de outros eventos e projetos. Aqui não se trata somente da falta de infraestrutura digital para disponibilização de material: faltam também maneiras de garantir o tempo de trabalho necessário para selecionar, editar e publicar versões públicas. É importante que estratégias voltadas a acervos incorporem essa necessidade de valorização, curadoria e manutenção, já ensaiada em alguns editais mas ainda não estruturada para o longo prazo.
Em anos recentes, o laboratório experimental como modelo de organização e metodologia colaborativa recebeu no Brasil significativas contribuições, advindas de projetos que espontaneamente passaram a identificar-se com formatos assemelhados. Teve relevância também o intercâmbio de iniciativas brasileiras com projetos internacionais como os encontros Labtolab, Future of the Lab, Labsurlab, Summer of Labs, entre outros. O website Rede//Labs cumpriu o papel de registrar algumas etapas, ainda que de maneira descontínua2. Ainda assim, faz falta por aqui um esforço continuado e estruturado de pesquisa e mapeamento de laboratórios que volte os olhos para particularidades do contexto brasileiro, ajudando a construir uma visão de cenário e a estabelecer o contato entre indivíduos, grupos e instituições com interesses em comum. É importante estabelecer maneiras de acompanhar as diferentes iniciativas institucionais, dar visibilidade a arranjos emergentes, abrir espaço para novos talentos e contribuir com a circulação de resultados.
A ideia de um Meta-Laboratório dialoga tanto com a imagem do “observatório” (que essencialmente volta os olhos a determinado horizonte) quanto com a do “participatório” ou “colaboratório”, que lança mãos à obra para trabalhar e interferir em dinâmicas concretas. Um bom começo poderia ser uma plataforma digital colaborativa que recebesse material de atores diretamente envolvidos com as iniciativas em questão, podendo também repercutir periodicamente em edições impressas.
Complementarmente, é essencial a realização de encontros periódicos com a finalidade de tratar de questões concretas dos labs e projetos experimentais, e possibilitar a troca de conhecimento instrumental. Não se trataria aqui meramente de dar visibilidade à produção de cada espaço ou ação, ou então de colocar seus agentes em uma posição de ensinar o que quer que fosse, mas sim de trabalharem conjuntamente em metodologias e desafios comuns aos diferentes contextos e composições, inclusive aquelas não institucionalizadas.
Como já exposto anteriormente, aquelas iniciativas aqui chamadas laboratórios experimentais costumam por hábito trabalhar em rede - tanto em busca de recursos e infraestrutura quanto na forma de colaborações, trocas de conhecimento e definição de temáticas. É interessante que se incentivem estas cooperações em diversas formas: promovendo encontros locais e regionais em pequena escala; criando mecanismos através dos quais grupos de labs possam atuar em consórcio para realizar projetos e eventos maiores; e desenvolvendo, como exposto acima, ferramentas digitais que possibilitem a documentação de processos e entregas. Ao criar uma instância permanente de mapeamento, articulação de discurso e troca de referências a respeito dos laboratórios experimentais, pode-se combater a sensação de reinvenção da roda e de isolamento de ações que por vezes acomete o cenário. Como sugerido anteriormente na entrevista com Jorge Barco do MAMM de Medellín:
"em vez de inventar um novo laboratório, captaram o que já estava acontecendo (coletivos, artistas, comunidades) e os agregaram em ações criativas específicas, desenhadas pelos próprios labs, que transitam pela arte, o ativismo, tecnologias livres, a colaboração. O papel do museu, neste sentido, é atuar como agregador e catalisador desses grupos e aproveitar sua plataforma e posição como conector, oferecendo condições e estimulando o intercâmbio entre iniciativas já existentes, fortalecendo as experiências e promovendo novos desdobramentos e agregações." (BARCO, 2014).
Uma das dificuldades impostas a quem tenta desenvolver projetos experimentais de cultura digital no Brasil é o que se poderia definir como um descompasso entre, de um lado, os anseios de artistas, pesquisadores, ativistas, educadores e produtores, e de outro as expectativas das instituições que atuam nas áreas que se relacionam com essa produção. Se os primeiros estão interessados em explorar o universo de possibilidades que reside no contato entre cultura e tecnologias - tanto em termos de linguagem e de diálogo com a produção em outras localidades quanto de engajamento político e transformação social –, as últimas preocupam-se em atingir o máximo possível de resultados com os recursos que investem.
O problema é que, por definição, processos experimentais não têm critérios claros de avaliação. Se a intenção é proporcionar a exploração de novas linguagens, desenvolver protótipos de novas bases de construção de conhecimento, identidade e inserção no mundo, qual seria a maneira de mensurar seus resultados?
Pedro Soler assinala alguns critérios a levar em conta na hora de avaliar este tipo de práticas de laboratório:
“Um dos critérios são os números, quantidade de pessoas. Outro são as temporalidades, quantidade de tempo. Não é a mesma coisa um grupo de pessoas que se encontra uma ou quinze vezes, onde há repetição ou regularidade. Também a produção de documentos e sua sistematização, são indicadores muito importantes, por exemplo dizer que como resultado foram sistematizados quatro protótipos replicáveis. O compartilhamento destes conhecimentos. E ainda a questão econômica: o que foi gerado não só no contexto do próprio lab, mas os projetos que foram gerados a partir disso. Por exemplo: a pessoa que participou do projeto está agora realizando oficinas, ou trabalhando em outro lugar, etc. É interessante avaliar ao longo do tempo, mas nem sempre é possível. No caso do Summerlab isso acontecia por meio da responsabilidade de cada nodo de documentar sua experiência. De fato a única equipe que recebeu um cachê foi para streaming e documentação, para garantir um bom registro. ” (SOLER, 2014).
Na ausência de uma maturidade institucional que saiba interpretar construções processuais dinâmicas orientadas à criação do novo e do comum, é muito frequente que se lance mão de empréstimos de áreas já consolidadas e portanto mais fáceis de explicar à burocracia. Em vez de uma avaliação qualitativa ou da abertura a resultados imprevistos, fala-se frequentemente em “alunos”, “oficinas”, “apostilas” ou então “obras”, “exposições”, e também “atendimentos” ou então “visitações”. Esse tipo de condicionamento de resultados acaba por influenciar os próprios formatos de trabalho: a intenção de desenvolver processos criativos abertos - e por vezes sem um direcionamento claro de antemão - transforma-se em “oficinas”, onde “facilitadores” trabalharão com “oficinandos” qual professores e alunos. Ou seja, o que se iniciava como um processo de exploração adota um formato de edcucação. Ainda pior, por tratar-se de uma compreensão superficial do que seja a educação, baseia-se numa expectativa estática de “transmissão de conteúdo” que já foi suficientemente criticada dentro do universo das pedagogias contemporâneas. O resultado é que nem educação nem experimentação desenvolvem seu pleno potencial.
Mesmo que se falasse de uma educação mais aberta, entretanto, ainda estaríamos tratando de uma construção que leva a distorções. Como já referido em outros trabalhos (FONSECA, 2011), o ensino é essencial para o pleno desenvolvimento dos usos culturais das tecnologias - mas não pode ser o único modo de trabalho. Se partimos do princípio de que aquele que proporciona o ensino e aquele que o recebe têm posições fixas no processo, estamos indo na direção oposta da experimentação livre e aberta. É necessário pensar em dinâmicas mais inclusivas, flexíveis e abrangentes. De fato, em vez de transformar o laboratório em sala de aula temos assistido a tendência em propor justamente o contrário: fazer a escola sediar iniciativas de corte experimental, como comentado no primeiro produto deste levantamento:
"[enxerga-se] o potencial da própria escola (….) como infraestrutura passível de intervenção e reinvenção. (….) Mas é necessário espaço mais aberto à informalidade, indo além da lógica da '‘formação’' e do formato de '‘oficinas’' e atividades mais estruturadas."
Da mesma forma, associar a produção experimental a uma expectativa de obras acabadas ou exposições também pode fazer com que os envolvidos dispendam energia demais trabalhando em coisas que passam longe de suas aspirações iniciais.
Como explica Susana Serrano:
“As instituições têm dificuldades para compreender os tempos, os objetivos [dos laboratórios]. Como não buscamos um tipo de resultados objetivos, é difícil atingir um número de público mensurável para justificar estas práticas, e isso é uma das linhas do meu trabalho. Poéticas de laboratório acabou sendo uma exposição, algo que para mim é um formato obsoleto para este tipo de práticas, mas, por outro lado, foi uma forma de socializar os conhecimentos adquiridos a partir do que foi produzido no medialab. É preciso socializar os processos, porque senão fica difícil validar sua existência e encontrar apoio econômico para continuar. E aí há um grande desafio. As exposições estão obsoletas, mas podem implementar coisas novas dentro deste formato. Nossa experiência foi muito boa, e teve alguns elementos interessantes: não tinha muitos objetos, para que o visitante não ficasse perdido entre um monte de invenções. Foram poucos projetos desenvolvidos coletivamente, um processo que tentou visibilizar os intercâmbios de conhecimento. Também foi muito importante a realização de oficinas, inclusive para crianças, e ainda os debates, as performances.” (SERRANO, 2014).
É importante insistir: exposições são certamente importantes ferramentas de consolidação de reflexões, circulação de produção e formação de público. Mas se temos um foco na experimentação, precisamos aceitar que o processo de testes, erros, aprendizados e mudanças de rumo será por vezes muito mais rico do que eventuais produtos finais. Como afirma Lucas Bambozzi:
“Tenho certeza que [a experimentação] seria um caminho natural da inovação, mas parece que por marketing tentaram colocar uma nova embalagem nesse termo inovação. Como uma nova vertente hype, que vem sendo pregada por essa lógica de indústria cultural. A experimentação tem que abarcar o prejuízo, o erro, a falta de público. Uma experiência que pode não funcionar agora mas pode funcionar para uma próxima geração”.
Em outras palavras: labs experimentais até podem funcionar como escolas, mas não devem necessariamente fazê-lo e provavelmente não devem fazê-lo o tempo todo. Da mesma forma, podem operar como museus, mas não devem necessariamente fazê-lo, ou o tempo todo. Pareceria mais útil pensar em redes de projetos colaborativos trabalhando como ocupações culturais.
Recentemente tive a oportunidade de oferecer uma pequena colaboração à elaboração de um programa de alcance nacional que tem por objetivo oferecer novas perspectivas sobre cultura naquilo que se relaciona à inclusão digital. Os envolvidos, com larga experiência tanto em projetos culturais e artísticos quanto na implementação de políticas culturais, estavam desenhando o projeto em um formato relativamente pesado: previam a contratação de uma equipe fixa de dezenas de pessoas, que bateriam ponto em locais distribuídos por todo o Brasil. Tal modelo supunha que a inteligência da rede viria estrategicamente de seu centro, visualizando um processo de oficinas que proporcionaria uma gradual contaminação criativa na direção das pontas. O problema é que este modo de operação acaba por gerar algumas dificuldades: cria uma dependência do centro e a necessidade de que ele obtenha sucesso constante em desafiar as pontas a atuarem de maneira criativa.
Minha contribuição àquela construção adotou uma perspectiva inversa: em vez de pensar um projeto que precisava necessariamente planejar todas as etapas de formação, controlar equipes de trabalho e homogenizar suas práticas, sugeri uma lógica de ocupações culturais mais flexíveis. Na prática: abrir uma convocatória para indivíduos ou grupos proporem projetos de utilização daqueles espaços.
Não era uma sugestão gratuita. Pelo contrário, estava conscientemente fornecendo uma contribuição baseada na observação de formatos que vêm sendo utilizados por projetos no mundo todo. Exemplo é o “Interactivos?” criado pelo Medialab Prado e já mencionado na etapa anterior deste estudo. Também são experiências relevantes aqueles projetos já desenhados para serem nômades, como o Laboca, Labmovel, Ônibus Hacker e outros. Ou então os programas de residências artísticas que propõem laboratórios temporários. Na verdade, o desenvolvimento de projetos de ocupação temporária de espaços culturais já é prática corrente no Brasil, a exemplo dos editais de ocupação das sedes da FUNARTE ou dos espaços da Caixa Cultural1, ou então do recente edital para projetos a serem desenvolvidos nos Centros Culturais do Banco do Brasil2. Outra referência atual é o edital Redes e Ruas criado pelas secretarias de Serviços, da Cultura e dos Direitos Humanos e Cidadania do município de São Paulo3, que abre inclusive a possibilidade de projetos de intervenção urbana.
A ideia de ocupações culturais dá uma maior ênfase em aspectos humanos, dinâmicos e colaborativos em lugar de uma visão mais burocrática que privilegia o laboratório enquanto espaço físico e equipamentos. Trabalhando desta maneira - na qual amplos espaços são intencionalmente deixados em branco –, transforma-se o próprio processo de seleção em um abrangente mapeamento de talentos e temáticas mais alinhados com as expectativas de cada localidade. Isso repercute mais uma vez na projeção de contribuir com uma emergente cultura da abertura que anteriormente argumentamos estar latente em projetos contemporâneos.
Troca-se, em outras palavras, a necessidade de limitar o escopo (para garantir o controle e a produtividade relativa dentro de uma temática predefinida) pela abertura ao inesperado e consequentemente uma maior abundância e diversidade de produções distribuídas. Tanto melhor se houver momentos de contato e uma estratégia de comunicação em rede (como sugerido na seção anterior deste documento) entre os diferentes projetos.
Os programas de residência artística são um modelo de grande efetividade na produção criativa que pode, curiosamente, ser realizado com relativamente poucos recursos. O simples fato de proporcionarem deslocamentos - nos quais o indivíduo ou grupo são instados a interagir com um contexto diverso daquele ao que estão habituados - desencadeia processos de reflexão que podem resultar em produções muito relevantes. Como apontado no produto anterior deste estudo:
“As diferentes modalidades de participação oferecidas nas residências em encontros (com e sem curadoria) e a adoção de modelos mistos favorecem a inclusão, o intercâmbio e a circulação entre artistas emergentes e de referência, criadores das mais diversas áreas; e a promoção de redes de troca de conhecimento e colaboração, produção de saberes em comum e a experimentação colaborativa de abrangência nacional e internacional.”
Para Lucas Bambozzi, esses processos laboratoriais hoje estão muito conectados com o processo de residências:
“colocar-se em residência é colocar-se num processo de tentativa e erro, de deixar que coisas surjam, viabilizar ideias que não são as grandes ideias mas são tentativas. Foi virando uma prática mais comum que a dos labs. Porque a residência pode acontecer sem nenhum recurso. Demanda muitas vezes só um espaço, ponto de encontro, a pessoa nem precisa residir de fato, mas um espaço, atelier a ser compartilhado. O que precisa tanto para um lab ou residência ou algo que seja uma fusão de ambos não é muita coisa: é espaço, tempo – a soma dos dois –, e acesso a alguma tecnologia [por exemplo]: vamos fazer um projeto em torno de uma impressora 3D.”
É positivo que um mecanismo estruturado como o programa de Intercâmbio e Difusão Cultural do Ministério da Cultura tenha recentemente passado a incluir programas de residências artísticas entre as finalidades possíveis para a inscrição em seus processos de seleção. Os diferentes projetos experimentais localizados em diferentes partes do Brasil só teriam a ganhar com a estruturação de programas de residências - e não somente residências voltadas à produção artística em si, como também direcionadas ao intercâmbio de metodologias e gestão de projetos culturais, uso de tecnologias em particular e outros temas que poderiam surgir.
Programas de intercâmbio que oferecessem recursos para a realização de programas de residências geridas pelos próprios projetos poderiam ser de grande relevância para o contexto brasileiro - contando inclusive com a imagem do laboratório que recebe temporariamente outro laboratório, ou mesmo labs que trocam de localidade por determinado período.
Uma vez que a imagem do laboratório como espaço físico dedicado, com acesso restrito e recheado de infraestrutura exclusiva vem sendo questionada em favor de formatos mais abertos e colaborativos, como é que se articula a formação de uma identidade coletiva neste contexto? Se estamos falando de um cenário de trocas constantes, como é que as pessoas vão saber onde procurar oportunidades e conhecer futuros colaboradores?
A relativa autonomia do indivíduo e do grupo criativo (que não precisam mais estar necessariamente associados a um laboratório em particular) fez com que, complementarmente, adquirissem uma maior importância os eventos e festivais. Já há alguns anos, uma pessoa interessada em conhecer mais sobre este cenário precisa cada vez menos visitar lugares específicos do que participar de eventos que estão em geral interconectados. Festivais periódicos permanentes como o Future Everything em Manchester, Transmediale em Berlim e Ars Electronica em Linz (Áustria) somam-se a eventos itinerantes como o ISEA (que em anos recentes passou, por exemplo, pela Turquia, Estados Unidos e Austrália) ou a rede de eventos Pixelache (que interconecta festivais e encontros na Finlândia, Noruega, França, Senegal, Colômbia, Brasil e outros países).
Em tais eventos, um número considerável de pessoas acaba se reencontrando com alguma frequência. A familiaridade e até intimidade que surgem desse contato constante encetam uma troca e uma sensação de pertencimento que costumam fomentar projetos colaborativos entre os integrantes do próprio circuito.
Os eventos costumam seguir um ou mais de alguns formatos: a desconferência, o encontro, o workshop, o seminário, a exposição. Um deles é o festival, que propõe-se não somente a se relacionar com o próprio tema como também com o próprio circuito e ainda com a população de determinado lugar. Há alguns anos, Drew Hemment, criador do festival Future Everything, publicou um texto chamado “O festival como laboratório vivo”, no qual afirmava:
"O festival cria um espaço no qual as pessoas podem experimentar e atuar. As atividades podem incluir obras de arte, protótipos de tecnologia, inovação social e projetos de design. Isso fica mais interessante quando é realmente colaborativo e as pessoas estão fora de seus papéis convencionais - artistas fazendo espaços sociais, comunidades criando tecnologia, tecnólogxs possibilitando que percebamos o mundo renovado."3
O festival aparece assim como espaço para catalisação de ações pontuais – que reunidas adquirem um alcance maior, peso considerável e troca produtiva para os envolvidos. Festivais também podem funcionar para justificar ações permanentes em determinados lugares – mesmo que não exista um cenário local significativo, a perspectiva do festival cria espaços de atuação mesmo antes e depois de seu acontecimento.
Levando em conta a extensão territorial do Brasil e a já comentada efemeridade dos projetos institucionais voltados à produção experimental, é natural que uma visão de circuito faça sentido. O que a dificulta é que por aqui também os eventos são efêmeros e frequentemente pontuais, realizados em edição única. Na prática, entretanto, já existe no Brasil uma rede bastante atuante (é comum que convidados estrangeiros se surpreendam com a sensação de que no Brasil praticamente “todas as redes estão conectadas”, de certa forma). Temos de fato o que poderia ser chamado de um circuito de eventos que é informal e opera espontaneamente. E hoje perdura muito mais do que qualquer um dos eventos em particular.
Festivais e encontros em diferentes localidades deveriam poder trabalhar conjuntamente para solicitar recursos, o que levaria o circuito a tomar corpo e fortalecer-se. Uma estratégia de circuito de eventos voltados à produção experimental deve figurar no horizonte da elaboração das políticas de cultura digital.
1O Anexo II deste documento traz trechos transcritos da memória do encontro Redelabs durante o Fórum da Cultura Digital de 2010, reunindo boa parte das pessoas então envolvidas com o contexto dos labs experimentais de cultura digital no Brasil.
2Disponível em http://redelabs-org.github.io (acessado em 15/08/2014), o Rede//Labs acumula desde documentação da primeira etapa da pesquisa sobre laboratórios de cultura digital desenvolvida em parceria com o Ministério da Cultura em 2010; quanto projetos subsequentes como a série de artigos e minidocumentários encomendados pelo Centro de Cultura Espanhola em 2011, como parte do projeto Anilla Cultural; e ainda iniciativas como o laboratório temporário LabX montado dentro da programação do Festival de Cultura Digital também em 2011 no Rio de Janeiro.
3Curiosamente, e repercutindo uma observação feita anteriormente na seção sobre infraestrutura para documentação, tive dificuldades para referenciar este texto de Hemment. Eu havia traduzido um trecho dele há alguns anos. Esta tradução curta ainda está disponível no site redelabs (http://redelabs-org.github.io/blog/future-everything-festivais-como-laboratorios-v..., acessado em 16/08/2014), mas o original para o qual apontava retorna como página inexistente. Ao procurar o link no banco de dados do Internet Archive, encontrei uma única versão salva, e ela está entremeada de palavras desconectadas, provavelmente inseridas ali por um robô de SPAM (https://web.archive.org/web/20100808024704/http://www.futureeverything.o..., acessado em 16/08/2014).
Lucas Bambozzi é artista multimídia e pesquisador em novas mídias. Produz vídeos, instalações, performances audiovisuais e projetos interativos, tendo trabalhos exibidos em mais de 40 países. Conduziu atividades pioneiras ligadas a arte na Internet no Brasil entre 1995 e 1999 na Casa das Rosas. Foi curador e coordenador de eventos como Sónar SP (2004), Life Goes Mobile (Nokia Trends 2004 e 2005) e Motomix 2006, Red Bull House of Art (2009) e Lugar Dissonante (2010), tendo atuado também em eventos coletivos como Mídia Tática Brasil (2004), Digitofagia (2005) e Naborda (2012). Foi artista residente no CAiiA-STAR Centre/i-DAT (Planetary Collegium) e concluiu seu MPhil na Universidade de Plymouth na Inglaterra. Como artista se dedica à exploração crítica de novos formatos de mídia independente. Em 2010 foi premiado no Ars Eletronica em Linz/Austria com o pojeto Mobile Crash e em 2011 teve uma retrospectiva de seus trabalhos no Laboratório Arte Alameda, na Cidade do México. Em 2012 participou das exposições Tecnofagia (Instituto Tomie Ohtake, SP) e da Bienal Zero1 (San Jose, EUA) com trabalhos comissionados pelos organizadores. Entre 2013 e 2014 participou da Bienal de Artes Mediales no Chile, das exposições Gambiólogos 2.0 no Oi Futuro, BH e Singularidades, no Itaú Cultural em SP. São uma constante em seus trabalhos recentes as questões relacionadas ao conceito de espaço informacional e as particularidades de uma arte produzida a partir das mobilidades e imobilidades do contexto urbano. É criador e coordenador do Festival arte.mov – Arte em Mídias Móveis (2006-2012) e do Labmovel, um veículo criado para atividades laboratoriais e artísticas em espaços públicos (2012) que recebeu em 2013 menção honrosa no Prixars, do Ars Electronica. É um dos idealizadores e curadores do Multitude, um evento de arte contemporânea que tem como ponto de confluência o embate com o termo multidão.
Website: http://www.lucasbambozzi.net
“Há uma diferença entre fazer um evento e fazer uma atividade disparadora de outras. Pensamento de formação, que pode levar à criação de novos sistemas e projetos, de passar o conhecimento adiante. Fiz o Fórum BHZ Vídeo. Falta de um circuito em BH. Rio já tinha. (….) Era um evento, mas viabilizou pesquisas e uma mostra. (….) O processo laboratorial está imerso na produção de eventos. Depois fiz o Eletronika, focado em música eletrônica, com Rodrigo Minelli. Pensando uma atividade que explorasse o lado mais processual que poderia ser compartilhado com os frequentadores do festival.”
“Posteriormente participei do Fórum de mídia expandida. Uso de softwares de áudio sendo usados por gente de imagem. Remix. VJ contaminando as artes visuais, o vídeo. O Fórum começava a falar mais de portabilidade e mídias móveis. Aí fizemos o arte.mov. Foi o primeiro festival do Brasil focado na mobilidade, junto com o Mobilefest que é da mesma época. Tinha poucos no mundo. Houve exploração processual, laboratorial. Exploramos o que dava pra fazer com isso que não seja só para as companhias venderem.”
“Pra mim nunca interessou fazer o evento em si, grandes eventos. Mas sim eventos que pudessem viabilizar isso [processos laboratoriais]. Isso não é um discurso vazio, é por uma necessidade minha de nunca ter encontrado essas oportunidades para desenvolver meu próprio trabalho.”
“Na primeira edição do Arte.mov tivemos vídeos de curtissima metragem. Levavam em consideração a linguagem, a deficiência técnica dos aparelhos. Dava um celular top de linha como prêmio. Alguns ganhadores usaram os celulares que receberam para fazer vídeos no ano seguinte, e daí viraram realizadores.”
“Com o arte.mov, lançamos um edital. O trabalho do Bruno Vianna foi uma espécie de modelo para o edital. A gente comissionou um trabalho dele que em 2008 serviria como modelo para o edital de arte em mídias moveis. Ele criou uma espécie de laboratório. Levamos ele no parque, ele pesquisou, desenvolveu um processo laboratorial que a gente buscou repetir nos anos seguintes. Isso fez estimular uma cena, assim como algum pensamento crítico, já que era muito nítida a pegada consumista naquele momento. O aspecto laboratorial vinha como forma de neutralizar o aspecto consumista, dar outro uso para aquilo [a tecnologia].”
“A gente sempre fez catálogos. Tem uma pilha, todo ano a gente fez 1000, 2000. Distribuímos pra muita gente. É anacrônico, estamos acumulando papel.”
“Falei antes sobre o evento criando coisas que continuam para depois do evento. Uma parte é criar coisas que fazem sentido no evento, mas também tem o lado de ver o que falta. A escassez é o que leva à discussão. A constatação de que sempre faltou um laboratório, nunca foi suficiente, mesmo entre os que existiram.”
“Edital de mídias locativas do Arte.mov: em alguns momentos a gente queria que tivesse sido um lab de fato para algum artista desenvolver ali junto com outros uma atividade, assim como aconteceu no caso do Bruno. Ele fez o software, levou lá e desenvolveu. Teve um processo laboratorial mas não um lab de fato. Mas o que é um lab de fato? Quais suas características? Proporcionar a oportunidade, viabilizar algo, mas em termos de quê? De recursos, a gente conseguia. Mas talvez estes recursos estejam associados a tempo, espaço, e instrumental (equipamentos). O edital funcionou assim, mas em algum momento a gente pensou 'Por que não criar uma oficina'? Em vez de um projeto que será apresentado no ano seguinte, por que não algo que possa ser mostrado 5-10 dias depois? Aí surgiu o Networked Hacklab.”
“Networked hacklab tinha uma vertente mais educativa. Tinha um bom relacionamento com a Vivo, antiga Telemig Celular. A equipe foi para a VIVO e passou a definir as diretizes culturais da empresa.”
“Pensamos o Vivolab como uma parte mais educativa. A primeira ação foi o Networked Hacklab. Isso era pensado por nós e proposto para a Vivo. A gente conseguia parceiros para abrir as portas dentro da Vivo. Tínhamos um bom contato, algo privilegiado, mas na instância nacional da Vivo não era tão fácil. Eles seguem uma lógica do marketing, da marca, peças gráficas, visibilidade. Tivemos parceiros que estavam interessados não em marketing, mas nesse tipo de projetos que propusemos. Assim foi que surgiu a Nuvem, e teve outros vários também em Belém, Porto Alegre, Salvador, Goiânia. Eram ações que antecediam o festival e realizavam hacklabs temporários, por meio das leis estaduais de isenção fiscal.”
“Se a gente dependesse somente do Minc ou Lei rouanet, usaria só um tipo de isenção fiscal. E isso é uma coisa crítica do ponto de vista das leis do Brasil. Quem consegue um projeto na Rouanet pode receber verbas vindas de um tipo de imposto, mas tem muita gente querendo. Quando se chegava com uma carta de projeto aprovado pela lei Rouanet precisava disputar com dezenas de projetos que estavam já na fila. Nossa saída foi descentralizar usando as leis estaduais que são menos burocráticas, têm valores menores mas são mais ágeis. Fomos disparando projetos com parceiros no Brasil inteiro. Esse era um interesse expresso do ministro Gil e do Juca, a descentralização.”
“Sendo mídias locativas, a gente fazia coisas específicas de cada lugar. Belém nas praças. Salvador é uma cidade ruidosa. Porto Alegre game na orla. Lidando com as características de cada cidade. Pensando cada ação em função da especificidade (da lei e topográfica, da cidade mesmo). Nosso centro era BH, não era exatamente um centro. Rio fechou a lei estadual por muito tempo, e quando voltou, já tinha pronto o projeto da Nuvem. Assim como Felipe em Ubatuba, dependíamos da lei estadual.”
“A Vivo acabou descontinuando o apoio e escolheu voltar para a lógica dos grandes eventos em São Paulo e no Rio, que é uma lógica de agência de publicidade, nao de gente de arte e cultura.”
“Labmovel surgiu por necessidade de espaço alternativo e flexível. Com arte.mov, às vezes não conseguíamos trabalhar porque os espaços são agendados com um ou dois anos de antecedência. Mesmo quando precisávamos só de uma base. Surgiu a ideia de um trailer. Apareceu um edital da telefônica de arte, tecnologia e educação, e então montamos o projeto que estava latente, pensando num espaço deslocável. Eu e Gisela Domschke. Teve apoio, ajuda estrutural do arte.mov. Coincidiu com a desestruturação do programa da Vivo. Tentamos entrar com os editais que existem, ganhamos o Prince Claus Fund, Proac, Mondriaan. Estamos no momento finalizando o Proac.”
“O primeiro projeto do labmovel foi uma residência. Foi circunstancial, proposto pelo NIMk, Instituto de Mídia-arte da Holanda, mas a gente não continuou. O NIMk tinha um trailer e perguntou se não queriamos fazer o mesmo por aqui. Lá o NIMk foi desestruturado em seguida pelo governo, junto com todas as outras organizações - só sobraram os grandes patrocinadores. O Labmovel inicialmente era um projeto de oficinas em lugares onde não havia oferta de arte e tecnologia. Tentamos o primeiro Proac. A atividade cultural em São Paulo se concentra na região central. Zona Norte, por exemplo, não tinha nada, mas concentra 90% das escolas de samba. Só o SESC tem atividades em toda a cidade. A ideia era levar projetos para onde não há oferta. Não só com o arte.mov, mas outros eventos sabem que levar público ao centro é complicado. Os eventos concorrem com dezenas de outros na Paulista, na Augusta. Fazer o cara deslocar-se duas horas para vir ao centro e voltar é demais, por isso a ideia foi de criar uma situação laboratorial em lugares onde ela não existe.”
“A ideia era fazer em qualquer lugar, mas aos poucos vimos que era bom ter uma situação de apoio, um banheiro por perto, energia, etc. Não conhecemos Sacomã, Paraisópolis, Heliópolis, Freguesia, e chegar sem conhecimento local é difícil. Fizemos uma parceria com centros locais, em especial nas oficinas para mulheres com o recurso do Prinz Claus. Não pedimos recursos para os parceiros locais, chegamos com a estrutura paga. Oferecemos tecnologias fáceis de ser replicadas, que podem continuar depois, como ensinar a fazer um amplificador com microfone, e ele pode fazer outros depois. Fizemos na Casa do Zezinho com o Panetone (Cristiano Rosa). Quem quiser, pode continuar fazendo, e pode encontrar nisso um ganha-pão, um hobby pra complementar salário.”
“Para entender os lugares, contamos com os parceiros. Labmovel foi restrito a São Paulo, com poucas exceções. Fomos a Ubatuba, fomos a Santos, realizamos uma oficina de escuta e histórias em Campinas num manicômio.”
“Foram oficinas curtas, um processo laboratorial bem rápido, de 1 a 3 dias. Não é uma lógica de pensar em resultados. A comunicação é prioritariamente através do site e das redes sociais. No começo contratávamos assessorias de imprensa, mas não fazia sentido. Estão muito acostumadas com evento grande, notícia, release, cobertura, mas o que a gente faz não é nada grandioso. Não interessa à grande mídia. Buscamos mais inscrições e documentar, mais documentação do que divulgação.”
“Um dos formatos herdados do arte.mov foram pequenos documentários, um teaser e outro de 7 a 10 minutos que fica no canal de Vimeo, e pode ser usado para referência. Depois vai para o blog e redes sociais. Com arte.mov a gente já fazia isso. Do arte.mov temos uma ótima documentação em vídeo, péssima em website (era promocional, de divulgação e não registro). Mas arte.mov investia muito em catálogo, na maioria bilíngue, o que é trabalhoso. Eram textos inéditos, incluindo a biografia dos participantes, análise critica, fotos. Vêm sendo estocados e não sei o quanto as pessoas continuam juntando e colecionando. Na época as pessoas querem os catálogos, mas uns anos depois fica obsoleto, com poucas exceções. Arte.mov era cabeçudo, de crítica, nem tão preocupado com grande política.”
“O produto está sobretudo na documentação feita, que mostra tanto o processo quanto o potencial de afecção, de encantamento e transformação. A ideia [do Arte.mov e Labmóvel] não era gravar só o resultado, era gravar enquanto estava acontecendo, fazendo, depois que parou de fazer, e gravar depois da coisa pronta. [...] Quando o patrocinador cobrava o produto, a gente mostrava o processo e a alegria de alguém fazendo. Isso sanava a ansiedade por um produto. A mediação envolvia mostrar que isso também é produto. O sorriso na criança também é produto.”
“A Vivo em algum momento descobriu que uma das ações mais interessantes de marketing foram os desdobramentos produzidos pela instalação de uma antena próxima a Alter do Chão (Pará) que proporcionou conectividade a uma população que não tinha acesso à telefonia. Os professores começaram a dar aula dentro do barco, começaram a perceber que o acesso à tecnologia poderia incorrer numa dinâmica de mudança social. Começaram a ver a antena de Alter do Chão com um dos grandes projetos da Vivo. Isso nos ajudou a não precisar um comprometimento de resultados, tanto é que a Nuvem nunca precisou de relatório para demonstrar coisa pronta, apenas o logo está no portal.”
“Foi um equívoco pensar o site [do projeto] como divulgação factual e promocional para o ano, e não de conteúdo disponível para um futuro próximo Tinha os videos, mas houve um problema técnico e o material dos anos anteriores não está disponível na web.”
“O Labmovel está parecido, mas é um blog, mais fácil, além do Vimeo e Flickr. E agora investimos em um catálogo para juntar todas as ações do Labmovel até hoje, citando tudo. Para mostrar um resultado, em vista das falhas que a gente perecebeu no site. Há irregularidade de redação. Já os documentários foram feitos sempre com o [Lucas] Gervilla comigo, existe uma afinação que funciona, um formato que funciona. Não é para o patrocinador, é para o projeto, como responsável pela memória do projeto. No Labmovel, com Gisela, isso vira uma responsabilidade de recontar a história para novos contextos.”
“Labmovel é feito para o tamanho que é. Difícil pensar em expansão. Como seria? Criar 5 ou 6 kombis? Fui em quase todas as ações, tenho um envolvimento afetivo. Trata-se de um projeto modesto, que tende a permanecer. Se tiver que expandir, vai ter que encontrar parceiros que queiram levar isso como a gente vem levando, com a mesma paixão.”
“Acreditar no processo laboratorial não é difícil porque a falta de laboratórios é patente. No meu período de universidade, nunca tive acesso a laboratório. Quando fui estudar na Inglaterra, não tinha lá, só depois que eu saí. Dou aula em universidades como SENAC e FAAP que têm recursos, estrutura tecnológica mas não têm pensamento laboratorial. Não se deixa usar aquilo para fins de experiência, de mera experiência, mas só pra trabalho demandado por professores. Isso é um problema na academia, na arte. A gente fica tentando trazer a experiência da ciência para o campo artístico, pela falta dessa dinâmica no campo artístico.”
“Acho que esses processos laboratoriais hoje estão muito conectados com o processo de residência. Quando a gente começou no Labmovel uma residência a gente acreditou que a residência era o dispositivo, a dinâmica que permitiria o trabalho laboratorial. Colocar-se em residência é colocar-se num processo de tentativa e erro, de deixar que coisas surjam, viabilizar ideias que não são as grandes ideias mas são tentativas. Foi virando uma prática mais comum que a dos labs. Porque a residência pode acontecer sem nenhum recurso. Demanda muitas vezes só um espaço, ponto de encontro, a pessoa nem precisa residir de fato, mas ter um espaço, atelier a ser compartilhado. O que precisa tanto para um lab ou residência ou algo que seja uma fusão de ambos não é muita coisa: é espaço, tempo, a soma dos dois, e acesso a alguma tecnologia. [Por exemplo] 'vamos fazer um projeto em torno de uma impressora 3d'.”
“Quando eu comecei como artista, quase pedia desculpas por me ver artista. Não fiz arte, não pretendia. Então sempre coloquei o nome “experimental” nos meus trabalhos: vídeo experimental, experiência. Lab e experiência são duas coisas que estão juntas. Sempre fiz projetos experimentais mesmo não tendo um laboratório. A minha ideia é sempre ter um laboratório para continuar fazendo experiências. O Labmovel é isso, eu nunca fiz um projeto meu no Labmovel, sempre de outros artistas - que tenho certeza que querem esse tipo de oportunidade para fazer experiências. Querem ter essa circunstância - residência, viagem, dispositivo, tecnologia.”
“É uma exposição que é uma experiência e tem um dispositivo que permite um laboratório curatorial. Tem inspiração de outras experiências anteriores, a ideia do SUS, atendimento público, curador de plantão. Não é uma invenção, é um modelo, muitos artistas já fizeram trabalhos em função disso. Vinham, falavam com o curador. Voltavam e ele ainda tentava fazer alguma coisa diferente. Isso tem um parentesco com a questão laboratorial.”
“Multitude não vai ter catálogo impresso. O SESC desaprova isso pelo custo, ecologia e medo do encalhe. E pelo trabalho que dá não justificava ser só em PDF. Sabendo disso, carregamos mais o site com esse compromisso como ponto de reunião de materiais. Tem trabalhos que entraram pela curadoria de plantão que só estão no site. Um dos trabalhos inclusive foi dar uma bagunçada no site. O site vai continuar, é nossa forma de registro. Está no SESC, mas vamos manter um backup em outro servidor.”
“Já participei da elaboração de editais, no arte.mov tivemos o edital de mídias móveis e outro só para a região amazônica, mais um para o sul. Fui da comissão de muitos editais. Sei que há muita dificuldade de entender o experimental. Eu sou sempre o membro que entende o estranho. Raramente surgem editais que dão conta do aspecto experimental. Os poucos que aparecem não duram. Não há interesse em montar uma cena, mas sim de se aproveitar da cena. É o avesso do laboratório, é o avesso da pesquisa. Se não há ressonância de marketing, parece que as iniciativas se apagam.”
“Como exemplo prático, o edital de arte e tecnologia da Telefônica que escolheu o Labmovel teve projetos bem arrojados, muito interessantes, bem-sucedidos. Mas o edital acabou, talvez porque ao valorizar o lado processual eles não tiveram resultados quantificáveis e não acharam que compensava a continuidade. Quando o Labmovel ganhou eu senti o peso da quantidade de gente que estava de olho no edital e me falou 'você ganhou, hein?'. Havia muita concorrência.”
“Pouco antes houve um do MINC, o XPTA, para pensar arte e tecnologia com a vertente da educação. Havia uma expectativa imensa com relação a esse edital. Foi extremamente concorrido, bastante debatido, existia muito interesse que ele acontecesse e continuasse existindo. Mas ocorreu uma única vez. Eu me pergunto: por quê? Por que só uma vez se havia tanta gente interssada nele? Gente de arte e tecnologia, e afins, e social e ativismo e pensando em politicas públicas. Eu digo que haveria lastro de público de interessados para ele continuar por mais 4 ou 5 anos pelo menos, e aí se fazer a avaliação de continuidade ou não. As politicas públicas parecem emperrar no interesse imediatista da gestão daquele momento, do gabinete, do secretário. Muda o secretário, o outro não tem interesse em dar continuidade.”
“Tenho certeza de que a experimentação seria um caminho natural da inovação. Mas parece que por marketing tentaram colocar uma nova embalagem no termo inovação, como uma nova vertente hype, que vem sendo pregada por essa lógica de indústria cultural. Nunca fui simpático a essa ideia por alguns motivos. Vinha como tábua de salvação para uma política que parecia ter caminhos interesantes. Coloca nas mãos da iniciativa privada uma responsabilidade que poderia ser do Estado. Vem com uma roupa de neoliberalismo que não se encaixa na lógica de uma responsabilidade de política cultural dentro da qual a gente vinha acreditando, na medida que deixa na mão do empresariado, mesmo que jovem, e coloca nos mesmos parâmetros de sobrevivência de uma empresa, o lucro. Transformar a experimentação em lucro não acredito que seja o caminho ideal. A experimentação tem que abarcar o prejuízo, o erro, a falta de público. Uma experiência que pode não funcionar agora mas pode funcionar para uma proxima geração. A indústria cultural quer resultados imediatistas, quer resultados que sao muito próximos da ideia de marketing. É uma continuação, um tentáculo mais refinado, capilar, do neoliberalismo.”
Formado em Artes Digitais pelo Instituto Audiovisual da Universidade Pompeu Fabra, Barcelona – Espanha (1997-1998), Pedro Soler desenvolveu uma intensa carreira profissional como criador e agitador cultural. Articulador de inúmeras iniciativas individuais ou coletivas relacionadas com a arte multimídia e o teatro, tais como Fiftyfifty (distribuidora independente de conteúdo multimímida), Dadata (criação audiovisual), Didascalie.net (plataforma para teatro e multimídia), GISS.tv (serviços de streaming com software livre). Curador do Festival Sonar em Barcelona entre os anos 2000 e 2006, artista-programador para teatro em Paris de 2003 a 2006. Entre 2006 e 2009 trabalhou como Diretor de Hangar.org, Centro de Produção de Artes Visuais em Barcelona. Foi curador de diversas exposições. Em 2011 iniciou Plataforma Cero, um centro de produção e pesquisa artística dentro do centro de arte LABoral em Gijón, Espanha. A partir de 2012 participou com oficinas e intervenções no Pixelache (Helsinque), Grec mov|i|ment (La Caldera, Barcelona), LabSurLab (Quito), Summer of Labs (Euskadi/Galizia/Portugal), 404 School Not Found (Intermediae, Madrid), RCK (La Porta, Barcelona), Tecnomagxs (Laboratorio de Arte Alameda, México) entre outras atividades. Atualmente reside em Medelín, na Colômbia, onde colabora com instituições como Casa Tres Patios, Platohedro e Centro de Arte Contemporânea de Quito. Atualmente é consultor do projeto “Taller Público de Experimentación”, um laboratório que será inaugurado no Parque Explora de Medellín (Colômbia) em meados de 2015.
Website: http://root.ps
“A ideia da 'cultura como bosque' vem da observação de como a cultura cresce e é multiplicada, fazendo uma analogia direta do funcionamento da natureza e como a gestão e as políticas públicas poderiam aplicar o ponto de vista da permacultura. A base do trabalho é a escuta, o olhar, ou a atenção. Prestar atenção a tudo o que acontece ao redor, o que realmente existe, o que as pessoas estão gerando e desejando. A partir daí é possível começar a entender o que está acontecendo com a cultura. Muitas vezes achamos que sabemos o que é melhor para os outros, mas às vezes estamos enganados. E a partir do fazer, das práticas é possível construir políticas públicas de gestão e espaços para dar acolhida a este tipo de práticas.”
“A permacultura nos ensina que a natureza já sabe como se organizar. Diferente do sistema industrial, onde se promovem as monoculturas e os cultivos geneticamente modificados, nosso ponto de vista é o da diversidade, dos nichos, este bosque que floresce em múltiplas formas. Aqui a ideia de utilidade, de verdadeiro e falso, de certo e errado deixa de fazer sentido. Imaginamos uma cultura de diversidade imensa com um monte de nichos que procuram o seu lugar. Então o interessante é dar suporte a essa diversidade e fortalecer as culturas, além de apoiar as pessoas nos seus processos de criação. Não devemos esquecer que os gestores culturais não são os criadores, os criadores são a base e toda a gestão deve estar muito conectada com o que está acontecendo na base. E tem que se preocupar em colocar em movimento estratégias e políticas que enfatizem a diversidade e a multiplicidade da produção cultural. Também há uma multiplicidade de formas de sustentabilidade, imaginamos uma mistura de crowdfunding, recursos públicos e privados. Cada projeto tem seu próprio perfil de gestão, financiamento e apoio. Acreditamos que é uma função pública do Estado e dos municípios o apoio desta diversidade cultural (de acordo com a declaração da Convenção sobre a Proteção e promoção da diversidade das expressões culturais da Unesco, em 2005).”
“Outra questão é a mudança da ideia do consumidor e produtor. Esta cultura está mais relacionada ao fazer do que ao consumir, e o que consumimos tende a ser o que é produzido pelos nossos pares. Também pensamos em como a cultura é distribuída e compartilhada, o que leva a considerar a necessidade de estratégias de documentação e gestão do conhecimento. Por isso é importante que os conhecimentos sejam abertos e compartilhados, o que vai além de publicar um documento na internet. Há todo um trabalho para que a cultura seja acessível, replicável, para que seja estendida para além de uma atividade pontual. Um exemplo disso poderia ser o trans-hack-feminismo, que inventamos em 2011 quando aconteceu um encontro do movimento transfeminista na Espanha com o movimento hacker, que aconteceu no Summerlab de 2011 em Gijón (Asturias-Espanha). A partir daí começou a se chamar assim e há uma semana tivemos o primeiro festival trans-hackfeminista em Calafou. Estas coisas vão emergindo, não dá para planejar as práticas. É um exemplo de algo que emerge organicamente e depois tem continuidade, ninguém inventou. Identificar o que está emergindo nas práticas e dar acolhida, arriscar-se a dar espaços para este tipo de práticas.”
“Também temos que considerar como responder às necessidades dos criadores, tanto em termos de espaços e máquinas, e como vamos viver fazendo tudo isso. Não é fácil viver como artista, temos que construir economias mistas, que atravessem as práticas, a partir da replicação de atividades, do conhecimento. Na minha experiência a sustentabilidade vem de sistemas variados, múltiplos e diversos de financiamento. Em 2013 fiz um trabalho de pesquisa no Canadá sobre como se sustentam os artistas digitais. Ninguém se dedicava somente a criar arte. Todos davam aulas, faziam oficinas, outros trabalhos, e todos vivem numa economia mista. É muito diferente financiar um espaço em São Paulo do que no nordeste, ou num lugar afastado. Na Colômbia e no Equador acontece a mesma coisa. Aqui a diversidade pode ser pensada como territorialidade, e a partir das diferentes linguagens de um país multicultural, levando em conta os mecanismos de acesso para toda a população. Há pouco estive como júri para o Ministério da Cultura do Equador e eles tinham um sistema bastante estrito de distribuição pelo território. Você ganha mais pontos se está trabalhando com indígenas, fora dos centros urbanos, num contexto rural, em espaços orientados à transformação social. Não estamos falando somente em dinheiro, mas em sustentabilidade, numa mudança na matriz produtiva do modelo.”
“Durante o processo de pesquisa e criação interativa em teatro, experiências desenvolvidas entre 2001 e 2004, começamos a trabalhar com software de imagem e áudio em tempo real. Começamos então a fabricar protótipos de software e foi montada uma plataforma para socializar essas informações. Era preciso inventar todo um entorno e aí o sucesso de um projeto depende totalmente da capacidade de colaborar, compartilhar recursos, algo fundamental no teatro já que é tão cara a realização. Neste laboratório geramos diversos espetáculos e realizamos oficinas na França.”
“Depois disso passei pro Hangar, que é um lugar importante devido a ter uma comunidade muito ativa em volta, há recursos para contratar uma equipe de trabalho que acompanha e faz a mediação, algo extremamente importante porque um laboratório não pode ser um espaço onde aconteça qualquer coisa: tem equipamentos, as coisas têm que ser cuidadas no seu lugar, há uma série de protocolos para que um laboratório possa funcionar coletivamente.[….] É um espaço de cruzamento das comunidades de desenvolvedores, pessoas que gostam de hackear, e também artistas que procuram criar algo por si mesmos, ou encarregar a realização de um projeto, daí que conseguimos bastante financiamento do laboratório por meio dos pedidos de produção técnica dos artistas. Sempre tem que cuidar do equilíbrio, do espaço ficar disponível para a comunidade. O laboratório tem que ser compreendido como espaço de experimentação e prototipagem, não espaço de produção em massa. Tem que ser possível o erro, a experimentação. Isso pode nutrir também uma rede mais ampla de negócios, de empresas e organizações que depois se encarregam da parte de produção e desenvolvimento. O laboratório nutre outro espaço, não só de artistas de fora mas também de residentes que aproveitam a infraestrutura do lugar.”
“Quando estive no Hangar imaginamos junto com a diretora de La Laboral fazer um encontro anual dos hackers ibéricos em Gijón, Astúrias. O Summerlab é um encontro de uma semana, você vem e propõe um nodo de trabalho, e qualquer um pode participar. A organização é completamente horizontal baseada nos “nodos” ou grupos de trabalho. Cada um vem fazer suas coisas. No início foram 30 ou 40 pessoas, e em 2011 quase 200. Num espaço compartilhado as coisas começam a se misturar e gerar essas diversidades e mutações que estamos buscando propiciar. No caso do Summerlab os encontros em Gijón foram até 2011, mas continuamos realizando em outros lugares. Em 2012 foi em Nantes, Bilbao, Casablanca, Galícia, igual em 2012 e em 2013 na Galícia, Nantes e Casablanca. Esta é uma das estruturas que inspiram e são replicadas. Uma coisa importante é que não havia pressão sobre a produção no Summerlab, não havia tentativa de instrumentalização. A liberdade de pesquisa dos participantes era respeitada, as pessoas podiam trabalhar no que elas queriam. Às vezes isso é chocante. Em 2011 os diretores da Laboral ficaram horrorizados com todas as meninas com corte de cabelo punk, até colocaram seguranças. É importante levar isso em conta para elaborar normas de convivência não baseadas na aparência, mas no que você está fazendo. Isso é fundamental para um contexto latino-americano onde se pretende oferecer acesso massivo a este tipo de recursos. Um acesso aberto e ao mesmo tempo com cuidados de segurança.”
“Pulando no tempo, a renovação do Hangar surgiu também da matriz de Fadaiat e das comunidades de usuários de software livre na Espanha. Estive envolvido no segundo Fadaiat em 2004-2005, era um laboratório em condições precárias para o trabalho e pesquisa temporários. O Summerlab também não é um laboratório fixo, fazia parte da programação de Plataforma Cero, um espaço fixo de produção e pesquisa dentro de La Laboral. Nos últimos anos tenho me interessado muito em projetos que são mais marginais, que tem a ver com a ruralidade, como a Nuvem no Brasil, onde se combinam atividades pontuais com outras continuadas, que vão gerando redes de pessoas e redes de conhecimento. É também o caso do Minkalab na Colômbia. Estes labs voltam-se muito para a questão da mudança da matriz produtiva, de habitar o planeta de outra forma.”
“Na América Latina é importante não importar modelos, mas gerar a partir dos próprios contextos locais e das próprias experiências, isso é absolutamente fundamental. Se a gente voltar para a ideia da cultura como bosque, cada vegetação está relacionada a seu contexto, que oferece condições favoráveis e apropriadas. Não faz sentido tentar transplantar um pinho na Amazônia porque não vai vingar. Temos que observar quais são as necessidades e desejos, e como criamos este espaço, estas estufas, espaços protegidos onde a diversidade pode se manifestar.”
“Um dos critérios são os números, quantidade de pessoas. Outro são as temporalidades, quantidade de tempo. Não é a mesma coisa um grupo de pessoas que se encontra uma ou quinze vezes, onde há repetição ou regularidade. Também a produção de documentos e sua sistematização, são indicadores muito importantes, por exemplo dizer que como resultado foram sistematizados quatro protótipos replicáveis. O compartilhamento destes conhecimentos. E ainda a questão econômica: o que foi gerado não só no contexto do próprio lab, mas os projetos que foram gerados a partir disso. Por exemplo: a pessoa que participou do projeto está agora realizando oficinas, ou trabalhando em outro lugar, etc. É interessante avaliar ao longo do tempo, mas nem sempre é possível. No caso do Summerlab isso acontecia por meio da responsabilidade de cada nodo de documentar sua experiência. De fato a única equipe que recebeu um cachê foi para streaming e documentação, para garantir um bom registro.”
“É preciso ter gente apaixonada, que entusiasma outras pessoas e passa seu conhecimento, pessoas muito antenadas no que está acontecendo, para que estes espaços surjam por meio da identificação das iniciativas de base. Senão ficam vazios e ninguém os utiliza.”
“É nossa tarefa realizar uma reapropriação da ideia de inovação, temos que fazer nosso discurso. Temos que subverter a ideia de inovação a partir de nossas práticas e vivências.”
Susana Serrano é gestora e comunicadora cultural, focada em práticas artísticas que realizam usos sociais e criativos das novas tecnologias. Complementa atividades de pesquisa teórica com a prática em diferentes âmbitos da gestão cultural independente, instituições públicas e organizações privadas.
Trabalha com práticas de “código aberto”, vinculadas ao movimento do software livre e da cultura livre, com destaque para os novos espaços de criação no formato de “laboratorio”. Colaboradora de diferentes veículos de imprensa, produz também conteúdo para diferentes blogs pessoais e redes sociais.
Licenciada em História da Arte pela Universidade de Sevilha, atualmente é doutoranda em Comunicação pela mesma universidade. Também é docente e oferece palestras em centros educacionais, culturais e universidades.
Website: http://susanaserrano.cc
“O Decálogo de Práticas Culturais de Código Aberto1 foi um booksprint2 que organizei e foi dedicado ao trabalho das instituições no âmbito cultural, sem estar restringido às práticas artísticas. O nome código aberto pode confundir, ser entendido como aberto demais e assim apropriado pelo capitalismo. Estas questões são tratadas no livro. Para mim, código aberto significa estar vinculado a uma maneira de fazer as coisas onde a máxima principal é a livre circulação do conhecimento, considerando a arte como um meio de conhecimento. Se a cultura é um direito, precisa seguir parâmetros coerentes com a idéia do aberto que estamos trazendo aqui.”
“Recentemente fui convocada a participar de um novo booksprint sobre o futuro dos centros culturais na Europa criativa. Software e hardware livre são um condicionamento básico. Não se limita à distribuição e às licenças, aqui estamos falando de uma nova visão da cultura que não é só cultura livre mas que também está contagiada da ética hacker, e que não se limita à distribuição. Tem a ver com aproveitar o conhecimento que foi gerado anteriormente, o que já foi criado, procurar a sustentabilidade, algo que os governos nem sempre respeitam porque costumam destruir o que os anteriores fizeram e seguir os interesses dos que governam. Também inclui uma regulação das práticas baseadas no bem comum e na meritocracia.”
“Assim que me formei em história da arte comecei a trabalhar no Centro Andaluz de Arte Contemporânea, e escrevia crítica de arte para o jornal Diario de Sevilla. Comecei a entrar em contato com o circuito de medialabs temporários que começaram a surgir e o movimento de software livre. Não me interessava muito pelo mundo das galerias, e achava que o principal elemento que era preciso transformar era o mercado da arte. Considerava que ele era negativo para a cultura e que gerava uma elite que se afastava do tipo de práticas artísticas do meu interesse. O primeiro projeto que começamos foi o lab Átomos y Bits em 2008, que convocava aos frikis (nerds), daí formamos uma associação para levantar a necessidade em Sevilha de uma infraestrutura similar ao Medialab Prado. Outras referências foram o Hangar, os hackmeetings e o movimento de hacklabs que funcionaram muito bem em centros sociais como o Patio Maravillas de Madrid ou La invisible de Málaga. Para mim todos esses lugares faziam parte de um circuito de medialabs não restrito aos mais institucionais.”
“A experiência do Átomos y Bits foi incrível, lembro que entre os convidados veio o pessoal que depois montou a rede social livre e autogerida N-1, um projeto muito bom que teve seus problemas de sustentabilidade, o que acontece com muitos projetos independentes, mas que trazia a importância de que estamos habitando cotidianamente redes sociais que não são livres, estamos visitando um tipo de centros comerciais como Facebook, Twitter, etc. E todo esse trabalho de conscientização foi muito importante. A gente convidou essas pessoas para que se reunissem e continuassem desenvolvendo seu trabalho. Realizamos oficinas, mesas redondas sobre estes temas. Chegamos a convidar até alguns políticos da cidade, eles não entendiam nada sobre o assunto. Era difícil o diálogo porque não entendiam o que a gente pedia, que basicamente era um espaço com uma mínima estrutura, internet e alguns computadores. Para além do equipamento físico, que poderíamos conseguir de outro jeito, o que sempre pedimos era espaço que pudesse ser autogerido, e que funcionasse como um centro que não se adapta tanto ao que geralmente se conhece como centro de arte, porque inclui outras disciplinas também, mas que está atravessado pela criatividade. Deu certo, conseguimos uma pista de carrinhos abandonada que foi convertida num espaço cênico experimental com boa infraestrutura chamado Pista Digital, com um equipamento de streaming muito bom, tudo feito em software livre, e onde participou muita gente de toda Espanha. Essa foi a primeira experiência, e foi onde me dei conta que tínhamos que continuar nessa linha.”
“A partir daí tenho participado de diferentes redes e eventos, nos Summerlabs em diferentes lugares de Espanha. Acho que o Summerlab tem sido uma das coisas mais significativas, com Pedro Soler liderando de alguma forma essa rede, e é uma pena que tenha se desarticulado mesmo que ainda existam alguns como o pessoal de Alga-lab em Galicia e no País Bsasco também. Em Madri os companheiros de Tabacalera continuam lutando e ainda no Hangar continua havendo atividades bem nessa linha. Mas é uma pena que não haja mais apoio para o Summerlab, porque sabemos que se esses espaços de liberdade e criação não são fomentados, ninguém ganha. Porque a inovação cultural e de conhecimento parte desse tipo de espaços. É a nossa conclusão depois de muitos anos pesquisando e lendo muito, entrevistando muitas pessoas. Sempre houve espaços alternativos, em todas as épocas, temos que ser cuidadosos com tudo que está muito controlado pelo Estado ou pelas empresas privadas. Não há motivos para rejeitar patrocínios públicos ou privados, sempre que seja mantida a autonomia para programar atividades.”
“O projeto Poéticas de Laboratório sobre práticas artísticas de código aberto representou uma volta ao que eu realmente queria estudar. A arte me interessa e começou a me incomodar que nestes medialabs sempre se fala da sociedade, da tecnologia, mas ninguém quer falar de arte, não há critérios ou valoração. Mas na hora de pedir financiamento a etiqueta da arte era utilizada porque serve. Isso me incomodava porque respeito muito a prática artística, considero que é um método de pesquisa tão válido quando o científico. Não são métodos racionais, as metodologias artísticas muitas vezes chegam a um conhecimento mais profundo que depois pode ser aplicado a diferentes áreas. O código aberto é o paradigma atual que segue qualquer prática engajada. Tive a sorte de ter sido selecionada para a residência artística da Nuvem no Brasil em 2012, foi maravilhoso porque convivi com 5 artistas num lugar onde se desenvolviam uma série de projetos muito diferentes, onde vivi o dia a dia, o processo, o intercâmbio de ideias, como se trabalha neste tipo de medialabs inclusive no meio rural, onde há uma preocupação com a sustentabilidade e a ecologia. Selecionamos 6 categorias para definir estes processos, algumas em português e outras em espanhol. Uma delas era mutirão (fazer tudo coletivamente, algo típico destes projetos); refil (relacionado com a reciclagem e o remix de materiais e ideias); poéticas de laboratório (uma reflexão estética sobre estas práticas agrupadas com a etiqueta “laboratório” por ser experimentais e colaborativas) e software livre como ferramenta básica; janelas - porque dialogava com temas de percepção, por exemplo utilizando as tecnologias para se comunicar com a natureza, e essa janela para outra coisa com o componente de pesquisa científica que tinham a maior parte dos projetos.”
“Minha experiência dialogando com as instituições para realizar este tipo de projetos tem sido complicada, porque elas não costumam entender as bases destes jeitos de fazer, daí o valor do esforço de fazer o catálogo de práticas culturais de código aberto, que pretendia ser uma ferramenta de mediação. As instituições têm dificuldades para compreender os tempos, os objetivos [dos laboratórios]. Como não buscamos um tipo de resultados objetivos, é difícil atingir um número de público mensurável para justificar estas práticas, e isso é uma das linhas do meu trabalho. Poéticas de laboratório acabou sendo uma exposição, algo que para mim é um formato obsoleto para este tipo de práticas, mas, por outro lado, foi uma forma de socializar os conhecimentos adquiridos a partir do que foi produzido no medialab. É preciso socializar os processos, porque senão fica difícil validar sua existência e encontrar apoio econômico para continuar. E aí há um grande desafio. As exposições estão obsoletas, mas podem implementar coisas novas dentro deste formato. Nossa experiência foi muito boa, e teve alguns elementos interessantes: não tinha muitos objetos, para que o visitante não ficasse perdido entre um monte de invenções. Foram poucos projetos desenvolvidos coletivamente, um processo que tentou visibilizar os intercâmbios de conhecimento. Também foi muito importante a realização de oficinas, inclusive para crianças, e ainda os debates, as performances.”
“Algumas instituições são mais sensíveis a estas questões. Medialab Prado, Tabacalera, Hangar também. Mas sempre há o risco de que as práticas culturais sejam politizadas de uma forma negativa, especialmente quando se procura espetáculo, número de visitantes. Isso não tem nada a ver com o âmbito que estamos pesquisando, que trata de produzir conhecimento como se fosse qualquer laboratório de química ou genética, e depois compartilhar isso. Agora estamos vendo como fazer isso de forma sustentável.”
“O último projeto que estive envolvida é o festival de cinema Creative Commons de Sevilha, que parte de uma rede de festivais com base em Barcelona, com gente incrível que iniciou o festival promovendo a máxima hacker de “copie este festival” para promover a replicação e facilitar apoio de conhecimento e de material. Isso é genial, oferece uma alternativa aos festivais mais clássicos, à questão da exclusividade. Queremos que os filmes sejam vistos em todos os lugares, principalmente o cinema independente.”
“A arte processual não é algo novo, existe desde o século XX. Lembro muito bem uma exposição do movimento Fluxus no Centro Andaluz de Arte, fiquei triste porque tinham colhido elementos e colocado em vitrines, isso não fazia sentido porque o movimento fluxus teve sentido na ação, quando estava vivo. Morto não fazia sentido algum. A arte tem que ser entendida e respeitada no seu processo vivo e livre. O desafio é o processual, as experiências que às vezes não têm autor, que têm muitos erros, um processo que até diria não pretende nem quer ser “museificado”. Talvez devêssemos entender a cultura de outra forma, sem tantos autores, onde todo o mundo participa. Aquilo de “todo o mundo é um artista” hoje faz todo o sentido, você olha na internet e está cheia de criatividade. O papel das instituições evidentemente tem que mudar. Não dá para fazer exposições da mesma forma. Precisamos estar antenados aos movimentos. Alguns deles são anônimos e somente precisam de apoios pontuais, como residências. Aposto muito na aprendizagem a qualquer idade, nas residências artísticas de produção, e que enxerguemos coletivamente como são as coisas sem tantas etiquetas.”
“Os medialabs que hoje funcionam bem provavelmente estão se perguntando as mesmas coisas que estamos conversando por aqui, tentando resolver. Porque estamos atravessando uma mudança de paradigma que não é tão fácil de resolver. Por exemplo, o fato de que La Laboral tenha deixado de apoiar a realização dos Summerlabs é o típico caso de como uma instituição comete um erro, pois o Summerlab era o mais interessante que oferecia aquela instituição. E a frase “o lab é a rede” que já ouvi de alguns brasileiros é o que sempre tento dizer, às vezes as políticas são feitas de costas para as pessoas, e não se dão conta que cada centro de arte são as pessoas que frequentam o lugar, e se ninguém vai perde o sentido. La Laboral considerou polêmicas algumas performances feitas na última edição, e não entendiam o valor disso tudo, quando vinham artistas de toda Espanha, que não pediam nada em troca, era uma fonte de criatividade incrível, e na trajetória de cada participante talvez tivesse mais importância este evento que qualquer outra exposição. Este tipo de encontro devia acontecer a cada verão. Pessoas desconhecidas conviviam com os artistas, e era o único que fazia entender estas novas práticas porque te convidava a estar dentro. Ninguém fechava a porta e todos podiam aprender.”
“Outra das ações básicas que um centro de arte devia levar à frente é estar em contato com as comunidades, com o que já está sendo feito nas comunidades locais, pelo movimento cidadão. Isso também é perigoso porque muitas vezes as instituições procuram seus benefícios e os coletivos sentem-se um pouco utilizados. Por isso é importante ter bons gestores.”
“Percebo também uma hibridização de perfis. Muitos curadores realizam um tipo de trabalho que poderia ser estudado como o de qualquer artista, inclusive vários artistas vivem do trabalho de curadoria mais do que sua própria obra. É necessário melhorar a formação e o envolvimento dos profissionais da cultura.”
“Nos últimos tempos fala-se mais em comunidades do que redes. Ao falar em comunidades pensamos em pessoas que decidem agrupar-se por afinidades ou interesses em comum, e que cuidam umas das outras nesse processo de convivência, trocando ideias, mas também com a maneira em que as coisas são feitas e nas condições de realização. Neste sentido pode ser mais interessante pensar mais em comunidades do que em redes. As redes são um pouco mais invisíveis, outras são muito extensas e com pouco contato entre si, mas é a nossa maneira de nos organizar, não só na cultura. Quando disse aquilo de “o lab é a rede” quis destacar o fato de que o lab é feito pelas pessoas. Não são os equipamentos, nem os espaços, nem os lugares. Claro que em muitas redes estamos super próximas ao Brasil e à Colômbia, mesmo separadas por tantos quilômetros, e um pouco mais afastados da França, por exemplo, que fica aqui do lado. No Decálogo de Práticas Culturais de código aberto dedicamos um dos capítulos para as comunidades, tentamos explicar a sua importância. E ao falar de centros de arte, prefiro falar em comunidades afins a cada lugar em vez de públicos.”
“As práticas artísticas e culturais são um terreno adubado para a inovação, isso é fato, é real, e muitas empresas já entenderam isso e estão criando espaços com outras dinâmicas para que essa liberdade necessária aconteça, sem estar dirigida a finalidades concretas, para que a inovação se produza de forma útil. Sempre foi assim, temos visto a parte criativa dos engenheiros e os cientistas que acontece se oferecemos as condições necessárias. Por outro lado, há um perigo no discurso que entende a arte e a cultura como motor da economia. Não é assim. Arte e cultura são direitos básicos para o desenvolvimento da sociedade, por muitos motivos. O trabalho de YProductions (livro Innovación en Cultura) é muito bom para entender todo esse processo de empreendimentos culturais e compreender que a cultura é um direito, não um recurso para criar economia porque fabrica coisas. Claro que também pode gerar dinâmicas, pensamento, trabalhos, protótipos que servem para outras produções de empresas. De fato gosto muito da ideia de que a indústria colabore com os artistas. O projeto Conexiones Improbables desenvolveu uma residência com este conceito e foi bem-sucedida. Mas temos que ser cuidadosos com a bandeira da cultura como motor da economia, porque não é como a mentalidade neoliberal quer nos fazer acreditar, e esse discurso está entrando com força na América Latina.”
1Publicação disponível em http://10penkult.cc/ (acessado em 23/08/2014).
2Um booksprint é um encontro de trabalho dedicado a reunir pessoas para produzir uma publicação ou grupo de publicações em tempo curto. É comum que sejam realizados em períodos de 3 a 7 dias.
Em novembro de 2010 celebrou-se na Cinemateca Brasileira, em São Paulo, a segunda edição do Fórum da Cultura Digital Brasileira. Era um evento internacional organizado pelo Ministério da Cultura e pela Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), e articulado em rede através da plataforma colaborativa CulturaDigital.Br. O Fórum acontecia em um momento de grandes expectativas para a cultura digital no Brasil: estava no ar a impressão de que a rede que havia construído a própria ideia de uma cultura digital brasileira teria enfim uma representação institucional capaz de consolidar os muitos avanços obtidos com dezenas de experiências pontuais nos anos interiores.
Um dos temas em debate durante o Fórum eram os laboratórios de cultura digital experimental. Desde abril daquele ano, a Coordenadoria-Geral de Cultura Digital do Ministério investira esforços em entender o cenário de fronteira entre arte, tecnologia, ativismo, educação e inovação no Brasil. Preparava então o lançamento de um edital de bolsas de cultura digital experimental, voltado a resolver algumas das demandas encontradas durante as conversas com diferentes atores durante aqueles meses. Buscava também entender qual seria o papel do próprio Ministério da Cultura dentro do universo de possibilidades no qual aquele cenário se desenvolvia.
Dentro desse eixo de desenvolvimento, já então denominado “redelabs”, o Fórum contaria com dois momentos importantes: um encontro de labs brasileiros e um painel internacional sobre labs.
O painel internacional aconteceu no último dia. Teve a presença do finlandês Tapio Mäkelä contando sobre suas experiências com festivais, encontros e laboratórios de mídia em diversos contextos (inclusive dentro de um barco no mar Báltico). Em seguida, o húngaro Barnabas Malnay contou sobre as atividades do Kitchen Budapest, financiado por uma grande empresa de telecomunicações na Hungria. Por fim, o espanhol Marcos Garcia contou sobre o desenvolvimento do Medialab Prado de Madrid, um dos centros mais importantes trabalhando nos contatos entre produção experimental, dinâmicas sociais e urbanas, e tecnologias. Todas as falas foram comentadas por três respondentes que buscavam promover o diálogo entre as apresentações e o contexto brasileiro: Paulo Amoreira, professor universitário e coordenador do Cuca Che Guevara de Fortaleza; o curador Daniel Gonzalez, criador dos encontros AVLAB; e Miguel de Castro Pérez, então assessor de cultura digital do Centro de Cultura Espanhola de São Paulo1.
Já o encontro de labs brasileiros aconteceu no primeiro dia do Fórum. Cerca de cinquenta pessoas vindas de todas as regiões do Brasil (do Pará ao Rio Grande do Sul) e envolvidas com contextos institucionais muito diversos participaram de uma conversa aberta. O formato escolhido foi o de microapresentações: pediu-se a cerca de 12 convidados que fizessem apresentações de cerca de sete minutos, após as quais todos os presentes poderiam comentar livremente.
A conversa estendeu-se por horas, e ainda assim a presença foi alta até o final. Todos tinham alguma coisa a falar. Houve momentos em que surgiu conflito quase irreconciliável que refletia, naturalmente, condições do próprio cenário que não costumavam ter lugar para ser expostos. Inaugurava-se assim um espaço de debate que, envolvendo desde artistas independentes até coordenadores de programas em instituições com grandes orçamentos, era (e ainda hoje é) raríssimo.
Infelizmente, o contexto institucional do ano seguinte acabaria por inviabilizar a justa expectativa de aprofundar aquelas conversas. Seguem abaixo algumas anotações e trechos de transcrições a partir da íntegra das mais de quatro horas de gravação de áudio daquela tarde2, que ajudam a demonstrar a riqueza desse tipo de conversa e a importância de garantir que seja retomada e desenvolvida a pleno.
Redes de mobilização/ Instituto Sérgio Motta – Giselle Beiguelman
Eita, Porra – Jeraman
Dubversão, Lab C, AECID, Anilla Cultural – Miguel Salvatore
Arte e Cultura Digital em Fortaleza – Paulo Amoreira
Pontão da Eco – Ivana Bentes
Redes experimentais de Cultura Digital no RJ – Adriano Belisário
Orquestra Organismo – Glerm Soares
Musa.cc – Alfakini e Oriel Frigo
Itaulab, em busca de um modelo de sistema viável – Guilherme Kujawski
Autolabs, IP://, Descentro, Nordeste Livre – Ricardo Ruiz
FILE – Eliane Weizmann
Reverberações – Flavia Vivacqua
LabDeBug – Karla Brunet
Lucas Bambozzi
Marginalia Labs / Projects – André Mintz
Nuvem – Bruno Vianna, Cinthia Mendonça, Lula Fleischman
Anônimos e Gratuitos – Thiago Novaes
Projetos experimentais em rede – Ricardo Brazileiro
Laboca – Jarbas Jácome
“Quando a gente pensa em laboratórios públicos, penso na capacidade de diálogo entre essas várias experiências. Penso em como o Pontão da ECO poderia conversar com o Instituto Sérgio Motta, como instituição privada, aí pensando no nível de relação. Quando penso na possibilidade de laboratórios experimentais, penso logo na instalação e aproveitamento de infraestrutura pública e gratuita instalada. A gente já tem uma capacidade instalada de equipamento, câmera, banda larga em universidades públicas, como pontos da RNP. É uma capacidade de banda grande, de armazenamento grande, que por falta de projetos ou de uma visão mais ampla não está disponível para esse tipo de experiências. [….] há nas universidades uma subutilização da banda, da logística, nos finais de semana os equipamentos poderiam ser utilizados pelos projetos de extensão, etc.”
(Ivana Bentes, Pontão de Cultura Digital da ECO-UFRJ, Lab Cultura Viva, Coordenadora da ECO-UFRJ).
“Devíamos discutir com as instâncias públicas maneiras de amenizar essa burocracia, para as instituições que atuam e para as pessoas físicas. No LabMIS temos 50% de espaço disponível para ser ocupado. Quero propor uma estratégia de ocupação desses espaços. uma coisa é um projeto de residência que dá um dinheiro X por 3 meses. Mas por que o cara não pode produzir no laboratório se ele tem como ficar em São Paulo e se manter? Tem que poder usar, é dinheiro nosso, de todos nós.”
(Daniela Bousso)
“Talvez nós devêssemos defender mais espaços livres no éter, como é a questão do espectro aberto, ou livre, onde não se possa fazer comércio, e que esse sim seja um motor de inovação e não essa rede de laboratórios livres onde será produzida a inovação. Ao contrário, assegurar espaços públicos no éter, onde a gente possa ter acesso livre aos meios de produção e experimentar, que é isso que a gente faz, gratuita e anonimamente. Vamos valorizar as nossas infraestruturas, ter um pouco mais de autonomia, de política pública no sentido daquilo que é público, que é de todos, e não no sentido de uma rede de representação sobre o público para oportunamente capturar essa representação.”
(Thiago Novaes, Rádio Muda)
“A gente tem que discutir o comum para além do público, do privado, nos pontos de cultura, de mídia livre, o que for, o MINC, a UFRJ. O que acontece é que hoje essas instâncias não têm uma política 'do comum' em comum, uma inteligência de massa.”
(Ivana Bentes)
“São muitas as dificuldades com o espaço físico e infraestrutura para montar um laboratório na universidade, é muita burocracia.”
(Karla Brunet, sobre o Labdebug)
“A estratégia de laboratórios funciona melhor se não se restringir a uma área específica. É mais interessante reconhecer o trabalho que já existe, e as possibilidades de criar espaços compartilhados entre diferentes mundos.”
(Felipe Fonseca)
“É importante abrir a participação de outros criadores para além dos artistas expositivos e com carreira amadurecida. A complexidade de tecnologia vai criando uma série de potenciais novos criadores e assim são introduzidos novos tipos de projetos.”
(Giselle Beiguelman)
“Antes desse encontro teve um debate no FISL (Festival Internacional de Software Livre) e trago aqui uns pontos que foram conversados lá: não dá para pensar num modelo único de laboratórios de experimentação que possa ser aplicado em larga escala no Brasil inteiro. Seria um erro você pensar um espaço de experimentação a partir de uma estrutura predefinida. Esse trabalho de mapeamento, de ver o que está já acontecendo, de ver essas redes e formar links entre essas redes é um bom caminho. Já existem essas redes espontâneas que trabalham com cultura digital experimental, seja com apoio do governo ou não. No Rio tem várias iniciativas de pessoas que se reúnem de forma totalmente independente. Essas redes já existem, a questão a pensar é como a política pública pode apoiar isso. Como apoiar também as comunidades de software livre, de desenvolvedores, e essas comunidades aprender a lidar com esses apoios sem se centralizar demais, sem se institucionalizar demais.”
(Adriano Belisário, Pontão da Eco e e-motirõ)
“Trabalhar com arte e tecnologia e cultura pressupõe modelos intercambiáveis, modelos interdisciplinares, e um modelo que é oferecido naturalmente pelos cursos tradicionais não satisfaz essa perspectiva (…) nós vamos testar como é que a gente pode criar itinerários formativos escalonáveis, não lineares, voltados para jovens em situação de periferia, pessoas que têm baixa renda e criar coisas interessantes.”
(Paulo Amoreira, sobre o projeto CUCA Che Guevara, em Fortaleza)
“Estruturas pequenas conseguem realizar projetos principalmente por meio de ações em parceria e colaboração com outras instituições.”
(Giselle Beiguelman, sobre Territórios Recombinantes, uma ocupação artística realizada em parceria do Instituto Sérgio Motta com o SPA das Artes de Recife)
“Sem práticas cotidianas você não tem rede. Você pode montar redes independente de qualquer tipo de fomento. Ao falar em redes, estamos falando em cadeias de dependência, todas essas necessidades envolvem essa rede, por isso falamos nisso e não em 'circuitos independentes'. Não é essa coisa do faça-você-mesmo pensando que as pessoas têm o acesso a todo o conhecimento, mas de compartilhar nessa rede de conhecimento e ter acesso a vários nós dessa cadeia.”
(Miguel Salvatore, sobre o Dubversão sistema de som)
“Quando estamos articulados em rede a gente deve potencializar as ações que têm o máximo possível de autonomia. Se a gente depender muito de recurso vindo do poder público, ele é intermitente, não é contínuo. Atrasa prazos, é muito frágil. Qualquer nuvem escura muda completamente as políticas colocadas em prática e pode inviabilizar os processos. Um dos desafios fundamentais é a gente conseguir resolver essa equação.
(Paulo Amoreira, Secretaria de Cultura Digital de Fortaleza).
“Esse trabalho das redes tem uma potência extraordinária, algumas conquistas permanentes já foram assimiladas dentro das políticas públicas mas também fora desses processos. Então a articulação em rede talvez seja um dos caminhos essenciais para a gente manter esse trabalho vivo.”
(Paulo Amoreira)
“Qual seria o potencial desses laboratórios estarem em rede? Tem muitas instituições como pontos de cultura e outros que não estão interconectadas entre si no sentido de compartilhar a produção que está sendo feita. Vão me falar que existe a rede de servidores livres, mas o que eu digo é que o potencial disso ainda é muito pouco explorado. E ainda estamos muito dependentes da internet.”
(Drica Veloso).
“É preciso inverter a lógica de oferecer cultura (teatro, cinema, saraus) para o jovem, que era o objetivo dessa política pública, e começar a enxergar como pessoas que podem produzir esse conhecimento. Há uma dificuldade de compreensão das políticas públicas de atividades fora do eixo de formação e mais vinculadas a desenvolvimento e investigação. Por isso também a dificuldade de contratação de serviços para esse tipo de experiência.”
(Miguel Salvatore, sobre o Centro Cultural da Juventude de São Paulo)
“Destaque para o LabMIS como modelo de um espaço que não se trata de oferecer acesso às máquinas, mas como espaço de produção de conhecimento, disponibilizando técnicos, programadores, pessoas que ajudam nessa produção de conhecimento. O equipamento é principalmente usado em oficinas e residências. [No caso do LabC] há falta de compreensão da Prefeitura de São Paulo de entender um desenvolvedor de software ou o uso de aparatos técnicos como um trabalho cultural, apenas era possível fazer contratos artísticos. Entendiam que isso aí era um técnico e não podia ser um artista.”
(Miguel Salvatore, LabC e AECID)
“Depois do modelo de dar cursos de audiovisual o Pontão da ECO se reestruturou num modelo de laboratórios de pesquisa e experimentação permanentes (LAPEPS), voltados para a área de vídeo, gráfico e web. Em vez de promover um curso com ementa pré-definida, etc. é um grupo de pessoas que se reúne num lugar e hora determinados. Promover um fluxo aberto de pessoas em vez de uma turma fechada de um curso e dar uma liberdade maior de adaptar o que tá sendo oferecido para as particularidades de cada um. Há uma amplitude de público grande: acadêmico, dos pontos, de movimentos sociais, de ocupação, e também escolas dando aula para ensino médio e fundamental.”
(Adriano Belisário, Pontão da Eco)
“Como poderia funcionar a política pública para as pessoas físicas? Não tem que ser exigido um utilitarismo nos resultados da experimentação com código, não precisa virar necessariamente novos produtos de mercado. É como dizer que toda a política pública de cinema tem que ser para a Globo Filmes, só filme que dá bilheteria. Como pensar em políticas públicas que estimulem isso? Como entender essa pessoa como um livre pesquisador, e políticas que promovam esses encontros? Uma ideia é um edital de intercâmbios e residências de pessoas que estão fazendo essas coisas. Além das políticas de instituições, de pessoa jurídica, que existam políticas de pessoa física, que as pessoas possam se visitar, documentar, numa relação direta do cidadão com o governo.”
(Glerm Soares, Orquestra Organismo)
“Tem que ter sim uma pesquisa que dê de cara no erro, que não leve a lugar nenhum. A gente sabe quanto o erro na arte é fundamental e vale ouro. E se chegar em algum produto tem que poder comercializar, tem que ter esse lado da inovação, a gente aqui não está vendo esse investimento do Estado.”
(Patricia Canetti, Canal Contemporâneo)
“Eles [do governo local] querem que a sociedade que frequenta aquele espaço saia com uma formação técnica, então eles não querem que a gente tenha um espaço onde a sociedade possa frequentar para piração, para conhecer a tecnologia e desenvolver projetos pessoais. Querem um espaço que no final do ano dê números concretos: 100 pessoas formadas como técnicos eletrônicos, programadores, administradores de linux, etc.”
(Allan, sobre o Musa de Joinville)
“O que é experimentação? É uma experiência. O foco da arte experimental não é baseado num resultado. O resultado é a própria experiência do fazer. Como a gente pode transformar isso em política. Como exigir esse foco na experiência e não no produto, na articulação, na competição?”
(Cristiano - UFBA)
“A minha experiência laboratorial mais bem-sucedida foi em 86 coordenando um laboratório na UFMG onde só tinha duas câmeras VHS e mais nada, o que gerou uma situação de pesquisa e aprendizado sem compromisso de resultado, como se exige hoje em muitas iniciativas que se pretendem mais laboratoriais. Um laboratório implica tempo, espaço, equipamento e uma comunhão, ou possibilidade de compartilhamento de tudo isso. É um tripé.”
(Lucas Bambozzi, Arte.mov)
“Em alguns momentos é importante ter oficinas, pois tem uma demanda. Também fazemos residências mais longas, tentamos gerar essa convivência que acaba criando essas várias parcerias possíveis e que se vão desdobrando em outros projetos entre pessoas que estão convivendo juntas.”
(André Mintz, Marginália Lab)
“Proposta de Intervenções em espaços não tradicionais e que já têm um grupo de frequentadores - como as lan houses do centro de Recife - com a intenção de aproximar um público mais amplo a projetos de arte e tecnologia, assim como criar instâncias de experimentação e produção de novos projetos.”
(Jeraman sobre o projeto EITA, Porra! – Territórios Recombinantes-PE)
“A gente está pensando em mudar a cara de um laboratório, até para ele não estar fixo num lugar. Por exemplo: o projeto Água é um laboratório, cada expedição no rio Amazonas com artistas é um laboratório. Laboratórios nômades, emergentes, temporários.”
(Jarbas Jácome)
“A gente (arte.mov) precisa do patrocinador, mas tentamos fazer do melhor jeito possível, para que haja liberdade para fazer esses projetos acontecerem. Acho que de novo se a gente conseguir tempo, comprar disponibilidade dos interessados (pra você largar seu freelance por 2-3 meses, você precisa de quanto? vamos nos juntar aqui e fazer um projeto?). Já não é mais equipamento que conta. É essa disponibilidade e vontade de fazer alguma coisa e questões que importam e revelam isso (…) imagino um conceito laboratorial ‘in loco’, que responde ao contexto do lugar, com situações compartilhadas para gerar conhecimento.”
(Lucas Bambozzi, Arte.mov)
“Investigar as possibilidades de desenvolver laboratórios em espaços mais flexíveis e dinâmicos do que as tradicionais instituições como universidades, museus, centros culturais. É importante a construção de espaços que sirvam como referências, que as pessoas possam transitar e saibam que tem coisas acontecendo aí. Talvez seja uma solução mais interessante ligada a pontos de cultura, para servirem como centros de referência um pouco mais fluidos, dinâmicos do que os atrelados a essas instituições.”
(Não identificado)
1O áudio do painel está disponível na íntegra em http://redelabs-org.github.io/blog/painel-laboratorios-experimentais-internet-archive (acessado em 14/08/2014)
2A íntegra em áudio do encontro Redelabs está disponível para download em https://archive.org/details/redelabs2010 (acessado em 04/09/2014).