Este documento compõe a segunda de três etapas do estudo sobre modos de produção de cultura digital situados na fronteira entre arte, ciência, tecnologia, ativismo e educação produzido para a Coordenadoria-Geral de Cultura Digital do Ministério da Cultura do Brasil. Reflete um interesse especial nos arranjos coletivos, espaços de articulação e trabalho, bem como metodologias de desenvolvimento de tais modos de produção. Esta segunda etapa se segue a uma primeira na qual foram oferecidos tanto um panorama do contexto simbólico e institucional representados pela herança do discurso de uma cultura digital brasileira como também um retrato de oito experiências no Brasil, América Latina e mundo que se situam no campo dos laboratórios experimentais em rede.
A presente etapa trata de contextualizar de maneira mais qualitativa e nuançada as características particulares de desenvolvimento de alguns dos mais significativos entre os diferentes modelos de laboratórios experimentais observados. São também oferecidas recomendações para a elaboração e implementação de políticas públicas de cultura digital atentas a construções experimentais, orientadas a uma cultura de abertura e do bem comum, e incorporando reflexões sobre inclusão, diversidade e interdisciplinaridade. Para trabalhar estas questões, lançou-se mão de dois tipos de fontes: entrevistas com atores envolvidos com projetos experimentais passados e correntes; e a retomada dos registros do encontro Redelabs realizado em novembro de 2010 – que até então não foram devidamente analisados.
Ao longo desta pesquisa, tem-se utilizado a imagem do laboratório experimental para denominar arranjos institucionais, métodos colaborativos e processos coletivos bastante diversos. Para delimitar o recorte de experiências dentro do quase inesgotável universo de possibilidades na fronteira entre cultura, educação, arte, tecnologia e comunicação, optou-se por dialogar com o histórico de uma série de modos de trabalho interdisciplinares que estiveram ligados de forma íntima ao surgimento da própria ideia de uma cultura digital com características que lhe seriam particulares. Esta busca não se limitou, entretanto, ao senso comum que via de regra aponta o Media Lab do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachussetts, nos Estados Unidos) como modelo ideal de laboratório. Pelo contrário, com base em trabalhos anteriores (FONSECA, 2014) buscou-se dar visibilidade à pluralidade de iniciativas que podem ser identificadas como laboratórios, para então buscar padrões e indicar caminhos possíveis para o desenvolvimento de políticas públicas relevantes para o setor.
Como sugere Pedro Soler, um dos entrevistados desta pesquisa:
“Na América Latina é importante não importar modelos, mas gerar a partir dos próprios contextos locais e as próprias experiências, isso é absolutamente fundamental. Se a gente usar ideia da cultura como bosque, cada vegetação está relacionada a seu contexto, que oferece condições favoráveis e apropriadas. Não faz sentido tentar transplantar um pinho na Amazônia porque não vai vingar. Temos que observar quais são as necessidades e desejos, e como criamos este espaço, estas estufas, espaços protegidos onde a diversidade pode se manifestar.” (SOLER, 2014).
Neste sentido interessam aqui menos os formatos específicos ou modelos de trabalho pontuais adotados por experiências como o MIT Media Lab do que a maneira como estes modelos e formatos respondem a variáveis que são particulares do cenário onde ele nasce. O Media Lab é herdeiro direto de um contexto que remonta às demandas militares dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Foi lá que se modelaram os formatos de colaboração interdisciplinar que resultariam tanto no surgimento da bomba atômica quanto da cibernética enquanto área do conhecimento. O Media Lab surge neste contexto, ligado a uma Universidade de elite estadunidense, bancado com recursos da indústria (e ainda de setores militares), associado de forma íntima a braços midiáticos como a revista Wired e as conferências TED, sempre adotando uma postura explícita de utopismo tecnológico1. Tem uma expectativa intrínseca de geração de conhecimento aplicado formatado como propriedade intelectual (e assim fechado, restrito e disseminado exclusivamente através de mercados).
Não se trata de questionar a legitimidade do internacionalmente reconhecido Media Lab, que é de fato um caso central. É necessário entretanto colocá-lo lado a lado com outras iniciativas de igual ou maior importância dentro do recorte temático com o qual se trabalha neste estudo. O Media Lab do MIT surge fortemente influenciado pela gradual aproximação entre a contracultura hippie estadunidense dos anos sessenta e setenta do século passado, e o capitalismo informacional – em especial na nascente indústria de tecnologias de informação que a partir dos mesmos anos setenta desenvolveu-se exponencialmente. Entretanto, outras narrativas sobre laboratórios interdisciplinares devem também ser levadas em conta. É o caso, por exemplo, de uma vertente que surge na Europa com traços do situacionismo de maio de 1968, bebe da postura punk do faça-você-mesmo na década seguinte e toma corpo nos hacklabs politicamente situados e articulados com o movimento squatter em diversas cidades europeias nos anos oitenta e noventa. Eles criam um campo que, mesmo que por vezes desenvolvam atividades similares àqueles laboratórios institucionais e corporativos, elabora um discurso e um imaginário totalmente diversos (FONSECA, 2014).
Da mistura entre a postura mais contestadora dos hacklabs europeus originais e a disseminação de um imaginário construído como formação de uma cultura digital por todas as camadas da sociedade, outros formatos passaram a fermentar. Os hackerspaces, por exemplo, surgiram a partir dos hacklabs mas ganharam muito terreno depois que grupos de hackers estadunidenses participaram de uma edição da Chaos Computer Conference na Alemanha. No retorno aos Estados Unidos, trataram de implementar seus próprios labs. Estes hackerspaces estadunidenses não poderiam evitar uma postura mais permeável à inovação com objetivos comerciais e ao imaginário das tecnoutopias encontradas no MIT Media Lab e de modo mais geral na cultura daquele país. Por outro lado, novos formatos que surgiram no seio do Media Lab como os Fablabs – laboratórios de fabricação digital – dariam origem aos makerspaces, espaços mais orientados à solução de problemas particulares do que às expectativas industriais daqueles (ibidem).
Nos dias de hoje, essas e outras narrativas se misturam e influenciam mutuamente. Segundo Atau Tanaka, existiriam diversas configurações para os labs:
“Labs industriais ligados a corporações de tecnologia (inspirados em laboratórios de pesquisa como os Bell Labs), labs de artemídia (centros como o austríaco Futurelab em Linz, ligado ao festival Ars Electronica, ou o ZKM em Karlsruhe, na Alemanha), labs universitários diretamente inspirados no próprio MIT Media Lab (como o Media Lab da Universidade Aalto de Helsinque), e por fim (….) laboratórios comunitários (como o Medialab Prado de Madri e o Kitchen Budapest – também conhecido como KiBu – na Hungria).” (TANAKA, 2011)
A categorização proposta por Tanaka esbarra, entretanto, nas implicações de uma delimitação estreita de objeto. Ele trata essencialmente de laboratórios institucionais e com pretensões de estabilidade. Ou seja: deixa de incorporar tanto aquelas experiências situadas à margem da formalização organizacional quanto outras que são – por vezes intencionalmente – efêmeras. A seguir-se esta definição deixaríamos de valorizar o potencial criativo, a pluralidade de formatos de trabalho e postura política presentes nestas áreas híbridas e dinâmicas.
Sem prejuízo aos laboratórios institucionais mencionados por Tanaka, é importante que a elaboração de políticas públicas que dialoguem com laboratórios experimentais também levem em conta iniciativas como os hacklabs e hackerspaces, os fablabs e makerspaces, além de diversos formatos como labs temporários, intervenções urbanas, residências artísticas e ocupações culturais.
É comum que tais labs ampliados mantenham um relacionamento dinâmico e produtivo com outras formas institucionais – o ateliê, o estúdio de produção, a escola, o museu –, sem entretanto submeter-se totalmente à lógica de funcionamento destas formas. O que os caracterizaria como labs é de fato esta postura avessa à cristalização de expectativas. Já se falou aqui anteriormente a respeito do lab como espaço em branco. Isso dialoga com o conceito de colaboração que Florian Schneider sugere no post "Colaboração - 7 notas sobre novas formas de aprender e trabalhar juntos"2:
"As colaborações são os buracos negros dos regimes do conhecimento. Elas intencionalmente produzem vazio, opulência e mau comportamento. E a própria vacuidade delas é sua força."
Essa visão expandida dos laboratórios também dialoga com a perspectiva de permacultura apresentada na entrevista com Pedro Soler:
“A ideia da 'cultura como bosque' vem da observação de como a cultura cresce e se multiplica, fazendo uma analogia direta do funcionamento da natureza e como a gestão e as políticas públicas poderiam aplicar o ponto de vista da permacultura. A base do trabalho é a escuta, o olhar, ou a atenção. Prestar atenção a tudo o que acontece ao redor, o que realmente existe, o que as pessoas estão gerando e desejando. A partir daí é possível começar a entender o que está acontecendo com a cultura. Muitas vezes achamos que sabemos o que é melhor para os outros, mas às vezes estamos enganados. E a partir do fazer, das práticas é possível construir políticas públicas de gestão e espaços para dar acolhida a este tipo de práticas.” (SOLER, 2014).
Outro aspecto a levar em conta é a ideia de circuitos de eventos, nos quais a ideia de laboratório desenvolve-se de maneira algo diversa. Isso se dá em três níveis de articulação: o festival como catalisação de ações pontuais, o festival como justificativa para ações permanentes, e a circulação entre festivais. O Festival Future Everything (Manchester) propõe a ideia do “festival como laboratório”: o acontecimento do evento funciona como catalisador para a articulação de atividades, o desenvolvimento de protótipos e a troca de experiências. Temáticas desenvolvidas pelo evento atraem pessoas interessadas em debater, criticar e propor soluções para questões locais. Diversos eventos têm seus próprios projetos permanentes ou periódicos, como o caso da Pixelversity ligada ao festival Pixelache (Helsinque). E muitos atores importantes da cultura digital, da arte eletrônica e da arte-ciência frequentam eventos ligados a um circuito internacional: os próprios Future Everything e Pixelache, e ainda Ars Electronica (Linz, Áustria), Interactivos? e ISEA (itinerantes), FILE (São Paulo), Transmediale (Berlim), entre outros. Este circuito proporciona uma troca continuada de experiências, explorando diferentes configurações contextuais e institucionais. Argumena-se aqui que no contexto brasileiro pode ser útil pensar também em termos de um circuito contando com eventos independentes uns dos outros, acontecendo em diferentes localidades, mas trabalhando de forma coordenada.
1Richard Barbrook e Andy Cameron identificam o utopismo digital como base e reflexo do que chamam de “ideologia californiana” - as crenças de que quase todos os problemas do mundo poderiam ser resolvidos com tecnologias de comunicação digital desenvolvidas por empresas privadas (BARBROOK; CAMERON).
2Post disponível no website http://www.kein.org/node/89 (acessado em 16/08/2014)