Com o objetivo de contribuir para a formulação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento de produção criativa em cultura digital, elenca-se a seguir uma série de propostas de encaminhamento. Elas baseiam-se tanto na leitura do contexto corrente a partir de pesquisa e entrevistas com atores relevantes nos cenários brasileiro e internacional, quanto em um histórico pregresso de iniciativas institucionais e informais no país que dialogam com as temáticas deste estudo.
Entre os incômodos expressados por praticamente todas as pessoas entrevistadas ou consultadas, são centrais a fragmentação e a falta de continuidade das ações de políticas públicas voltadas às áreas de fronteira entre a cultura e a tecnologia, entre a arte e a ciência, entre a experimentação e o mercado. Sugerem a necessidade de desenvolver por um tempo mais prolongado mecanismos que frequentemente foram implementados como pilotos (um entrevistado propõe que se mantenham por cinco anos, para só depois avaliar o sucesso dos modelos implementados).
Especial relevância neste contexto têm uma série de iniciativas desenvolvidas entre os anos de 2009 e 2010 no entorno do Ministério da Cultura. É o caso de editais como os prêmios de Mídia Livre e Cultura Digital. O primeiro foi criado a partir de um intenso diálogo com atores e eventos envolvidos com o campo da Mídia Livre do Brasil. A criação do edital contribuiu para consolidar um conceito de mídia livre particularmente brasileiro. Já o prêmio de Cultura Digital deu reconhecimento institucional e concedeu maior autonomia de ação para iniciativas que haviam participado intensamente da construção do campo da cultura digital dentro do universo das políticas públicas de cultura. Ambos os editais, juntos, premiaram dezenas de projetos que dariam muitos frutos nos anos seguintes. O Mídia Livre chegou a ter duas edições, e desapareceu do horizonte.
Ainda dentro das ações do Minc consideradas próximas por atores envolvidos com projetos e laboratórios experimentais experimentais encontra-se o edital XPTA. Neste caso, os comentários são mais ambíguos. Mesmo à época, alguns potenciais interessados reclamavam da excessiva burocratização e engessamento do formato do edital, que previa que os proponentes coordenassem uma série de subprojetos. Por outro lado, a orientação explícita do XPTA à pesquisa em novas mídias é tida como um ponto a favor, que legitima a área. O mesmo se dava no caso da Bolsa Funarte de Produção Crítica sobre Conteúdos Artísticos em Mídias Digitais/Internet, que declarava claramente a internet como campo de produção cultural.
Lucas Bambozzi, artista e curador entrevistado para esta pesquisa, considera que
“Há muita dificuldade de entender o experimental. Eu sou sempre o membro que entende o estranho. Raramente surgem editais que dão conta do aspecto experimental. Os poucos que aparecem não duram. Não há interesse em montar uma cena, mas sim de se aproveitar da cena. É o avesso do laboratório, é o avesso da pesquisa. Se não há ressonância de marketing, parece que as iniciativas se apagam. Exemplo prático, o edital de arte e tecnologia da Telefônica que escolheu o Labmovel teve projetos bem arrojados muito interessantes, bem-sucedidos. Mas o edital acabou, talvez porque ao valorizar o lado processual eles não tiveram resultados marqueteiros e não acharam que compensava a continuidade. Quando o labmovel ganhou eu senti o peso da quantidade de gente que estava de olho no edital e me falou 'você ganhou, hein?'. Tinha muita concorrência. Pouco antes teve um do MINC, o XPTA, para pensar arte e tecnologia com a vertente da educação. Havia uma expectativa imensa com relação a esse edital. Foi extremamente concorrido, bastante debatido, existia muito interesse que ele acontecesse e continuasse existindo. Mas ocorreu uma única vez. E eu me pergunto: por quê?” (BAMBOZZI, 2014).
Como vemos, a falta de continuidade de tais iniciativas, que muitas vezes tiveram somente uma edição, é apontada como causa de insegurança e dificuldade de planejamento para ações mais aprofundadas e prolongadas. É fundamental que a elaboração de políticas públicas para a cultura incorpore algumas destas percepções.
Durante o Fórum da Cultura Digital Brasileira de 2010, o Ministério da Cultura chegou a anunciar um edital de bolsas de cultura digital experimental que deveria ser publicado por aqueles dias. A elaboração do edital, a exemplo do Mídia Livre, tinha se baseado em um diálogo, então em andamento, com diferentes grupos e instituições interessados no tema1. As transformações nas circunstâncias políticas acabaram fazendo com que o edital fosse deixado de lado. Esta consultoria considera hoje fundamental retomar a articulação de mecanismos de apoio voltados especificamente para a produção experimental em cultura digital que garantam autonomia, capacidade de planejamento, possibilidade de cooperação, longevidade e liberdade de experimentação. Não se trata simplesmente de lançar o edital que foi deixado de lado, mas de reformulá-lo de acordo com as novas condições da cultura digital sobre as quais falou-se no produto anterior. Os tópicos abaixo trazem elementos que podem colaborar com essa construção.
No primeiro produto deste levantamento, foi encontrada uma dificuldade em particular: a efemeridade da documentação digital sobre projetos experimentais. Surgiram desde links apontando para páginas que não existem mais até websites que cumpriam uma função meramente promocional, não se prestando a uma memória mais aprofundada dos eventos acontecidos e atividades desenvolvidas. E isso não se limita às iniciativas informais ou precárias. Pelo contrário, foi possível comprovar que alguns dos projetos que tinham acesso a mais recursos foram aqueles nos quais a documentação demonstrou-se mais efêmera. Muita informação que seria valiosa - para fins de memória coletiva, como material de pesquisa, curadoria, replicação e inspiração para outros projetos - perdeu-se pela ausência de um pensamento de longo prazo neste particular.
A promoção de uma cultura distribuída e compartilhada implica, segundo Pedro Soler, considerar a necessidade de estratégias de documentação e gestão do conhecimento. Por isso, “é importante que os conhecimentos sejam abertos e compartilhados, o que vai além de publicar um documento na internet. Há todo um trabalho para que a cultura seja acessível, replicável, que seja estendida para além de uma atividade pontual.” (SOLER, 2014).
Para Susana Serrano, pesquisadora e produtora cultural, a perspectiva das Práticas Culturais de Código Aberto traz “uma nova visão da cultura que não é só cultura livre mas que também está contagiada da ética hacker, e que não se limita à distribuição. Tem a ver com aproveitar o conhecimento que foi gerado anteriormente, o que já foi criado, procurar a sustentabilidade”. (SERRANO, 2014).
Entende-se pelo exposto que políticas públicas voltadas a arranjos experimentais em cultura digital precisam necessariamente incorporar estratégias de documentação que atuem em três diferentes âmbitos:
a) A comunicação processual através de ambientes online de comunicação colaborativa. Trata-se aqui menos de uma estrutura para a publicação de conteúdo finalizado do que de instrumentos que facilitem a gestão distribuída de iniciativas coletivas. Neste quesito, são usualmente utilizadas ferramentas colaborativas como wikis (ambientes de edição coletiva), pads (editores de texto colaborativos e em tempo real), grupos de e-mail, blogs, acervos para imagens, áudio e vídeo, entre outros.
b) A divulgação de atividades em curso com o objetivo de atrair colaboradores, patrocinadores, público e visibilidade. As redes sociais e weblogs aparecem aqui, junto a mídias tradicionais como rádio, jornais e TV. É comum também o uso de mídia impressa de alcance local, com cartazes e flyers que podem ainda ser compartilhados digitalmente.
c) O registro final de atividades. É frequente que se utilizem vídeos editados, catálogos, relatórios formais, assim como compilações que relatem repercussão na mídia ou seleções de material produzido durante ou a partir dos projetos. Aqui deveria entrar uma perspectiva mais ligada às discussões sobre acervos digitais, que adote uma política de disponibilização de materiais com licenças livres que garanta seu acesso e reutilização em outros contextos, quando for o caso.
Além de facilitar o acesso à memória das atividades, uma estratégia de documentação dialoga com a ideia de uma cultura de abertura, da qual falou-se no primeiro produto. Oferecendo material que pode ser acessado, reinterpretado e no limite remixado, estaremos contribuindo para o universo de conteúdo disponível à humanidade e com a construção da ideia de bens comuns e de diversidade cultural como fundadora do campo do digital.
Neste sentido, Lucas Bambozzi, destaca a importância de uma documentação consistente dos processos não só em termos de memória coletiva, mas como maneira de avaliar as práticas experimentais:
“O produto está sobretudo na documentação feita, que mostra tanto o processo quanto o potencial de afecção, de encantamento e transformação. A ideia [do Arte.mov e Labmóvel] não era gravar só o resultado, era gravar enquanto estava acontecendo, fazendo, depois que parou de fazer, e gravar depois da coisa pronta. [...] Quando o patrocinador cobrava o produto, a gente mostrava o processo e a alegria de alguém fazendo. Isso sanava a ansiedade por um produto. A mediação envolvia mostrar que isso também é produto. O sorriso na criança também é produto.” (BAMBOZZI, 2014)
No caso do Arte.mov, o artista e curador entende que “foi um equívoco pensar o site [do projeto] como divulgação factual e promocional para o ano, e não de conteúdo disponível para um futuro próximo”. (ibid.)
Redes sociais também costumam funcionar como catalisadoras de participação e debate. Correntemente utilizam-se as redes sociais corporativas como Facebook, Twitter e em menos escala o Google Plus. Isso cria diversas complicações no que tange à autonomia (depende-se da perpetuação da gratuidade destas plataformas, ou antes da manutenção da situação presente, de troca do uso gratuito pela captura de dados pessoais para venda de perfis ao mercado publicitário), à privacidade (como episódios internacionais recentes demonstram, não existe privacidade absoluta nas redes sociais corporativas) e à memória de longo prazo (é relativamente complexo ter acesso a posts passados em tais plataformas). Tudo isso sem falar nas políticas de censura e moderação que seguem critérios frequentemente obscuros e potencialmente conflitantes com a preocupação com diversidade cultural. Uma estratégia de documentação apropriada para tal contexto demandaria o estímulo à criação de outras redes sociais.
O ambiente online CulturaDigital.Br, criado pelo Ministério da Cultura como uma rede social de weblogs e fóruns de discussão, poderia ser um ponto de partida interessante para experimentar com tais estratégias. Mas é necessário um reposicionamento que proponha a migração de uma postura que oferecia uma infraestrutura centralizada de publicação de conteúdo para uma que se proponha a facilitar também a documentação distribuída de processos abertos e a ampla divulgação de atividades.
Uma solução que se proponha a funcionar como ambiente de criação, gestão e registro precisa incorporar alguns elementos importantes do debate contemporâneo sobre redes sociais. Um dos principais é sua configuração como rede descentralizada e federada. Ou seja, permitir que um usuário de uma determinada rede social possa relacionar-se com outras, mas mantendo seu universo de relacionamentos e contatos com usuários de outras redes. Existem nos dias de hoje instrumentos como o OpenID, a autenticação federada e os protocolos abertos de intercâmbio entre diferentes sistemas que caminham justamente nesta direção.
Deve-se também promover a integração com possibilidades versáteis como pads, repositórios git, acesso e uso em plataformas móveis, chats via XMPP e compartilhamento na nuvem. É ainda interessante a utilização de padrões como o RSS ou mesmo APIs específicas para garantir o intercâmbio de dados. A portabilidade é outro tema importante: assegurar que os usuários possam, a qualquer momento, decidir mudar para outro sistema similar e levar junto seus dados e contatos.
Nos dias de hoje, até como resposta às crises que emergiram entre as redes sociais corporativas em anos recentes, existem diversas plataformas livres e abertas que propõem-se à criação de redes sociais temáticas e autogeridas e acabam incorporando alguns dos elementos citados acima. Exemplos dessa construção são Lorea, Pump.io, Diaspora, Friendica/Rede Matrix, Corais, Kune, Noosfero, entre muitas outras. Também plataformas abertas já estabelecidas e amplamente utilizadas como Drupal e Elgg são utilizadas cotidianamente para cumprir a função de comunicação em um sentido amplo. A plataforma CulturaDigital.Br poderia apropriadamente adotar alguma destas tecnologias para criar novas possibilidades, e com este movimento também colaborar para o desenvolvimento das próprias tecnologias.
Uma variável particularmente clara percebida no contato com diferentes atores envolvidos com a arte e a cultura digitais no Brasil foi a carência por instrumentos de incentivo à curadoria de acervos e documentação já existentes. Registros em áudio e vídeo de eventos como, por exemplo, o festival Mídia Tática Brasil 2003, estão praticamente abandonados e correndo risco de desaparecerem. Para não falar no Estúdio Livre, no Findetático, no LAMiMe, LabX, entre centenas de outros eventos e projetos. Aqui não se trata somente da falta de infraestrutura digital para disponibilização de material: faltam também maneiras de garantir o tempo de trabalho necessário para selecionar, editar e publicar versões públicas. É importante que estratégias voltadas a acervos incorporem essa necessidade de valorização, curadoria e manutenção, já ensaiada em alguns editais mas ainda não estruturada para o longo prazo.
Em anos recentes, o laboratório experimental como modelo de organização e metodologia colaborativa recebeu no Brasil significativas contribuições, advindas de projetos que espontaneamente passaram a identificar-se com formatos assemelhados. Teve relevância também o intercâmbio de iniciativas brasileiras com projetos internacionais como os encontros Labtolab, Future of the Lab, Labsurlab, Summer of Labs, entre outros. O website Rede//Labs cumpriu o papel de registrar algumas etapas, ainda que de maneira descontínua2. Ainda assim, faz falta por aqui um esforço continuado e estruturado de pesquisa e mapeamento de laboratórios que volte os olhos para particularidades do contexto brasileiro, ajudando a construir uma visão de cenário e a estabelecer o contato entre indivíduos, grupos e instituições com interesses em comum. É importante estabelecer maneiras de acompanhar as diferentes iniciativas institucionais, dar visibilidade a arranjos emergentes, abrir espaço para novos talentos e contribuir com a circulação de resultados.
A ideia de um Meta-Laboratório dialoga tanto com a imagem do “observatório” (que essencialmente volta os olhos a determinado horizonte) quanto com a do “participatório” ou “colaboratório”, que lança mãos à obra para trabalhar e interferir em dinâmicas concretas. Um bom começo poderia ser uma plataforma digital colaborativa que recebesse material de atores diretamente envolvidos com as iniciativas em questão, podendo também repercutir periodicamente em edições impressas.
Complementarmente, é essencial a realização de encontros periódicos com a finalidade de tratar de questões concretas dos labs e projetos experimentais, e possibilitar a troca de conhecimento instrumental. Não se trataria aqui meramente de dar visibilidade à produção de cada espaço ou ação, ou então de colocar seus agentes em uma posição de ensinar o que quer que fosse, mas sim de trabalharem conjuntamente em metodologias e desafios comuns aos diferentes contextos e composições, inclusive aquelas não institucionalizadas.
Como já exposto anteriormente, aquelas iniciativas aqui chamadas laboratórios experimentais costumam por hábito trabalhar em rede - tanto em busca de recursos e infraestrutura quanto na forma de colaborações, trocas de conhecimento e definição de temáticas. É interessante que se incentivem estas cooperações em diversas formas: promovendo encontros locais e regionais em pequena escala; criando mecanismos através dos quais grupos de labs possam atuar em consórcio para realizar projetos e eventos maiores; e desenvolvendo, como exposto acima, ferramentas digitais que possibilitem a documentação de processos e entregas. Ao criar uma instância permanente de mapeamento, articulação de discurso e troca de referências a respeito dos laboratórios experimentais, pode-se combater a sensação de reinvenção da roda e de isolamento de ações que por vezes acomete o cenário. Como sugerido anteriormente na entrevista com Jorge Barco do MAMM de Medellín:
"em vez de inventar um novo laboratório, captaram o que já estava acontecendo (coletivos, artistas, comunidades) e os agregaram em ações criativas específicas, desenhadas pelos próprios labs, que transitam pela arte, o ativismo, tecnologias livres, a colaboração. O papel do museu, neste sentido, é atuar como agregador e catalisador desses grupos e aproveitar sua plataforma e posição como conector, oferecendo condições e estimulando o intercâmbio entre iniciativas já existentes, fortalecendo as experiências e promovendo novos desdobramentos e agregações." (BARCO, 2014).
Uma das dificuldades impostas a quem tenta desenvolver projetos experimentais de cultura digital no Brasil é o que se poderia definir como um descompasso entre, de um lado, os anseios de artistas, pesquisadores, ativistas, educadores e produtores, e de outro as expectativas das instituições que atuam nas áreas que se relacionam com essa produção. Se os primeiros estão interessados em explorar o universo de possibilidades que reside no contato entre cultura e tecnologias - tanto em termos de linguagem e de diálogo com a produção em outras localidades quanto de engajamento político e transformação social –, as últimas preocupam-se em atingir o máximo possível de resultados com os recursos que investem.
O problema é que, por definição, processos experimentais não têm critérios claros de avaliação. Se a intenção é proporcionar a exploração de novas linguagens, desenvolver protótipos de novas bases de construção de conhecimento, identidade e inserção no mundo, qual seria a maneira de mensurar seus resultados?
Pedro Soler assinala alguns critérios a levar em conta na hora de avaliar este tipo de práticas de laboratório:
“Um dos critérios são os números, quantidade de pessoas. Outro são as temporalidades, quantidade de tempo. Não é a mesma coisa um grupo de pessoas que se encontra uma ou quinze vezes, onde há repetição ou regularidade. Também a produção de documentos e sua sistematização, são indicadores muito importantes, por exemplo dizer que como resultado foram sistematizados quatro protótipos replicáveis. O compartilhamento destes conhecimentos. E ainda a questão econômica: o que foi gerado não só no contexto do próprio lab, mas os projetos que foram gerados a partir disso. Por exemplo: a pessoa que participou do projeto está agora realizando oficinas, ou trabalhando em outro lugar, etc. É interessante avaliar ao longo do tempo, mas nem sempre é possível. No caso do Summerlab isso acontecia por meio da responsabilidade de cada nodo de documentar sua experiência. De fato a única equipe que recebeu um cachê foi para streaming e documentação, para garantir um bom registro. ” (SOLER, 2014).
Na ausência de uma maturidade institucional que saiba interpretar construções processuais dinâmicas orientadas à criação do novo e do comum, é muito frequente que se lance mão de empréstimos de áreas já consolidadas e portanto mais fáceis de explicar à burocracia. Em vez de uma avaliação qualitativa ou da abertura a resultados imprevistos, fala-se frequentemente em “alunos”, “oficinas”, “apostilas” ou então “obras”, “exposições”, e também “atendimentos” ou então “visitações”. Esse tipo de condicionamento de resultados acaba por influenciar os próprios formatos de trabalho: a intenção de desenvolver processos criativos abertos - e por vezes sem um direcionamento claro de antemão - transforma-se em “oficinas”, onde “facilitadores” trabalharão com “oficinandos” qual professores e alunos. Ou seja, o que se iniciava como um processo de exploração adota um formato de edcucação. Ainda pior, por tratar-se de uma compreensão superficial do que seja a educação, baseia-se numa expectativa estática de “transmissão de conteúdo” que já foi suficientemente criticada dentro do universo das pedagogias contemporâneas. O resultado é que nem educação nem experimentação desenvolvem seu pleno potencial.
Mesmo que se falasse de uma educação mais aberta, entretanto, ainda estaríamos tratando de uma construção que leva a distorções. Como já referido em outros trabalhos (FONSECA, 2011), o ensino é essencial para o pleno desenvolvimento dos usos culturais das tecnologias - mas não pode ser o único modo de trabalho. Se partimos do princípio de que aquele que proporciona o ensino e aquele que o recebe têm posições fixas no processo, estamos indo na direção oposta da experimentação livre e aberta. É necessário pensar em dinâmicas mais inclusivas, flexíveis e abrangentes. De fato, em vez de transformar o laboratório em sala de aula temos assistido a tendência em propor justamente o contrário: fazer a escola sediar iniciativas de corte experimental, como comentado no primeiro produto deste levantamento:
"[enxerga-se] o potencial da própria escola (….) como infraestrutura passível de intervenção e reinvenção. (….) Mas é necessário espaço mais aberto à informalidade, indo além da lógica da '‘formação’' e do formato de '‘oficinas’' e atividades mais estruturadas."
Da mesma forma, associar a produção experimental a uma expectativa de obras acabadas ou exposições também pode fazer com que os envolvidos dispendam energia demais trabalhando em coisas que passam longe de suas aspirações iniciais.
Como explica Susana Serrano:
“As instituições têm dificuldades para compreender os tempos, os objetivos [dos laboratórios]. Como não buscamos um tipo de resultados objetivos, é difícil atingir um número de público mensurável para justificar estas práticas, e isso é uma das linhas do meu trabalho. Poéticas de laboratório acabou sendo uma exposição, algo que para mim é um formato obsoleto para este tipo de práticas, mas, por outro lado, foi uma forma de socializar os conhecimentos adquiridos a partir do que foi produzido no medialab. É preciso socializar os processos, porque senão fica difícil validar sua existência e encontrar apoio econômico para continuar. E aí há um grande desafio. As exposições estão obsoletas, mas podem implementar coisas novas dentro deste formato. Nossa experiência foi muito boa, e teve alguns elementos interessantes: não tinha muitos objetos, para que o visitante não ficasse perdido entre um monte de invenções. Foram poucos projetos desenvolvidos coletivamente, um processo que tentou visibilizar os intercâmbios de conhecimento. Também foi muito importante a realização de oficinas, inclusive para crianças, e ainda os debates, as performances.” (SERRANO, 2014).
É importante insistir: exposições são certamente importantes ferramentas de consolidação de reflexões, circulação de produção e formação de público. Mas se temos um foco na experimentação, precisamos aceitar que o processo de testes, erros, aprendizados e mudanças de rumo será por vezes muito mais rico do que eventuais produtos finais. Como afirma Lucas Bambozzi:
“Tenho certeza que [a experimentação] seria um caminho natural da inovação, mas parece que por marketing tentaram colocar uma nova embalagem nesse termo inovação. Como uma nova vertente hype, que vem sendo pregada por essa lógica de indústria cultural. A experimentação tem que abarcar o prejuízo, o erro, a falta de público. Uma experiência que pode não funcionar agora mas pode funcionar para uma próxima geração”.
Em outras palavras: labs experimentais até podem funcionar como escolas, mas não devem necessariamente fazê-lo e provavelmente não devem fazê-lo o tempo todo. Da mesma forma, podem operar como museus, mas não devem necessariamente fazê-lo, ou o tempo todo. Pareceria mais útil pensar em redes de projetos colaborativos trabalhando como ocupações culturais.
Recentemente tive a oportunidade de oferecer uma pequena colaboração à elaboração de um programa de alcance nacional que tem por objetivo oferecer novas perspectivas sobre cultura naquilo que se relaciona à inclusão digital. Os envolvidos, com larga experiência tanto em projetos culturais e artísticos quanto na implementação de políticas culturais, estavam desenhando o projeto em um formato relativamente pesado: previam a contratação de uma equipe fixa de dezenas de pessoas, que bateriam ponto em locais distribuídos por todo o Brasil. Tal modelo supunha que a inteligência da rede viria estrategicamente de seu centro, visualizando um processo de oficinas que proporcionaria uma gradual contaminação criativa na direção das pontas. O problema é que este modo de operação acaba por gerar algumas dificuldades: cria uma dependência do centro e a necessidade de que ele obtenha sucesso constante em desafiar as pontas a atuarem de maneira criativa.
Minha contribuição àquela construção adotou uma perspectiva inversa: em vez de pensar um projeto que precisava necessariamente planejar todas as etapas de formação, controlar equipes de trabalho e homogenizar suas práticas, sugeri uma lógica de ocupações culturais mais flexíveis. Na prática: abrir uma convocatória para indivíduos ou grupos proporem projetos de utilização daqueles espaços.
Não era uma sugestão gratuita. Pelo contrário, estava conscientemente fornecendo uma contribuição baseada na observação de formatos que vêm sendo utilizados por projetos no mundo todo. Exemplo é o “Interactivos?” criado pelo Medialab Prado e já mencionado na etapa anterior deste estudo. Também são experiências relevantes aqueles projetos já desenhados para serem nômades, como o Laboca, Labmovel, Ônibus Hacker e outros. Ou então os programas de residências artísticas que propõem laboratórios temporários. Na verdade, o desenvolvimento de projetos de ocupação temporária de espaços culturais já é prática corrente no Brasil, a exemplo dos editais de ocupação das sedes da FUNARTE ou dos espaços da Caixa Cultural1, ou então do recente edital para projetos a serem desenvolvidos nos Centros Culturais do Banco do Brasil2. Outra referência atual é o edital Redes e Ruas criado pelas secretarias de Serviços, da Cultura e dos Direitos Humanos e Cidadania do município de São Paulo3, que abre inclusive a possibilidade de projetos de intervenção urbana.
A ideia de ocupações culturais dá uma maior ênfase em aspectos humanos, dinâmicos e colaborativos em lugar de uma visão mais burocrática que privilegia o laboratório enquanto espaço físico e equipamentos. Trabalhando desta maneira - na qual amplos espaços são intencionalmente deixados em branco –, transforma-se o próprio processo de seleção em um abrangente mapeamento de talentos e temáticas mais alinhados com as expectativas de cada localidade. Isso repercute mais uma vez na projeção de contribuir com uma emergente cultura da abertura que anteriormente argumentamos estar latente em projetos contemporâneos.
Troca-se, em outras palavras, a necessidade de limitar o escopo (para garantir o controle e a produtividade relativa dentro de uma temática predefinida) pela abertura ao inesperado e consequentemente uma maior abundância e diversidade de produções distribuídas. Tanto melhor se houver momentos de contato e uma estratégia de comunicação em rede (como sugerido na seção anterior deste documento) entre os diferentes projetos.
Os programas de residência artística são um modelo de grande efetividade na produção criativa que pode, curiosamente, ser realizado com relativamente poucos recursos. O simples fato de proporcionarem deslocamentos - nos quais o indivíduo ou grupo são instados a interagir com um contexto diverso daquele ao que estão habituados - desencadeia processos de reflexão que podem resultar em produções muito relevantes. Como apontado no produto anterior deste estudo:
“As diferentes modalidades de participação oferecidas nas residências em encontros (com e sem curadoria) e a adoção de modelos mistos favorecem a inclusão, o intercâmbio e a circulação entre artistas emergentes e de referência, criadores das mais diversas áreas; e a promoção de redes de troca de conhecimento e colaboração, produção de saberes em comum e a experimentação colaborativa de abrangência nacional e internacional.”
Para Lucas Bambozzi, esses processos laboratoriais hoje estão muito conectados com o processo de residências:
“colocar-se em residência é colocar-se num processo de tentativa e erro, de deixar que coisas surjam, viabilizar ideias que não são as grandes ideias mas são tentativas. Foi virando uma prática mais comum que a dos labs. Porque a residência pode acontecer sem nenhum recurso. Demanda muitas vezes só um espaço, ponto de encontro, a pessoa nem precisa residir de fato, mas um espaço, atelier a ser compartilhado. O que precisa tanto para um lab ou residência ou algo que seja uma fusão de ambos não é muita coisa: é espaço, tempo – a soma dos dois –, e acesso a alguma tecnologia [por exemplo]: vamos fazer um projeto em torno de uma impressora 3D.”
É positivo que um mecanismo estruturado como o programa de Intercâmbio e Difusão Cultural do Ministério da Cultura tenha recentemente passado a incluir programas de residências artísticas entre as finalidades possíveis para a inscrição em seus processos de seleção. Os diferentes projetos experimentais localizados em diferentes partes do Brasil só teriam a ganhar com a estruturação de programas de residências - e não somente residências voltadas à produção artística em si, como também direcionadas ao intercâmbio de metodologias e gestão de projetos culturais, uso de tecnologias em particular e outros temas que poderiam surgir.
Programas de intercâmbio que oferecessem recursos para a realização de programas de residências geridas pelos próprios projetos poderiam ser de grande relevância para o contexto brasileiro - contando inclusive com a imagem do laboratório que recebe temporariamente outro laboratório, ou mesmo labs que trocam de localidade por determinado período.
Uma vez que a imagem do laboratório como espaço físico dedicado, com acesso restrito e recheado de infraestrutura exclusiva vem sendo questionada em favor de formatos mais abertos e colaborativos, como é que se articula a formação de uma identidade coletiva neste contexto? Se estamos falando de um cenário de trocas constantes, como é que as pessoas vão saber onde procurar oportunidades e conhecer futuros colaboradores?
A relativa autonomia do indivíduo e do grupo criativo (que não precisam mais estar necessariamente associados a um laboratório em particular) fez com que, complementarmente, adquirissem uma maior importância os eventos e festivais. Já há alguns anos, uma pessoa interessada em conhecer mais sobre este cenário precisa cada vez menos visitar lugares específicos do que participar de eventos que estão em geral interconectados. Festivais periódicos permanentes como o Future Everything em Manchester, Transmediale em Berlim e Ars Electronica em Linz (Áustria) somam-se a eventos itinerantes como o ISEA (que em anos recentes passou, por exemplo, pela Turquia, Estados Unidos e Austrália) ou a rede de eventos Pixelache (que interconecta festivais e encontros na Finlândia, Noruega, França, Senegal, Colômbia, Brasil e outros países).
Em tais eventos, um número considerável de pessoas acaba se reencontrando com alguma frequência. A familiaridade e até intimidade que surgem desse contato constante encetam uma troca e uma sensação de pertencimento que costumam fomentar projetos colaborativos entre os integrantes do próprio circuito.
Os eventos costumam seguir um ou mais de alguns formatos: a desconferência, o encontro, o workshop, o seminário, a exposição. Um deles é o festival, que propõe-se não somente a se relacionar com o próprio tema como também com o próprio circuito e ainda com a população de determinado lugar. Há alguns anos, Drew Hemment, criador do festival Future Everything, publicou um texto chamado “O festival como laboratório vivo”, no qual afirmava:
"O festival cria um espaço no qual as pessoas podem experimentar e atuar. As atividades podem incluir obras de arte, protótipos de tecnologia, inovação social e projetos de design. Isso fica mais interessante quando é realmente colaborativo e as pessoas estão fora de seus papéis convencionais - artistas fazendo espaços sociais, comunidades criando tecnologia, tecnólogxs possibilitando que percebamos o mundo renovado."3
O festival aparece assim como espaço para catalisação de ações pontuais – que reunidas adquirem um alcance maior, peso considerável e troca produtiva para os envolvidos. Festivais também podem funcionar para justificar ações permanentes em determinados lugares – mesmo que não exista um cenário local significativo, a perspectiva do festival cria espaços de atuação mesmo antes e depois de seu acontecimento.
Levando em conta a extensão territorial do Brasil e a já comentada efemeridade dos projetos institucionais voltados à produção experimental, é natural que uma visão de circuito faça sentido. O que a dificulta é que por aqui também os eventos são efêmeros e frequentemente pontuais, realizados em edição única. Na prática, entretanto, já existe no Brasil uma rede bastante atuante (é comum que convidados estrangeiros se surpreendam com a sensação de que no Brasil praticamente “todas as redes estão conectadas”, de certa forma). Temos de fato o que poderia ser chamado de um circuito de eventos que é informal e opera espontaneamente. E hoje perdura muito mais do que qualquer um dos eventos em particular.
Festivais e encontros em diferentes localidades deveriam poder trabalhar conjuntamente para solicitar recursos, o que levaria o circuito a tomar corpo e fortalecer-se. Uma estratégia de circuito de eventos voltados à produção experimental deve figurar no horizonte da elaboração das políticas de cultura digital.
1O Anexo II deste documento traz trechos transcritos da memória do encontro Redelabs durante o Fórum da Cultura Digital de 2010, reunindo boa parte das pessoas então envolvidas com o contexto dos labs experimentais de cultura digital no Brasil.
2Disponível em http://redelabs-org.github.io (acessado em 15/08/2014), o Rede//Labs acumula desde documentação da primeira etapa da pesquisa sobre laboratórios de cultura digital desenvolvida em parceria com o Ministério da Cultura em 2010; quanto projetos subsequentes como a série de artigos e minidocumentários encomendados pelo Centro de Cultura Espanhola em 2011, como parte do projeto Anilla Cultural; e ainda iniciativas como o laboratório temporário LabX montado dentro da programação do Festival de Cultura Digital também em 2011 no Rio de Janeiro.
3Curiosamente, e repercutindo uma observação feita anteriormente na seção sobre infraestrutura para documentação, tive dificuldades para referenciar este texto de Hemment. Eu havia traduzido um trecho dele há alguns anos. Esta tradução curta ainda está disponível no site redelabs (http://redelabs-org.github.io/blog/future-everything-festivais-como-laboratorios-v..., acessado em 16/08/2014), mas o original para o qual apontava retorna como página inexistente. Ao procurar o link no banco de dados do Internet Archive, encontrei uma única versão salva, e ela está entremeada de palavras desconectadas, provavelmente inseridas ali por um robô de SPAM (https://web.archive.org/web/20100808024704/http://www.futureeverything.o..., acessado em 16/08/2014).