Este documento consiste no terceiro e último produto do estudo sobre arranjos experimentais colaborativos em cultura digital produzido para a Coordenadoria-Geral de Cultura Digital do Ministério da Cultura do Brasil. Nas entregas anteriores, foram desenvolvidos um levantamento acerca de diferentes modelos de laboratórios experimentais operando na fronteira entre cultura e tecnologia, além de um conjunto de sugestões voltadas à implementação de políticas públicas para o estímulo aos laboratórios de cultura e tecnologia.
Nesta última etapa, a ideia é associar as indicações mais conceituais apontadas nas etapas anteriores a possibilidades concretas de implementação de uma rede de laboratórios, fazendo eco tanto a demandas postas por grupos já atuantes na área quanto à orientação estratégica de rearticular o desenvolvimento do campo da cultura digital em compasso com os contextos nacional e internacional dos dias de hoje. Para isto, trabalha-se o diálogo entre aquelas indicações e as diretrizes do Plano Nacional de Cultura - construído a partir da realização de três edições da Conferência Nacional de Cultura - com vistas a subsidiar a elaboração do plano setorial de arte e cultura digital.
Seguindo a linha adotada ao longo desta pesquisa, todas as análises e propostas aqui elencadas trabalham com o horizonte do incentivo a uma cultura digital da abertura que se ocupe da produção do comum, pautando-se pelos princípios da inclusão, da diversidade, da sustentabilidade e da produção interdisciplinar, e priorizando estes como elementos de resistência às possíveis armadilhas interpostas por uma percebida submissão gradual da produção cultural às regras do mercado.
Uma observação importante a fazer de antemão diz respeito à dificuldade em encontrar informações oficiais sobre as Conferências Nacionais de Cultura, sobre o Colegiado Setorial de Arte Digital e sobre sua atuação junto ao Conselho Nacional de Políticas Culturais. Desde links quebrados dentro do próprio website do Ministério da Cultura até websites inteiros retirados do ar por conta do período eleitoral, passando ainda pela falta dos próprios envolvidos em efetuarem uma documentação sistemática e de acesso público1, a impressão que se tem é de que ainda há muito a melhorar na preparação de um campo comum de atuação que se baseie no compartilhamento e circulação de conhecimento.
A produção experimental comporta algumas condições paradoxais. Uma das mais importantes é sua temporalidade peculiar. Por um lado a experimentação requer olhos atentos ao momento, desvendando questões presentes e futuras. Nesse sentido, exige uma rapidez de decisão e uma flexibilidade de modos de atuação que estão mais associadas a um pensamento de curtíssimo prazo. Por outro lado, a experimentação demanda também uma autonomia operacional dos indivíduos e grupos envolvidos que só pode acontecer com alguma segurança no médio e longo prazos. Quando algum desses pólos não está presente, a produção experimental perde muito de sua relevância: sem agilidade operacional pautada pelo dia a dia ela torna-se engessada, ao passo que sem uma segurança de médio prazo ela fica demasiadamente refém de mudanças no contexto político ou institucional.
Por outro lado, como já comentado anteriormente a respeito de mecanismos de avaliação de processos experimentais, sua dimensão só vai aparecer integralmente a longo prazo, quando seria possível identificar os desdobramentos, colaborações e contaminações dos projetos. O que indica, mais uma vez, a necessidade de pensar em políticas de apoio para uma construção de longo prazo e a pesquisa/observação continuadas. Como indica Pedro Soler, para além do critério numérico (quantidade de pessoas) ou temporal (duração e regularidade) e a documentação dos projetos, há um aspecto de geração de valor que se revela com o tempo e conforma, segundo o gestor, “uma questão econômica: o que foi gerado não só no contexto do próprio lab, mas os projetos que foram gerados a partir disso. Por exemplo: a pessoa que participou do projeto está agora realizando oficinas, ou trabalhando em outro lugar, etc. É interessante avaliar [isso] ao longo do tempo, mas nem sempre é possível.” (SOLER)
Entre as diversas demandas identificadas para o desenvolvimento do setor a partir do presente estudo, talvez a mais crítica seja justamente uma previsibilidade nas políticas e programas. De fato, como visto nos produtos anteriores deste levantamento, representantes da área no Brasil criticam a ausência de segurança a médio e longo prazos nos raros mecanismos institucionais de estímulo à produção de fronteira entre cultura e tecnologia.
De acordo com o relatado por estas pessoas, o financiamento de empresas comerciais e instituições privadas costuma estar excessivamente orientado à visibilidade midiática das tendências do momento. O que resulta são experiências pontuais ou de duração limitada. Entre muitos exemplos pode-se mencionar o edital de Arte e Tecnologia da Fundação Telefônica, a realização do Prêmio Sergio Motta ou a inclusão da cultura digital como área específica no edital Petrobras Cultural, iniciativas que desapareceram sem deixar rastro.
Também (ou ainda mais) no setor público o campo padece de uma prevalência de projetos-piloto. Para citar somente alguns exemplos deste último caso: os editais XPTA e Esporos de Cultura Digital do Ministério da Cultura tiveram apenas uma edição cada. O Prêmio Mídia Livre teve duas edições em anos consecutivos e depois acabou. A bolsa Funarte de pesquisa em arte e novas mídias foi concedida uma só vez. A rede de Pontões de Cultura Digital, criada para articular o desenvolvimento de ações e capacitação em cultura digital junto ao programa Cultura Viva, teve inúmeros problemas desde sua implementação, e posteriormente foi relegada a segundo plano. Como se vê, o campo é extremamente fragmentado e inconstante. O artista e curador Lucas Bambozzi, comentando a respeito de um desses programas, afirmou o seguinte:
"Haveria lastro de público de interessados para ele continuar por mais quatro ou cinco anos pelo menos, e aí se fazer a avaliação de continuidade ou não. As políticas públicas parecem emperrar no interesse imediatista da gestão daquele momento, do gabinete, do secretário." (BAMBOZZI)
Além das consequências da falta de previsibilidade para quem trabalha na área, esse descompasso também repercute na ausência de uma narrativa coerente que dê conta de todas essas iniciativas como integrantes de uma área comum. Surgem e desaparecem como iniciativas isoladas, e se desperdiça um imenso potencial de cooperação e circulação entre diferentes iniciativas que não se realiza.
Sobre este ponto, Paulo Amoreira, conselheiro do Colegiado Setorial da Arte Digital e coordenador de cultura digital do equipamento público CUCA Che Guevara em Fortaleza, afirma que “uma saída possível para esse perverso círculo de avanço/retrocesso é o empoderamento de agentes culturais, grupos, coletivos, pesquisadores, artistas e outros personagens que, para além do patrocínio eventual proporcionado pela ativação de determinada ferramenta de acesso a incentivos (editais, prêmios, chamadas públicas...), conseguem manter uma ação criativa e produtiva. Desse modo, a intervenção do Estado seria mais pontual e mais estruturante, possibilitando o surgimento de Redes Autossustentáveis. Uma Rede fortalecida pressupõe, ao longo do tempo, trocas diversas de mútua afetação, decantação e remixes (Residências, Intercâmbios, Itinerâncias), mas também requer criação e processamento multilocal, com acessos instantâneos imediatos, garantidos por conexões de alta velocidade que permitam a dissolução da autoria dentro de um fluxo criativo com múltiplos agentes não-circunscritos a limites geográficos e culturais. Nesse momento, a sustentabilidade da infraestrutura necessária para esse propósito se apresenta como um desafio que requer atenção.” (AMOREIRA)
Danillo Barata, artista, curador e diretor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT) da UFRB e conselheiro suplente do Colegiado de Arte Digital, sugere que “talvez o grande diferencial poderia ser pensar uma cota fixa como as agências de fomento colocam: bolsas específicas, às vezes de produtividade de pesquisa, para o incentivo de vários grupos e aí talvez fosse uma coisa mais dirigida mesmo. Pensar de forma multidisciplinar. Se tiver um grupo que eu já tenho afinidade para colaborar, é muito bacana ter as condições para poder fazer isso. As ajudas hoje são muito espaçadas e não têm continuidade, e isso quebra inclusive porque estamos trabalhando em redes. Mas as redes precisam de alimentação cotidiana, precisam ser alimentadas”. (BARATA).
É urgente elaborar e implementar políticas de estímulo à produção experimental e à produção crítica em cultura digital que sejam permanentes ou, no mínimo, projetem um horizonte mais amplo do que se costuma estar colocado. A necessidade de trabalhar de maneira mais apropriada a temporalidade própria da área e sua continuidade nas políticas públicas voltadas aos arranjos criativos coletivos em cultura digital será trabalhada ao longo deste documento, lançando-se mão principalmente de mecanismos democráticos institucionalizados de construção e acompanhamento de políticas públicas. Mas em primeiro lugar, para estabelecer o cenário, vamos retomar a discussão conceitual iniciada no mapeamento de contexto que inaugurou a presente pesquisa.
Como indicado no primeiro produto desta pesquisa (FONSECA), a afirmação política de uma cultura digital particularmente brasileira exige que se repense de maneira mais aprofundada o papel das tecnologias e redes digitais nos tempos atuais. Mais do que retomar a ideia de cultura livre tão bem desenvolvida ao longo da década passada nas políticas do Ministério da Cultura, o momento abre a possibilidade de propor discussões latentes tanto no Brasil quanto no exterior. Um caminho potencial identificado por esta consultoria trata da ideia de uma cultura de abertura, que direcionaria seu olhar menos para a questão objetiva das licenças de direito autoral ligadas a cada objeto digital compartilhado em rede e mais para a adoção da abertura como fundamento estruturador em sentido amplo. Em outras palavras, uma postura de abertura que reorganizaria todo o processo de criar, produzir, disponibilizar e circular a produção cultural.
A cultura digital da abertura opera de maneira colaborativa, compartilhada e em rede desde o berço. Ela sugere maneiras rápidas, heterodoxas e inclusivas para escapar a impasses presentes há anos em diversas questões das políticas culturais: formação de público, educação profissional, sustentabilidade, integração entre local e global, preservação de identidade e diversidade, entre outras.
Para articular uma política de cultura digital que dialogue com a ideia de abertura como posicionamento explícito, é fundamental incorporar princípios já expressos nas estratégias e recomendações indicadas no segundo produto desta consultoria (FONSECA). São eles:
A concepção de espaços de produção e ação interconectados em rede (rede de laboratórios);
Formas de promover o compartilhamento;
Apoio à pesquisa continuada e documentação;
Articulação interinstitucional em rede.
Retomaremos a estes pontos oportunamente. Primeiramente, entretanto, faz-se necessário introduzir os mecanismos de elaboração e implementação de políticas culturais que despontam como o canal legítimo para o debate e construção das estratégias acima.
O Sistema Nacional de Cultura (SNC) é um instrumento institucional formalizado através de emenda constitucional aprovada em 2012. Resultado do processo aprofundado e participativo de construção que se cristalizou ao longo de três edições da Conferência Nacional de Cultura, o SNC prevê a regulamentação das políticas públicas de cultura no território nacional. O SNC surge como principal articulador do Plano Nacional de Cultura (PNC), aprovado em 2010 como resultado do mesmo processo. Entre as inúmeras inovações criadas pelo processo que culminaria no SNC, destacam-se para os fins deste levantamento as Metas do PNC e os Colegiados Setoriais.
O processo de elaboração do PNC foi consolidado nas Conferências Nacionais de Cultura, que reuniam as demandas e apontamentos colhidos nas Conferências Estaduais e Municipais, bem como das Pré-conferências Setoriais. Discussões públicas e abertas às quais foram convidados todos os setores interessados em políticas culturais, as Conferências resultaram em 53 metas que traçam o horizonte daquilo que se pretende alcançar no campo das políticas culturais brasileiras até o ano de 2020.
Abaixo estão elencadas aquelas metas que guardam alguma relação com o objeto desta pesquisa. A relação se dá por vezes de forma mais direta e evidente, como é o caso da Meta 43, que trata da implantação de laboratórios de arte e tecnologia em cada um dos estados brasileiros. Mas aparece também de forma indireta com outras metas, uma vez que - como comentado anteriormente -, este estudo demonstrou a relevância de promover-se uma postura de abertura que no limite poderia reorganizar todo o processo de criação, produção, disponibilização e circulação da produção cultural.
Metas do PNC relacionadas a arranjos criativos colaborativos em cultura digital |
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Meta 3 |
Cartografia da diversidade das expressões culturais em todo o território brasileiro. |
Meta 8 |
110 territórios criativos reconhecidos. |
Meta 9 |
300 projetos de apoio à sustentabilidade econômica da produção cultural local. |
Meta 14 |
100 mil escolas públicas de Educação Básica desenvolvendo permanentemente atividades de arte e cultura. |
Meta 19 |
Aumento em 100% no total de pessoas beneficiadas anualmente por ações de fomento à pesquisa, formação, produção e difusão do conhecimento. |
Meta 23 |
15 mil Pontos de Cultura em funcionamento, compartilhados entre o Governo Federal, as Unidades da Federação (UFs) e os municípios integrantes do Sistema Nacional de Cultura (SNC). |
Meta 25 |
Aumento em 70% nas atividades de difusão cultural e intercâmbio nacional e internacional. |
Meta 33 |
1.000 espaços culturais integrados a esporte e lazer em funcionamento. |
Meta 35 |
50% de bibliotecas públicas e museus modernizados. |
Meta 40 |
Disponibilização na internet dos seguintes conteúdos, que estejam em domínio público ou licenciados (vários) |
Meta 41 |
100% de bibliotecas públicas e 70% de museus e arquivos disponibilizando informações sobre seu acervo no SNIIC. |
Meta 42 |
Política para acesso a equipamentos tecnológicos sem similares nacionais formulada. |
Meta 43 |
100% das Unidades da Federação (UFs) com um núcleo de produção digital audiovisual e um núcleo de arte tecnológica e inovação. |
Meta 45 |
450 grupos, comunidades ou coletivos beneficiados com ações de Comunicação para a Cultura. |
Meta 46 |
100% dos setores representados no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) com colegiados instalados e planos setoriais elaborados e implementados. |
Relação entre as metas do PNC e as sugestões de encaminhamento constantes no produto 2 do presente levantamento:
Propostas produto 2 |
Metas PNC relacionadas |
1.Infra-estrutura digital para documentação e publicação |
3, 8,19,40, 41, 43, 45 |
2. Meta-laboratório |
9,23,33,35,42,43 |
3.Ocupações, residências e intercâmbios |
9,14,19,23,25,33,42,43,45 |
4.Circuito |
9,23 |
Algumas destas Metas tratam de objetivos comuns a todas as áreas da cultura. É o caso da Meta 46, que prevê que todos os setores representados no CNPC tenham implementados os seus próprios colegiados e planos setoriais; ou da Meta 3, que propõe uma cartografia de expressões culturais. Outras tratam de ações que tangenciam o campo da produção experimental e crítica em cultura digital como a Meta 23 que estabelece o objetivo de 15 mil Pontos de Cultura, a Meta 45 que busca chegar a 450 grupos com ações de Comunicação para a Cultura, a Meta 41 que fala sobre a integração de acervos de bibliotecas e museus ao SNIIC, a Meta 35 que fala em 50% de bibliotecas e museus modernizados, entre outras. Destaca-se ainda a importância da Meta 42, que sugere uma política de acesso a equipamentos importados que não tenham similares nacionais, para a experimentação com novas tecnologias que frequentemente se encontram justamente nesta situação.
Como comentado, a Meta que pareceria apresentar maior potencial de diálogo direto com uma rede de laboratórios seria a 43, que determina que todas as Unidades da Federação tenham um núcleo de produção digital audiovisual e um núcleo de arte tecnológica e inovação. Entretanto, levando-se em conta as propostas, depoimentos e análises desenvolvidas ao longo desta pesquisa, é importante também indicar que a ideia de uma cultura digital voltada à abertura deve estar fundamentalmente representada em outras metas como a 25 (difusão cultural e intercâmbio), a Meta 19 (fomento à pesquisa, formação, produção e difusão do conhecimento) e a 23 (Pontos de Cultura). Tratou-se neste documento e nos anteriores, afinal, de sopesar a prioridade de grandes investimentos em equipamentos frente ao potencial criativo e produtivo que resultaria de um foco maior no intercâmbio, nas ocupações, nas residências, nos circuitos de eventos e em outros formatos mais flexíveis que se operacionalizem em rede.
Uma observação especial fica ainda para aquelas metas (8 e 9) mais ligadas ao campo da Economia Criativa. Aqui é importante adotar uma postura crítica, como já sugerido anteriormente, através da qual seja proposta uma reflexão acerca da relevância social da Economia Criativa, de seu diálogo com as tecnologias sociais e com a economia solidária. Em sendo esta a perspectiva, aquelas ações na fronteira entre cultura e tecnologia, operando em redes de laboratórios, trabalhando uma cultura da abertura e ainda propondo a apropriação crítica e a experimentação, tudo isto em conjunto contribui para enriquecer as estratégias, metodologias e ações para a construção de políticas que promovam a articulação entre cultura e economia sem incorrer em uma submissão às regras do mercado.
Respondendo à Meta 46 do PNC (criação de Colegiados Setoriais para todas as áreas representadas no Conselho Nacional de Políticas Culturais), formou-se o Colegiado Setorial de Arte Digital para compor e legitimar a representação do setor no CNPC, órgão que tem por objetivos elaborar políticas culturais e atuar como ponte entre governo e sociedade. A partir de sua implementação, o Colegiado ampliava a representação da arte digital, que até então contava apenas com uma conselheira (Patricia Canetti). O Colegiado conta desde então com 13 membros da sociedade civil, representados por um conselheiro titular (Paulo Amoreira) e uma conselheira suplente (Andreia Machado Oliveira). Os representantes eleitos, segundo e-mail de Canetti enviado a grupos de discussão no fim de 2012, teriam a atribuição de criar os planos setoriais da Arte Digital e da Cultura Digital (CANETTI).
Durante a nossa pesquisa, que incluiu a revisão de fontes secundárias e entrevistas com pessoas-chave, ficou em evidência a falta de uma estratégia que integre de arte e cultura digital. De fato, nas conversas com atuais integrantes do Colegiado, por vezes foi exposta uma tensão entre perspectivas diferentes que em última instância definiriam a separação entre esses dois planos. A cultura digital faz referência ao histórico descrito no primeiro produto deste estudo, tributário da aproximação entre o programa cultura viva e as vertentes culturais surgidas em torno do movimento do software livre. Por sua vez, a arte digital anseia pelo legítimo reconhecimento da área frente às instituições e políticas públicas de cultura.
Para a conselheira Andreia Machado Oliveira, “Se a gente entende que a arte digital é a cultura digital, a cultura digital é muito ampla, e aí nós não obteremos fomento para a produção da arte digital, que é muito específica. Nosso sentido de fazer esse recorte é justamente para que conseguir criar esse campo da arte digital dentro do Brasil”. (MACHADO OLIVEIRA)
O mesmo posicionamento é expresso pela Profa. Nara Cristina Santos:
“Quando se fala de cultura digital, o termo digital tem um peso que a gente poderia entender como um vasto campo de cultura que envolve as tecnologias digitais. No entanto, na hora de buscar verbas, de estratégias de fomento, há uma sobreposição da força da cultura digital em relação à arte digital. E como nós temos um colegiado separado, o que nós queremos é esse reconhecimento. Não somos contra a cultura digital, muito pelo contrário, nos sentimos envolvidos nela. No entanto queremos enfatizar a necessidade de um olhar específico para essa produção em arte digital”. (SANTOS)
Já para Maria Luiza Fragoso, “as políticas públicas de incentivo institucional da arte digital e seu contexto criativo laboratorial devem abrir portas e oportunidades; deixar que os artistas investiguem, dialoguem, criem redes de pesquisa e de produção transdisciplinares, conjugando arte, ciência e tecnologia. Os investimentos devem ser direcionados aos espaços coletivos, aos programas de estímulo criativo comunitários, à capacitação técnica e à criação de centros de exposição onde a arte dialogue com as mais diversas áreas de conhecimento e se integre com as comunidades em seu entorno.” (FRAGOSO in GASPARETTO)
Por outro lado, André Mintz, ex-coordenador do Marginália+Lab de Belo Horizonte, percebe uma aproximação entre a arte digital e o campo da ciência e tecnologia:
“A arte digital acabou se relacionando muito fortemente com a arte e ciência, isso também é uma questão da arte contemporânea, claro que em um nicho temático específico, assim como existem vários outros nichos temáticos. Existem exemplos de trabalhos que não precisam ser somente em arte eletrônica ou arte digital, mas podem estar relacionados ao papel da ciência na contemporaneidade, aos meios tecnológicos, mas não precisam necessariamente se vincular a um eixo, como um eixo paralelo que acabou se desenvolvendo na história da arte, que não é proveitoso nem para este eixo autônomo da arte e tecnologia, nem para o que se chama da arte contemporânea, é necessário tentar mais conversas.
Por outro lado, penso que há alguma produtividade neste eixo paralelo, que tem menos a ver com uma produção artística específica e mais com o ponto de vista das comunidades que se articulam neste outro eixo. Esta é uma discussão que eu já presenciei várias vezes. Eu gosto muito do modo como a Raquel Rennó se posicionou uma vez em relação a isso, lembro de uma discussão que aconteceu em um dos festivais da cultura digital, quando foram em São Paulo. As discussões estão ligadas às licenças permissivas, à colaboração, que são oriundas de uma cultura de software livre, que foi trazida para o âmbito da cultura, da ideia do Creative Commons, da ideia da cultura Remix, que não está apenas ligada à arte digital ou mesmo à arte, mas com a cultura como um todo. Neste sentido, eu penso que existe uma discussão que aí sim é bastante produtiva e está muito ligada às questões da arte digital, mas que não precisa ser chamada de arte. E o posicionamento da Raquel Rennó, foi muito interessante […] ela disse que o pessoal com quem ela trabalhava, que era da 'arte digital' nem se considerava artista. Que é algo de outra dimensão, não necessariamente ligada à arte, que as pessoas não se consideram artistas, mas que estão relacionadas a uma cultura hacker, ao ativismo, a uma cultura que não tem essencialmente pretensões artísticas, mas isso em um conceito de arte ainda tradicional. Mas são pessoas que têm propostas políticas muito fortes, são ativistas e têm um pensamento cultural aliado à tecnologia, que no meu entendimento se torna cada vez mais presente na arte contemporânea, ainda que em circuitos alternativos, mas que ainda tem particularidades neste domínio externo, elas não se reconhecem nesse universo, mas têm relações muito próximas com a arte digital.” (MINTZ in GASPARETTO)
No contexto que deu origem ao Colegiado Setorial de Arte Digital, a tensão entre diferentes especificidades é mantida em grande medida por decorrência da falta de uma decisão em relação à moção de 2010 na qual os delegados da pré-conferência setorial de Arte Digital solicitavam a abertura de uma vaga específica para a Cultura Digital no CNPC. Justificavam tal solicitação em função de diferenças fundamentais entre as áreas. Na ausência de tal resposta, o resultado é que existem conflitos que já antecedem qualquer tentativa de construir novas bases que possibilitem a elaboração de políticas públicas apropriadas.
Estes conflitos e tensões estão postos e não há resposta simples e rápida para eles. Antes de inconvenientes, entretanto, precisam ser entendidos como expressão de aspirações legítimas. A solução para eles deve necessariamente passar pela construção de mecanismos mais adequados, que possibilitem a diversidade de perspectivas mesmo enquanto a cultura digital e a arte digital precisarem dividir o mesmo espaço de representação institucional. Um caminho poderia ser a existência de duas linhas, de igual importância: por um lado, o reconhecimento de especificidades e demandas legítimas de um setor como o da arte digital, que procura linhas de apoio específicas para pesquisa e produção perante órgãos de fomento à produção artística como a FUNARTE e afins. De outro, a articulação das diferentes especificidades em uma perspectiva de cultura digital experimental que seja abrangente, integradora e com visão de longo prazo. E, pode-se acrescentar, que dialogue com a perspectiva de uma cultura digital da abertura que desponta como horizonte estratégico de todas as ações nesta área.
1Por exemplo, o Colegiado Setorial de Arte Digital mantém uma página no Facebook (https://www.facebook.com/CNPCArteDigital?fref=ts , acessada em 23/09/2014). Mas não foi possível acessar por meio dela materiais sobre o andamento dos debates e as propostas do colegiado.