Com o objetivo de subsidiar a busca de propostas concretas para o desenvolvimento pleno do campo da cultura digital, e em especial do estímulo a arranjos criativos colaborativos que consolidem a produção crítica e a produção experimental em cultura digital, elenca-se a seguir alguns apontamentos. Eles dialogam com as diretrizes indicadas no produto anterior deste estudo (FONSECA), trazendo argumentos e propostas efetivas para sua implementação.
A construção efetiva de uma cultura digital de abertura concretiza-se em primeira instância em diversos espaços de produção e ação interconectados em rede. Tais espaços podem ser desde laboratórios de mídia estruturados com equipamentos de ponta até a ocupação pontual de espaços públicos, passando por dezenas de configurações alternativas - fixas, esporádicas, temporárias, efêmeras, móveis, nômades, virtuais. Tais espaços de produção, que aqui se sugere sejam considerados em todos os seus formatos como laboratórios experimentais, devem estar voltados essencialmente àqueles que Pedro Soler chamou de “criadores” (SOLER) - não somente artistas, mas essencialmente indivíduos e coletivos atuando de forma criativa e inovadora em diversas áreas do conhecimento. O que interessa aqui é que os laboratórios possibilitem que as pessoas se conheçam, compartilhem conhecimento, recursos e oportunidades, e consequentemente alcancem juntas as condições para uma produção relevante. É importante também estimular formalmente a cooperação entre iniciativas, possibilitando a formação de grupos flexíveis de laboratórios que desenvolvam projetos colaborativos em conjunto.
O programa Redelabs do Ministério da Cultura, implementado por uma parceria entre diferentes Secretarias, representa um caminho fundamental neste sentido, ao mobilizar expectativas, discursos e recursos para construir uma rede heterogênea de laboratórios. O programa surgiu em torno da articulação de uma rede piloto de laboratórios de arte e tecnologia que estão sendo implementados entre cinco universidades e um centro cultural em todas as regiões do Brasil. A respeito do projeto-piloto de Redelabs, a Profa. Malu Fragoso acredita que a proposta de articulação em rede “vem de encontro a uma necessidade de um apoio institucional e um apoio político, no sentido de dar visibilidade de um trabalho que está sendo feito e de estabelecer relações mais formais entre os parceiros que estão trabalhando com isso. Uma coisa é você estar fazendo seu trabalho na Universidade, encontrar um colega e resolver fazer uma obra conjunta, e outra coisa é você ter um programa, um projeto, onde há um compromisso, onde você sabe que aquilo vai ter um reconhecimento, uma visibilidade. Isso é muito importante. Senão a gente fica trabalhado e nada aparece. O mais importante seria que isso não ficasse apenas num período curto, que seja um programa estendido sem que a gente tenha que estar sempre reforçando a qualidade e importância do trabalho.” (FRAGOSO).
Mas iniciativas como o programa Redelabs não podem se limitar aos labs ligados a grandes instituições. Para além dos labs vinculados a Universidades, muitos outros espaços já existem e são bastante produtivos em suas áreas, mas é raro que sejam reconhecidos como possíveis beneficiários de políticas culturais. O que fazem enquanto laboratórios experimentais operando em rede é uma produção cultural de extrema relevância nos dias atuais. Frequentemente, estes labs desenvolvem ações distribuídas que incluem a ocupação de infraestrutura pública ociosa como salas de informática em escolas, centros de inclusão digital ou mesmo em praça pública. Por esse motivo, mais do que simplesmente prever infraestrutura tecnológica de alto padrão, é importante também criar maneiras de desburocratizar e otimizar a possibilidade de utilizar diferentes espaços como laboratórios experimentais. Parcerias educacionais, projetos de ocupação, chancela de órgãos públicos ou recursos - mesmo que de pequena monta - dirigidos às pontas desse cenário são alguns dos caminhos possíveis para facilitar o pleno desenvolvimento dos laboratórios em rede1. E nunca é demais repetir, é importante que eventuais iniciativas neste sentido sejam projetadas para uma duração maior do que atualmente ocorre.
A chave da cultura de abertura é o compartilhamento. Não somente, é importante ressaltar, a circulação da produção, mas o compartilhamento como metodologia presente em todas as etapas da produção cultural. Em outras palavras, não se fala aqui tanto no acesso à cultura quanto em um fazer social compartilhado e colaborativo.
Como já afirmado anteriormente, as iniciativas pioneiras da chamada cultura livre concentravam-se fundamentalmente na questão do licenciamento objetivo de produtos culturais acabados (em outras palavras, nas regras que condicionavam de que maneira determinado arquivo de áudio, texto ou vídeo poderia circular na internet). O eventual surgimento de um cenário baseado no compartilhamento seria uma consequência secundária, ainda que altamente esperada. Supunha-se desta forma que o fato de muitas pessoas distribuírem em rede os resultados de sua produção faria surgir espontaneamente um banco amplo e abundante de produção cultural encarada como bem comum.
Por conta de diversas condições também já tratadas anteriormente, é oportuno retomar e avançar estas ideias no sentido de uma cultura de abertura que se baseie na produção coletiva desde a concepção até a circulação da produção cultural. Para tanto, é necessário pensar em uma infraestrutura de comunicação que permita e incentive o compartilhamento em todas estas etapas. Isso passa por implementar soluções contemporâneas para identidade digital, autoria coletiva em diferentes mídias e plataformas, debate online, remix e integração com outros sistemas. É importante ter em conta a questão da propriedade dos dados pessoais e coletivos, e a medida na qual a identidade de uma tal plataforma (não somente identidade visual como também sua subordinação a programas de governo) pode incentivar ou coibir sua utilização pelos principais interessados. Por último, resta indicar que é importante dar atenção à cultura de uso. Idealmente, uma infraestrutura voltada ao compartilhamento deve criar mecanismos que possibilitem uma integração profunda com quaisquer ferramentas que seu público já utilize: redes sociais, ambientes de publicação de imagens, weblogs, microblogs, e muitas outras.
É sabido que a disseminação de tecnologias em rede possibilitou profundas transformações na maneira como as pessoas se comunicam, em praticamente todas as áreas da sociedade. Uma plataforma que incorpore as possibilidades acima, mesmo que inicialmente adotada por setores ligados à cultura digital e aos laboratórios experimentais, teria ainda o potencial de servir a outras áreas da cultura e demonstrar concretamente a cultura de abertura como estratégia de criação do comum.
Sobre as possibilidades de articulação em rede, Danillo Barata afirma: “Recentemente fui convidado para fazer uma curadoria para um instituto importante de arte e tecnologia, que quer que faça uma seleção de artistas no Brasil pesquisando corpo e tecnologia. Daí [se houvesse uma rede documentada] eu poderia ir lá no repositório e achar artistas do Acre, de Roraima, de lugares onde ninguém vai, e posso descobrir que o trabalho desses caras tem o maior diálogo com o meu. Tudo o que não acontece na prática, porque aquele pesquisador que está isolado lá pode estar dentro de um lugar, de uma rede de pertencimento, simbólica.” (BARATA).
É importante apontar, entretanto, que a existência de uma plataforma digital não garante o compartilhamento. É essencial que ela esteja ligada a uma estratégia de encontros presenciais e projetos de intercâmbio entre os laboratórios. Deve ainda associar-se a políticas continuadas de curadoria, incentivo à documentação e à gestão coletiva e distribuída de acervos digitais, exploradas a seguir. Além disso, critérios claros de compartilhamento aberto deviam ser previstos como contrapartida básica nos projetos incentivados de cultura digital experimental, e também podem ser entendidos como pauta de avaliação posterior, considerando a qualidade desse compartilhamento como um produto.
A promoção de um campo de atuação no qual a produção experimental e a produção crítica em cultura digital tenham papel central requer a existência de uma narrativa compartilhada por todos os seus diferentes atores, grupos e campos. Dada a enorme diversidade de iniciativas, aspirações, repertórios e campos do conhecimento envolvidos, essa construção requer um esforço continuado de pesquisa, documentação e troca. Além de formar uma identidade por entre a diversidade da rede de laboratórios, esse esforço auxiliaria a combater outro problema encontrado com frequência ao longo desta pesquisa: o desaparecimento de informações sobre projetos já realizados.
É sintomático da fragmentação deste cenário que eventos e projetos de grande importância das últimas décadas tenham pouca ou nenhuma documentação disponível para acesso, e ainda menos para reutilização e remixagem. Para atacar especialmente o desaparecimento deste legado, deve-se pensar em mecanismos de apoio ao resgate, organização, curadoria e disponibilização de acervos sobre cultura digital no Brasil.
A respeito da necessidade de ajudas específicas para pesquisa, a Professora Nara Cristina Santos afirma que “em se tratando da arte digital, como historiadora e teórica penso que o fomento poderia aparecer já como vem acontecendo em alguns momentos pela Funarte. Por exemplo com bolsas de pesquisa, para estudantes, mestrandos ou pessoas da comunidade, que tratassem de questões teóricas, historiográficas, ou curatoriais em torno da produção em arte e mídia digital. Essa questão é importante em função de que, se há um fomento para a produção prática ou artística, de um modo geral em diferentes áreas, que haja também para a arte digital, mas sobretudo que haja uma parte teórica para uma reflexão sobre essa produção, pelo fato de que há uma confusão na terminologia de áreas que se sobrepõem.” (SANTOS).
Por outro lado, é fundamental que a documentação de projetos futuros seja tratada com a devida importância. Para tanto, sugere-se desde implementar estratégias de documentação em editais de chamamento para recursos públicos até o desenvolvimento de um projeto permanente voltado ao mapeamento de iniciativas, estímulo à autodocumentação das mesmas e promoção de intercâmbio estruturado entre diferentes iniciativas - por meio de visitas e eventos em cooperação. Neste eixo, surgiriam oportunidades de intercâmbio não somente de resultados da produção, como também de metodologias de gestão cultural aberta entre os laboratórios.
Iniciativas como o programa Redelabs têm o potencial de disparar uma série de discussões contemporâneas que vão muito além das ações pontuais que executem. Para Guto Nóbrega, coordenador do lab NANO (Núcleo de Artes e Novos Organismos) da UFRJ e um dos integrantes da rede piloto do Redelabs,
“a gente não acha que uma rede se constitui por apenas ter acesso a um sistema de videoconferências, estamos tratando de uma coisa que envolve muito mais do que isso, há uma possibilidade aberta pelas redes, pela tecnologia do próprio ambiente estar conectado como um todo. Hoje você tem tecnologias como kinect, como drone, robóticas das mais variadas, a gente pode ter toda uma ecologia de agentes que compartilham e dão sentido a um laboratório ou toda uma espacialidade que poderia estar conectada. Essa é minha visão do que poderia ser um projeto como o de Redelabs: como tornar um laboratório a distância parte de um todo? Como interconectar as pessoas para se constituir como um espaço sólido, integrado para experimentação? As derivações disso é que se torne um modelo que pode ser aplicado, aberto para integrar toda uma comunidade que pesquisa nessa área.” (NÓBREGA)
Nesse sentido, tais iniciativas podem ainda ensejar e justificar uma série de colaborações entre diferentes instituições. Uma cultura digital orientada ao conceito de abertura poderia assim ser contemplada em outros programas e projetos do poder público. Isso envolveria, por exemplo, postular que projetos pertencentes aos eixos em questão neste estudo sejam atendidos também por mecanismos de outras Secretarias e órgãos associados ao Sistema Minc. Já existe um diálogo em andamento no âmbito do programa Redelabs sobre projetos como os Laboratórios dos CEUs das Artes e as Incubadoras Brasil Criativo, os Núcleos de Produção Digital e os Pontões de Cultura Digital. Mas esta conversa também pode repercutir, por exemplo, no Edital de Intercâmbio e Difusão Cultural da SEFIC, em ações com Pontos e Pontões de Cultura, ou em projetos de pesquisa da FUNARTE, em políticas para museus e bibliotecas públicas, entre tantos outros.
Para Cleomar Rocha, diretor do Medialab UFG, “nessa concepção de um Ministério da Cultura para dar acesso a toda a sociedade, é o ponto que nós devíamos focar. Principalmente pegando a capilarização das ações que são apoiadas pelo Ministério para que alcancem de fato a população. Ao respeito da cultura digital, nós superamos essas distâncias, rizomatizamos as instâncias de núcleo e localizações marginais de modo que isso não interfere grandemente no acesso aos bens culturais. Acredito que se conseguirmos, com redes já formadas, alcançar essa capilarização de acesso à cultura, teríamos algo fundamental que pode alterar o sentido de cultura brasileira. […] Mais do que pensar cultura para artistas, vamos pensar a cultura para a população em geral e o uso dos ambientes digitais é imperativo para que a gente alcance essa capilaridade.”
Outro caminho promissor para os laboratórios experimentais trabalhando com uma cultura digital da abertura são as potenciais parcerias com outros ministérios. Por exemplo: o artista e gestor Bruno Vianna sugere que “a política de cultura de maneira geral poderia estar mais integrada com o Ministério da Ciência e Tecnologia, pensando em estimular a cultura e a ciência como coisas integradas e não separadas.” Acredita-se que outras parcerias também poderiam surgir junto ao Ministério da Educação, das Comunicações, para ficar somente em poucos exemplos. O mesmo se aplica para parcerias com estados e municípios. Uma vez que se construa uma narrativa comum, que se esclareçam as formas de participação na rede de laboratórios e que se explicitem os argumentos em favor de uma cultura de abertura orientada à produção experimental e à produção crítica, imagina-se que haverá muitas oportunidades para esse tipo de parceria.
1Neste sentido, o edital Redes e Ruas da Prefeitura de São Paulo é um interessante exemplo onde esta concepção já está presente. Ele promove assim a realização de diversos tipos de ações experimentais em praças públicas, telecentros e pontos de cultura do Município.