Dissertação de Felipe Schmidt Fonseca apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de mestre(a) em Divulgação Científica e Cultural, na área de Divulgação Científica e Cultural. Orientador: Rafael de Almeida Evangelista (UNICAMP). Integrantes da Banca de Avaliação: Marta Mourão Kanashiro (UNICAMP) e Karla Schuch Brunet (UFBA).
Dissertação publicada no Sistema de Bibliotecas da Unicamp.
Esta dissertação relata as descobertas, hipóteses e conclusões de pesquisa a respeito de um tipo de produção colaborativa que aproxima arte, ciência, ativismo, inovação, design, entre outras áreas. Concentra-se no surgimento, em anos recentes, dos assim chamados laboratórios experimentais - espaços articulados em rede nos quais tal produção toma corpo. São abordadas sob tal perspectiva denominações tais como labs de mídia, hackerspaces, Fablabs, entre outras. A pesquisa analisa alguns desses modelos sobre o pano de fundo do imaginário tecnoutópico, que afirma as tecnologias de informação como instrumentos de combate à burocratização e à alienação da sociedade. Com o objetivo de questionar a usual associação dos labs experimentais em termos gerais ao desenvolvimento da cibernética e em particular ao histórico do estadunidense MIT Media Lab, a pesquisa explora outros fios narrativos para os múltiplos campos que influenciam a formação dos labs. Debruça-se ainda sobre o diálogo entre, de um lado, o contexto contemporâneo dos labs em diferentes partes do mundo, e de outro a contribuição da ideia de uma cultura digital particularmente brasileira - que ao longo da última década proporcionou a construção de um discurso que aproximava software livre, diversidade cultural e políticas públicas de inclusão social. São debatidos em particular dois eixos da cultura digital brasileira: o compensatório, que buscaria corrigir distorções históricas incluindo populações na chamada era da informação; e o exploratório, que buscaria criticar e influenciar os caminhos futuros da articulação entre tecnologia e sociedade. A dissertação relata ainda pesquisa de campo desenvolvida na Finlândia, onde foram vivenciados a preparação de um festival internacional de arte e tecnologia, visitas a diferentes espaços que se situam no campo dos labs experimentais, e o contato pessoal com integrantes de grupos e coletivos que atuam na fronteira entre cultura e tecnologia. Tais experiências contribuíram para a compreensão de elementos importantes dos labs experimentais, principalmente o aspecto da não conformação às expectativas de uma sociedade cada vez mais regida pela transformação de toda expressão cultural em valor econômico. Esse entendimento é aprofundado ao fim da dissertação na imagem do lab experimental como espaço em branco que, ao mesmo tempo em que funciona como interface entre redes digitais e as dinâmicas particulares dos locais onde se encontram, também situam-se como instâncias de resistência e reinvenção frente ao capitalismo informacional de matriz cibernética.
Palavras-chave: cibercultura, labs de mídia, laboratórios experimentais, artemídia, cultura digital.
Esta dissertação de mestrado resulta de um processo de reflexão, descoberta e questionamento sobre formatos de produção criativa colaborativa nos tempos atuais. O foco da investigação situa-se no universo formado por diversos arranjos coletivos operando em campos como a cultura digital, a arte eletrônica, o ativismo de mídia, o empreendedorismo voltado a questões sociais, a inclusão social articulada com as tecnologias de informação e comunicação, a educação informal e o design engajado. Dentro destes contextos, determinados grupos identificam-se como laboratórios - labs de mídia, hackerspaces, fablabs, entre outros - como maneira de, por um lado, definirem suas metodologias, ações e aspirações, e por outro afiliarem-se a uma rede internacional de iniciativas assemelhadas. A intenção da pesquisa é observar o surgimento desta imagem de laboratório e debater alguns de seus pressupostos e implicações.
Meu percurso de investigação não nasce originalmente de interesses acadêmicos. Em abril de 2010, época em que nem imaginava cursar um mestrado, fiz a seguinte anotação em um caderno: "RedeLabs. Há pouco mais de cinco anos, um projeto de centro cultural em São Paulo mencionava como público-alvo os ’artistas desabrigados’. Hoje em dia, um laptop e uma rede wifi são muitas vezes suficientes. Quais são os espaços atuais para produção?". Era a verbalização - bastante superficial, como vejo agora - de uma questão recorrente. Questão que acompanhava um longo processo de reflexão e ações, iniciado no meu caso por volta de 2002. Naquele ano fui um dos fundadores da rede MetaReciclagem, iniciativa organizada através da internet que incentivava - como só conseguiríamos resumir alguns anos mais tarde - a "apropriação crítica de tecnologias da informação para a transformação social". A rede MetaReciclagem propunha concretamente a recuperação de computadores descartados utilizando-se softwares livres e de código aberto. Apesar de ter surgido na internet, ela acontecia na prática em lugares que eram chamados de "Esporos" - uma metáfora das ciências biológicas utilizada para ressaltar a autonomia de cada grupo local: mesmo compartilhando uma genealogia comum, diferentes Esporos poderiam assumir formatos e formações totalmente diversos.
Desde a primeira vez em que pus os pés no que viria a ser um Esporo de MetaReciclagem1, movia-me a vontade de atrair pessoas para juntas fazerem coisas interessantes. Eu era então um entusiasta da internet e da criatividade que ela aparentemente permitia, ainda que decepcionado tanto com o que via como superficialidade e efemeridade das empresas, em especial das agências de comunicação nas quais havia trabalhado por alguns anos; quanto com a burocracia e o engessamento que via no mundo acadêmico - minha graduação era tão pouco interessante que demorou sete anos, em três instituições diferentes. A atuação da MetaReciclagem, nos anos seguintes, acabaria por me colocar em contato com uma enorme diversidade de grupos e projetos, no Brasil e no mundo. Pude conhecer espaços críticos e autônomos em lugares como Amsterdã, Berlim e Barcelona, ao mesmo tempo em que testemunhava a (e interferia na) gradual abertura de espaço institucional para a emergência no Brasil de uma cultura digital politicamente situada, em projetos como os Telecentros de São Paulo ou os Pontos de Cultura do Ministério da Cultura. Participei também da criação da Bricolabs, uma rede internacional que reúne hoje cerca de duzentas pessoas trabalhando com questões de arte, tecnologia e ciência - muitas delas ligadas a diferentes laboratórios ou similares. Durante todo esse trajeto, a questão do lugar de encontro e trabalho estava sempre latente.
Aquela anotação de caderno em 2010 vinha embalada também pela decepção com o que parecia ser uma situação de acomodação e certa neutralização de algumas forças que haviam articulado uma série de ações relevantes no Brasil nos anos anteriores. Dezenas de artistas, ativistas e pesquisadores criativos e talentosos se haviam transformado em "oficineiros", dedicando grande parte de seu tempo a ensinar técnicas, e consequentemente restava-lhes pouco tempo para atividades propriamente artísticas, ativistas ou de pesquisa. Em um sentido concreto, não havia espaço (nem tempo, nem reconhecimento institucional) para essas atividades. Nesse sentido, parecia extremamente necessário investigar possibilidades de espaços que sediassem um tipo de produção não voltada necessariamente à replicação de conhecimento já estabelecido. Isso envolveria necessariamente questionar os diferentes envolvidos com essas questões a respeito de infraestrutura, autonomia, assimilação, financiamento e repertório.
Ao longo dos meses seguintes, desenvolvi (junto com a pesquisadora Maira Begalli) um estudo para o Ministério da Cultura do Brasil sobre laboratórios de cultura digital. O estudo foi desenvolvido para a Gerência de Cultura Digital do Ministério da Cultura, e tinha por objetivo embasar futuras ações de apoio a laboratórios dentro de políticas públicas de cultura e inovação. Nossa motivação vinha da percepção de que representantes da arte digital brasileira vinham demandando apoio do poder público para a criação de "laboratórios", sem entretanto levar em conta o acúmulo, em nossa opinião bastante fértil, das ações descentralizadas de cultura digital desenvolvidas no país durante os anos anteriores. A essa falta de atenção com experiências locais concretas somava-se uma espécie de encanto com instituições estrangeiras, em especial o Media Lab do MIT2, como se fosse uma fórmula mágica que resolveria todos os problemas dos supostos representantes da arte digital brasileira. Decidimos investigar que espécie de laboratório faria sentido pensar no Brasil daqueles dias, supondo que o começo da segunda década do século XXI exigiria uma construção bastante diferente de todas as outras que conhecíamos. Partiríamos de uma perspectiva abrangente - em vez de subordinar-nos à arte digital, queríamos entender como ela poderia engajar-se e dialogar com outros campos importantes de atuação. Interessados em explorar a possibilidade de uma política de laboratórios em rede, chamamos essa investigação de Rede//Labs3.
Durante alguns meses, tivemos a oportunidade de pesquisar referências, entrevistar pessoas e comparar metodologias de laboratórios experimentais em diversas partes do mundo: o Medialab Prado de Madri (Espanha), o Access Space de Sheffield (Inglaterra), o KiBu de Budapeste (Hungria), entre outros. Articulando esses modelos de labs com as formações emergentes que víamos no Brasil, identificamos nestas uma certa iconoclastia, uma informalidade e uma liberdade - advindas, nos parecia, da falta de restrições observadas nos nossos laboratórios-em-movimento. Parte desse dinamismo poderia ser creditado como resposta cultural a um ambiente no qual crise econômica, instabilidade institucional e disparidade social são fatos corriqueiros – o que nos situava mais próximos a outros contextos latinoamericanos do que àqueles europeus. De fato, com frequência essa inventividade tácita parecia ser justamente o que os integrantes de laboratórios estrangeiros demonstravam ter curiosidade de aprender com o Brasil, ainda mais em uma conjuntura caracterizada por uma crise financeira internacional, por projeções pessimistas sobre o meio ambiente e por dificuldades em conciliar diferentes culturas. Em outras palavras, buscávamos fora do Brasil referências institucionais e conceituais para o desenvolvimento da cultura digital, ao mesmo tempo em que pessoas ligadas a essas mesmas referências de fora observavam o Brasil em busca de soluções para suas próprias questões.
Ao longo do processo, tentamos jogar com essa busca bidirecional de soluções - o Brasil buscando modelos estabelecidos lá fora, os labs estrangeiros voltando-se para modelos dinâmicos brasileiros -, e aproveitamos as conversas com dezenas de pessoas - artistas, pesquisadores, representantes de diferentes instituições ou coletivos - para refinar um pouco mais o foco da investigação. A partir destas conversas, propusemos a discussão do termo ”cultura digital experimental” - um braço da cultura digital brasileira que incorporaria intenção investigativa, projeção de futuro e reflexividade. Não nos detivemos particularmente a questionar o mérito da ideia de "cultura digital", que nos parecia em si certamente passível de críticas. Limitamo-nos a aceitá-la como uma imagem então utilizada por organizações, coletivos e indivíduos de todo o país para referirem-se tanto a uma série de percepções a respeito do papel das novas tecnologias na sociedade contemporânea, quanto à situação institucional particular que utilizava esse nome no Brasil: iniciativas do Ministério da Cultura, de Secretarias Estaduais de Cultura e de algumas instituições privadas propunham explicitamente a cultura digital como seu campo de atuação. E debatemos com diversas pessoas a relevância de adicionar-se o "experimental" para denominar ações que tinham em comum algumas características. A cultura digital experimental estimularia a invenção e a criação inclusive com o próprio meio, aqui sim aproximando-se da arte, mas também do desenvolvimento de novas tecnologias em si. Valorizaria o erro - como ”matéria-prima do acerto” - e estaria mais orientada a gerar processos abertos e compartilhados do que chegar a produtos finalizados e fechados. Incorporaria práticas das culturas populares como a gambiarra e o mutirão na busca de novas possibilidades criativas.
O estudo ofereceu elementos para nos aprofundarmos em algumas questões. Ao fim de alguns meses, havíamos entrevistado um bom número de pessoas, proporcionado um encontro com cerca de cinquenta convidados de todo o país envolvidos com laboratórios e afins, organizado um debate internacional sobre o tema e elaborado um programa piloto de política pública de apoio a cultura digital experimental. Infelizmente, o ano seguinte viu uma significativa mudança de rumo no Ministério da Cultura, e uma série de ações planejadas para consolidar as conclusões daquele levantamento foram canceladas.
À medida que trabalhava com esses elementos, os labs gradualmente passaram de interesse marginal ao centro de minhas inquietações. À mesma época, começava também a refletir sobre qual formato deveria assumir um possível laboratório experimental em Ubatuba, onde vivo, para que se tornasse minimamente relevante para a cidade - e não espaço privilegiado para uma classe média urbana de vanguarda repetir formatos já desenvolvidos em outras partes do mundo. No ano seguinte, comecei também a escrever uma série de artigos sobre laboratórios em rede para uma iniciativa de intercâmbio entre Brasil e Espanha.
Também em 2011, organizei um laboratório temporário - chamado LabX - durante o Festival Internacional CulturaDigital.Br. O LabX reuniu pessoas de diversas localidades do Brasil e do mundo que trabalhavam com projetos experimentais, ativistas, educacionais e artísticos4. Foi por volta dessa época que cursar o mestrado começou a parecer uma possibilidade viável. Em uma discussão por email com os integrantes da MetaReciclagem, eu havia questionado a quantidade de recursos voltados à pesquisa em temas que me interessavam, mas que só estavam disponíveis a integrantes da academia. Uma das respostas foi um link para o site do programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor, que estava com inscrições abertas. Li o programa e me interessei. Mas travei já no pré-projeto de pesquisa. Senti que precisava adequar minhas curiosidades, que abrangiam um monte de assuntos aparentemente desconectados, ao programa do curso. Assim, elaborei um rascunho que tentava falar sobre ciência cidadã, então tema de eventos e projetos em lugares como o Medialab Prado e outros labs experimentais. Durante o processo de seleção, esse esboço de projeto foi devidamente desconstruído, mas minha inscrição foi generosamente aceita. Ao longo do mestrado, meu objeto de pesquisa ainda mudaria duas ou três vezes, até finalmente entender que em vez de investigar temas eventualmente desenvolvidos em labs experimentais, poderia aceitar os próprios labs como meu eixo principal de interesse. Foi daí que parti na jornada que resulta nesta dissertação5.
Uma das maiores dificuldades que enfrentei durante a pesquisa de mestrado diz respeito a meu envolvimento pessoal direto com o objeto de pesquisa. Não somente eu tinha sido um participante engajado do cenário dos labs experimentais e das redes de labs no Brasil e fora dele, como também continuaria atuante durante o período da pesquisa. Somavam-se a isso meus próprios preconceitos, baseados no senso comum de que a análise acadêmica deve adotar uma perspectiva distanciada em relação ao objeto de pesquisa, a fim de melhor estudá-lo. Este incômodo esteve presente durante todo o mestrado. Algumas trilhas interessantes que me permitiram uma rota de escape dessa aparente contradição puderam ser encontradas na antropologia. Não a antropologia clássica surgida no seio do colonialismo europeu, baseada na reiteração da superioridade de uma racionalidade objetiva tipicamente moderna e ocidental, com a divisão clara entre sujeito e objeto, entre o antropólogo e o nativo. Pelo contrário, interessou-me outra antropologia na qual, ecoando Viveiros de Castro (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), existiria uma equivalência entre os procedimentos de investigação e os procedimentos investigados.
Expandindo essa hipotética continuidade, seria possível assumir um papel no qual, ainda que momentaneamente dedicado a estudar os labs experimentais, os resultados da minha pesquisa poderiam eventualmente tornar-se parte do próprio objeto. Em outras palavras: minha produção durante o mestrado não seria somente uma análise externa sobre a emergência dos labs experimentais, e sim potencialmente uma parte integrante do próprio cenário dos labs. Para adicionar um pouco mais de complexidade, o reconhecimento de que eu teria ocupado ao menos dois lugares diferentes em diferentes momentos - primeiro a minha atuação anterior à pesquisa, como ator engajado no cenário da cultura digital brasileira, e posteriormente minha inserção acadêmica com a pretensão de analisar o mesmo cenário - traria implicações inevitáveis. Ao observar a emergência de uma tecnoutopia associada à disseminação da internet comercial, a crítica que o eu acadêmico tece direciona-se tanto aos demais atores da cultura digital brasileira como também ao eu-engajado do passado. E por mais que o processo de construção da pesquisa tenha oferecido outras perspectivas, é possível que a mesma crítica continue aplicável ao eu presente e possivelmente aos futuros eus. A perspectiva assumida pela minha afiliação acadêmica não se pretende mais acertada do que aquela da minha atividade engajada. Talvez, pelo contrário, minha pesquisa esteja carregada de profunda desconfiança com o próprio pesquisador e sua atividade.
Longe de tentar solucionar esses incômodos, limito-me a assumir que eles devem estar presentes na versão final da dissertação, assim como estiveram durante toda a pesquisa. É provável que o texto esteja materialmente carregado dessa tensão, oferecendo alguma inconsistência na maneira como trata o objeto de pesquisa - com brancos ocasionais de parte a parte, detalhes excessivos em algum canto, etc. Nesse sentido, evoco a distinção proposta por Tim Ingold entre a pintura e o desenho como metáforas para o fazer etnográfico. A pintura buscaria preencher uma superfície em toda sua extensão, limitada apenas pelos quatro lados da moldura. O pintor, assim, precisaria antecipar a totalidade da pintura antes mesmo de começá-la. Já o desenho permitiria maior experimentação, uma vez que o próprio traço pode a cada momento desdobrar-se e preocupar-se mais com sua própria continuidade do que com a composição geral. Para Ingold, grande parte da antropologia do século XX teria a pintura como sua postura padrão (INGOLD, 2011, p. 221), enquanto adotar a lógica do desenho seria profundamente libertador. Quero crer que esta dissertação segue por este segundo caminho.
O imaginário usualmente associado à internet carrega um aspecto ideológico que só não é mais óbvio porque inteiramente entremeado nos mecanismos de poder vigentes na sociedade contemporânea. Muitos de seus elementos propagadores costumam repetir a cartilha de uma economia baseada na circulação de informação, na qual circunstancialmente os usuais intermediários remanescentes de uma economia industrial estariam obsoletos. Tal contexto estaria baseado em - ou melhor, exigiria - um regime de inovação constante, dentro do qual mesmo as relações sociais deveriam ser corriqueiramente transformadas em valor de mercado. Primordialmente, essa economia exigiria um alto nível de liberdade em relação a regulações do Estado (que não a entende) tais como os direitos trabalhistas (que engessariam seu dinamismo). Ainda segundo essa visão de mundo, elementos como a liberdade individual (importante principalmente no que tange à livre iniciativa empresarial) e a competição comercial seriam os principais motores de transformação da sociedade. Essa transformação teria atualmente um rumo claro - em direção a comunidades autônomas e autorreguladas através de tecnologias de informação, nas quais laços de afinidade se sobreporiam às obrigações da ultrapassada sociedade moderna. Todos esses elementos apontariam para um futuro hiperconectado e "livre".
Richard Barbrook e Andy Cameron denominam “ideologia californiana” essa construção na qual “a ágora eletrônica é interpretada essencialmente como um mercado eletrônico”. Acusam o paradoxo de que tais ideias tenham sido propagadas como afiliadas a conceitos caros à nova esquerda estadunidense, apesar de também se aproximarem do ideário da direita liberal: "Quem pensaria que uma mistura tão contraditória de determinismo tecnológico e individualismo libertário se tornaria a ortodoxia híbrida da era da informação?" (BARBROOK; CAMERON, 1995). Já Fred Turner sugere que esse pensamento foi forjado não exatamente na nova esquerda mas nos "Novos Comunalistas", representantes da contracultura estadunidense dos anos sessenta que se afastaram da disputa política tradicional:
Entre 1967 e 1970 (...) dezenas de milhares de jovens decidiram estabelecer comunas, muitas delas nas montanhas e nas florestas. Foi para eles que [Stewart] Brand começou a publicar o Whole Earth Catalog. Para essas pessoas que voltavam à terra, e para muitos que nunca chegaram a estabelecer novas comunidades, os mecanismos da política tradicional para proporcionar transformação social estariam falidos. Ao mesmo tempo em que seus pares organizavam partidos políticos e marchavam contra a Guerra do Vietnã, esse grupo, que eu chamarei de Novos Comunalistas, desistia da ação política e ia rumo à tecnologia e à transformação da consciência como fontes principais de transformação social (TURNER, 2006, p. 5).
Stewart Brand, como mencionado por Turner, organizara a publicação do Whole Earth Catalog - um catálogo de "acesso a ferramentas" que mostrava desde maneiras de plantar até fornecedores de domos geodésicos ou ferramentas de construção. Posteriormente, como veremos no terceiro capítulo, Brand estaria diretamente envolvido com episódios significativos da história da internet e da propagação da ideologia californiana. Durante esse processo, os Novos Comunalistas adotaram a visão que Turner chama de tecnoutópica, que refletiria duas transformações profundas na sociedade estadunidense: de um lado a evolução dos computadores de grande porte rumo a microcomputadores conectados em rede que alcançavam toda a população; de outro o receio que a geração nascida nos Estados Unidos após a Segunda Guerra tinha de ser engolida por uma sociedade burocrática ameaçada pela extinção nuclear. A tentativa de escapar a esse futuro sombrio é um dos elementos que conectariam a contracultura dos anos sessenta às tentativas de utilizar as tecnologias de informação como plataforma de construção de uma sociedade digital igualitária e antiburocrática. Essa construção, baseada em um modelo de sociedade inspirado na cibernética, acabaria por implicar em uma situação de neutralização de impulsos transformadores, como veremos adiante. Em relação a esta nova situação, cada vez mais presente na sociedade dos dias de hoje, haveria ainda rotas de escape? Seria possível driblar a subordinação ao determinismo tecnológico que estaria presente no pensamento tecnoutópico? Estes elementos e a tensão entre eles fazem parte do cenário de fundo no qual se desenvolvem os labs que são objeto desta dissertação.
Esta dissertação identifica diferentes caminhos de exploração partindo da ideia de labs na ampla fronteira entre cultura e tecnologia, que operam em rede e funcionam como espaços experimentais. Cada capítulo dedica-se a trilhar um desses caminhos. No capítulo Cultura Digital Experimental, procuro refletir sobre o campo da cultura digital brasileira, sua articulação em duas dinâmicas distintas ainda que interpenetradas - a compensatória e a exploratória -, e o que pode ser uma contribuição brasileira à discussão internacional sobre labs e afins. O capítulo Labs no Mundo traça um histórico amplo dos labs, incluindo a narrativa usual que parte das colaborações transdisciplinares desenvolvidas nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e se estende até a criação do MIT Media Lab, mas oferecendo também outras linhas históricas relevantes durante o mesmo período. Em seguida, descrevo desenvolvimentos recentes como os labs comunitários, hacklabs, hackerspaces, fablabs e makerspaces. O capítulo Primavera Gelada trata de uma pesquisa de campo que desenvolvi na Finlândia, durante a qual tive a oportunidade de conhecer e visitar formações experimentais de diversos modelos. Por fim, o capítulo Espaços em branco sugere caminhos possíveis para a construção de labs experimentais relevantes para questões contemporâneas.
1O primeiro Esporo de MetaReciclagem era uma grande sala no Shopping SP Market, na zona sul de São Paulo, onde a ONG Agente Cidadão estocava as doações materiais que recebia para posteriormente redistribuir para entidades sociais da capital paulista. Foi ali que, em parceria com o Agente Cidadão e juntamente com Dalton Martins e outros integrantes do Projeto Metá:Fora - uma "chocadeira colaborativa" que reunia uma centena de pessoas em todo o Brasil - a MetaReciclagem ganhou corpo físico pela primeira vez.
2No terceiro capítulo conto um pouco mais sobre a postura e estrutura do MIT Media Lab, e algumas de suas implicações econômicas e políticas.
3O processo foi documentado no website http://blog.redelabs-org.github.io (acessado em 25/02/2014).
4Foi a primeira vez em que me chamaram de "curador" de alguma coisa, um termo originário das artes que, percebi então, me incomodava. Lembro de conversar com um amigo artista sobre o desconforto que eu sentia em me identificar com o campo da "arte eletrônica". Me tomava a síndrome do impostor, uma vez que não tenho formação artística, e não me considero qualificado para debater tais temas apropriadamente. Ainda assim, uma das maneiras com as quais outras pessoas descrevem projetos semelhantes àqueles aos quais costumo dedicar meu tempo é dentro do campo da arte. Isso não diminui meu desconforto, mas oferece ao menos uma série de justificativas que se legitimam na própria construção da narrativa. Assim, sou certamente um estranho dentro do universo da arte, mas é esse mesmo universo que me possibilita desenvolver os projetos que atraem meu interesse.
5Logo nos primeiros dias do mestrado, à posição de forasteiro no mundo da arte somou-se o estranhamento com o mundo acadêmico. Entre as minhas anotações dos primeiros dias de aulas, fiz alguns apontamentos sobre palavras e expressões que ali adquiriam significado ou importância especiais. "Artigo", "Ciência", "Seminário", "Ler um capítulo", "Dar aulas", "Produtividade", "Minha monografia...". Percebi relações de poder bastante claras também, na posição das carteiras submissas ao professor, na determinação de leituras, tarefas e questões, na importância dos títulos. Após quase dez anos fora de uma rotina universitária, precisei me reacostumar com muitas coisas. Todos os textos que produzi durante a pesquisa (inclusive esta dissertação) foram construídos sob a tensão entre meu ritmo de escrita anterior ao retorno à Universidade, que hoje me parece mais fluido embora superficial, e a necessidade presente de compor um texto que possua alguma relevância - na academia e fora dela. Tento ir atrás de um espaço híbrido entre arte, ciência e transformação social. A ideia de laboratório me parece suficientemente flexível para receber algumas dessas inquietações.
Atualmente, diferentes iniciativas no mundo inteiro têm usado a imagem do laboratório, ou "lab", para identificar a si próprias ou a ações que desenvolvem. São usualmente espaços - utilizados de forma temporária ou permanente - dedicados à produção colaborativa transdisciplinar, em especial aproximando profissionais de artes, design, tecnologia, educação e ciências, entre outras áreas. Apesar da utilização de uma denominação comum, o universo de iniciativas que se identificam como laboratórios é significativamente amplo e diverso. O lab cristaliza-se de maneira particular para cada contexto em que surge.
Neste capítulo trato de delimitar o objeto de minha pesquisa refletindo sobre uma série de desenvolvimentos ocorridos no Brasil, desde o começo da década passada até os dias de hoje, que articulam a ideia de laboratório experimental ligado ao campo da cultura digital. Dedicarei para isso especial atenção a duas construções em particular: a primeira, o campo da inclusão digital, reúne iniciativas que teriam por objetivo justamente incluir em uma suposta "era digital" parcelas da população que não teriam acesso a tecnologias de informação e comunicação por seus próprios meios. Interessa-me especialmente nesse contexto a ideia de uma cultura digital tipicamente brasileira, e uma série de projetos que surgiram ligados a esta ideia. Já a segunda construção é mais difícil de classificar e delimitar, uma vez que não envolve instituições específicas ou mesmo objetivos claros. Consiste pelo contrário em um conjunto de intenções que, na falta de termo mais preciso, vou chamar de "experimentais". Vão desde o uso crítico de tecnologias descartadas até trabalhos de arte eletrônica, passando ainda por iniciativas de ativismo midiático, de educação sobre tecnologias de informação e até do desenvolvimento propriamente dito de tecnologias livres e de código aberto.
Esses dois movimentos - a inclusão e a experimentação - formam as bases sobre as quais uma série de projetos importantes se desenvolveram no Brasil durante essa época. Diversos formatos de arranjos criativos se formaram sobre elas. Tais arranjos, que em minha opinião têm características únicas em relação a outros contextos no mundo, identificam-se em determinados momentos como laboratórios experimentais, labs de mídia, hacklabs ou afins. Interessa-me justamente o surgimento da imagem do laboratório dentro da confluência entre arte, ativismo, educação, políticas públicas e desenvolvimento de tecnologias livres no Brasil. A partir do momento em que passam a se identificar como labs, tais iniciativas de certa forma afiliam-se a um histórico de colaboração interdisciplinar que deu origem a formações institucionais específicas em diferentes partes do mundo. No capítulo seguinte darei maior atenção aos processos de formação e desdobramentos deste contexto internacional. Por enquanto, pretendo concentrar-me na interpretação linear que, de forma algo submissa, entende os arranjos experimentais brasileiros como mera consequência desses desenvolvimentos internacionais. Neste capítulo busco problematizar esta interpretação. Tomo por fonte meu próprio envolvimento com tais campos no Brasil para identificar momentos em que o laboratório foi utilizado como definição relevante para modos de pensar e produzir, a partir de uma série de dinâmicas internacionais mas também ligado profundamente a questões locais. Para isso, o capítulo fará uso frequente de relatos pessoais. A intenção é utilizar minha proximidade com o objeto da pesquisa para oferecer uma perspectiva "de dentro", ao mesmo tempo em que também tento me distanciar com o objetivo de obter uma visão mais abrangente de contexto e dinâmicas.
Desde o início da década passada, estive pessoalmente envolvido com o cenário que posteriormente viria a ser conhecido como "cultura digital brasileira". É um campo que adota um discurso no qual evoca-se uma inventividade que seria particular das culturas do Brasil, em especial na maneira como práticas inovadoras cotidianas - como o mutirão e a gambiarra1 - transpõem-se para as novas tecnologias de comunicação e informação. Projeta também um discurso que remete à apropriação antropofágica, traço supostamente característico das culturas brasileiras2. E dá especial importância ao papel das tecnologias livres e de código aberto. A cultura digital brasileira envolve pessoas situadas em diversos contextos sociais e institucionais: grupos dedicados ao ativismo de mídia, coletivos artísticos, escolas e departamentos universitários, empresas de tecnologia e comunicação, instituições sociais, departamentos de governo e outros. Assumem grande importância neste contexto algumas ações capitaneadas e desenvolvidas durante algum tempo pelo Ministério da Cultura do Brasil, como a ação cultura digital no programa Cultura Viva, e posteriormente as duas edições do Fórum CulturaDigital.Br.
Mesmo com o (ou por causa do) peso de uma instituição pública federal, o discurso da cultura digital brasileira foi também adotado por diversos coletivos, organizações de terceiro setor, empreendedores criativos, produtores e fazedores culturais. Na voz de tais atores, costumam ser recorrentes temas como licenças abertas e cultura livre, redes colaborativas, diversidade cultural, autonomia, apropriação crítica de tecnologias, arte eletrônica, ciência cidadã, entre outros. Na maneira como desenvolvem suas ações, podem-se identificar dois movimentos distintos. Não tanto como categorias demarcadas, mas principalmente como tendências ou horizontes de pensamento e ação. O primeiro movimento, que chamo aqui de "compensatório", busca em última instância reduzir as desigualdades criadas historicamente na maneira como as tecnologias são adotadas na sociedade, e com isso oferecer oportunidades de transformação para determinados grupos sociais. O segundo, que denomino "exploratório", avança em direção a possibilidades e sentidos ainda não estabilizados das novas tecnologias. Os dois movimentos frequentemente operam juntos, oferecendo vocabulários e modos de ação complementares. É também comum que o contato entre essas diferentes visões ocasione alguma tensão. Minha interpretação é que essa tensão pode em algumas ocasiões ser criativa e produtiva. Vou deter-me um pouco mais nas características desses dois movimentos.
A primeira das tendências formadoras de um discurso da cultura digital brasileira se concretiza nas ações agrupadas em torno de uma ideia expandida de inclusão digital. São ações que baseiam-se na compreensão de que as tecnologias de informação e comunicação criam possibilidades que - por diversas razões - são desejáveis para a sociedade como um todo, e buscam incorporar a tais dinâmicas grupos sociais que de outro modo não teriam acesso a elas. Argumentam também ter por objetivo equilibrar o impacto que a disseminação das novas tecnologias tem sobre as populações e o planeta. A ideia do acesso às tecnologias de informação e comunicação como um direito fundamental está muito presente nesse discurso, que toma corpo em projetos e programas de organizações governamentais e sociais.
Uma observação relevante é a maneira como esse tipo de iniciativa tem se sofisticado ao longo dos últimos anos. Inicialmente adotavam uma postura fortemente condicionada pela ideia da inclusão em padrões idealizados da vida contemporânea. Em outras palavras, traçavam um paralelo com campos nos quais a exclusão é facilmente verificável a partir de indicadores claros: grau de escolaridade, renda, emprego, acesso a serviços de saúde, ingestão diária de nutrientes, etc. Com base nessa visão, tentavam continuamente estabelecer o que seria um nível ideal de inclusão na tal sociedade da informação - fosse a presença de computadores em espaços públicos ou nos lares, a familiaridade com mouse e teclado, o acesso à internet, o uso instrumental de um ou outro sistema operacional ou software. Tal padrão hipotético e largamente arbitrário costumava naturalmente demonstrar-se fugidio e cambiante. Essa primeira visão de inclusão digital constituia na verdade em uma leitura superficial sobre as possibilidades das tecnologias, baseada na ideia de que o uso típico das classes dominantes deveria ser meramente (e caricaturalmente) repetido de forma ampla através de todas as camadas da sociedade. E ainda assim, de maneira limitada: frequentemente aqueles projetos expressavam a visão de que as populações "incluídas" deveriam ser ostensivamente conduzidas e monitoradas, para garantir que não acessassem pornografia, violência, conteúdo "de mau gosto", etc. Muitos deles também coibiam a busca de arquivos de áudio e vídeo, com a justificativa de que não deveriam incentivar a "pirataria"3.
Na visão desses primeiros projetos, o acesso à internet deveria ser instrumentalizado, como uma ferramenta que permitiria às camadas desfavorecidas adquirirem condições de conquistar um emprego, ou melhorar aquele que já tinham. O útil, o produtivo, o que proporcionasse a adaptação a uma economia de mercado, seria muito mais importante do que o ócio, o inútil, o improdutivo, e por extensão o questionador, o desviante. Naquela época4, praticamente todos os projetos de inclusão digital estavam baseados no acesso a e ao treinamento em softwares proprietários, em particular o sistema operacional Windows e o pacote de aplicativos Microsoft Office. Os responsáveis por tais projetos argumentavam que utilizar softwares livres, supostamente mais complexos e heterogêneos, além de menos populares no ”mercado”, afastaria os projetos de seus objetivos principais: incluir grupos desfavorecidos em um suposto funcionamento típico da economia formal.
Obviamente entra em jogo aqui um aspecto de conformação ao sistema político-econômico internacional. Do ponto de vista daqueles projetos, a sociedade deveria voltar todos os seus esforços para a produção de riqueza, que seria a medida última da relevância de qualquer esforço humano. Segundo esta lógica, os interesses dos grandes grupos econômicos deveriam "naturalmente" ser os interesses de toda a sociedade. Por extensão, os países dominantes, transformados em economias pós-industriais, seriam o ideal de desenvolvimento e assim determinariam as aspirações de todo o restante do mundo. Às sociedades "em desenvolvimento" como o Brasil restaria o papel de gradualmente transformarem-se em réplicas dos países ricos, deixando de lado sua informalidade e falta de organização. Deveríamos, sugeria-se então, ansiar por tornarmo-nos uma sociedade estável e estruturada, com instituições confiáveis - o Estado, a Escola, as Empresas, talvez a Igreja. Por extensão, às populações periféricas também se imporia a mesma necessidade: ou se enquadram ao padrão, ou continuam de fora. Existiria somente um caminho para o futuro.
De acordo com aquele ponto de vista, as tecnologias digitais cumpririam unicamente um papel já definido e claro: aumentar a produtividade da economia. À população caberia o papel de aprender o suficiente para operar como engrenagem da máquina, e nada além disso. É esta, de fato, a plataforma ideológica em que se formaram as primeiras iniciativas de inclusão digital, surgidas no fim dos anos noventa do século passado com forte participação de um imaginário corporativo e comercial. Uma iniciativa representativa desse tipo de pensamento eram as EICs (Escolas de Informática e Cidadania) do CDI (Comitê pela Democratização da Informática). Em sua versão pacificada de empreendedorismo social patrocinado por empresas como a Microsoft, toda a tensão social, todo o paradoxo da representação política e toda a falta de esperanças das periferias eram substituídos por fotografias de adolescentes homogenizados - seja pelo sorriso, pelos uniformes, pela pose confiante ao lado do computador – que estariam ”aprendendo habilidades essenciais para serem inseridas no mercado”. Pouco se comentava que ter acesso a um computador não resolvia outras razões que dificultavam seu acesso a um emprego: a cor da pele, o endereço em que viviam, as gírias que usavam no dia a dia. Eram projetos de inclusão digital que certamente resultavam em alguma transformação pontual, mas que em geral não questionavam seu próprio papel de preparadores de mão de obra – agora ligeiramente qualificada – a ser assimilada pelo próprio sistema que originou sua exclusão. Eram, portanto, projetos extremamente conservadores, à medida em que seus beneficiários conseguiriam no máximo ocupar postos subalternos na economia globalizada contemporânea.
Ainda assim, os diferentes projetos e programas atuando no campo da inclusão digital – naturalmente tributários em alguma medida daquelas primeiras experiências - foram ao longo dos anos dialogando progressivamente com setores que traziam consigo décadas de acúmulo sobre participação popular, colaborativismo e combate a desigualdades: movimentos sociais urbanos e do campo; grupos de ativistas, teóricos, artistas e educadores. Frequentaram o Fórum Social Mundial. Trocaram experiências com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o movimento Hip Hop, as lutas pela igualdade racial, pelos direitos LGBT e pela diversidade cultural, a economia solidária, entre outros. Assistiram a transformações sociais profundas à medida em que programas sociais de grande escala abriam o horizonte de oportunidades da população. Com isso, foram transformando suas práticas e as narrativas que as acompanhavam, além de adquirir - e usar conforme viam necessário - vocabulários carregados de construções oriundas das lutas sociais. A gradual adoção do software livre em iniciativas de inclusão digital deve-se em parte a essa aproximação. Lideranças do emergente movimento do software livre passaram a ir além da mera argumentação técnica. Acompanharam a adoção do ideário do software livre por lideranças políticas ocupando cargos de peso. Passavam a usar termos-chave como autonomia, desenvolvimento local, colaborativismo, cultura digital e economia do comum. Assim construía-se a viabilidade política do software livre. É óbvio que não se deve esquecer o papel do próprio desenvolvimento dos sistemas operacionais e aplicativos livres e de código aberto, que se tornavam mais fáceis de instalar, configurar e usar. Mas o componente político e o cultural tiveram grande peso para a adoção e a disseminação do software livre no Brasil.
De importância significativa na formação da ideia de uma cultura digital brasileira foi o papel assumido pelo Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O programa estabelecido em 2004 ofereceu apoio à transformação de centenas - posteriormente milhares - de projetos culturais de todas as regiões do país em Pontos de Cultura, aos quais era oferecido um pequeno orçamento, alguma infraestrutura e a participação em uma rede de articulação colaborativa. O Ministério era então comandado por Gilberto Gil, músico que décadas antes havia sido um dos principais nomes do Tropicalismo5.
Logo em seu discurso de posse, Gil já afirmara que o Ministério deveria "fazer uma espécie de do-in antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. (...) Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e informações e tecnologias de ponta" (MOREIRA, 2003). A postura do Ministro sugeria uma perspectiva abrangente de cultura em oposição à visão mais tradicional de política cultural que a associava somente ao financiamento da produção de arte e entretenimento. O programa Cultura Viva, após um período de elaboração coletiva, também adotaria uma estratégia de utilização de ferramentas digitais baseadas em software livre e aberto, e nas ideias colaborativas que elas representam (FOINA; FONSECA; FREIRE, 2005). A partir daquela época e durante alguns anos, o Ministério da Cultura tornou-se um loquaz apoiador da disponibilização de produções culturais através de licenças abertas como Creative Commons e similares. Os Pontos de Cultura recebiam equipamentos de produção multimídia: câmeras, mesas de som, impressoras e estações de trabalho configuradas com GNU/Linux. Seus integrantes participavam de encontros e processos de formação nos quais as tecnologias eram apresentadas não como meros instrumentos de trabalho, mas fundamentalmente ferramentas de expressão, engajamento e mobilização, adaptáveis aos diferentes contextos. Esses encontros dialogavam com uma série de eventos e projetos independentes desenvolvidos por redes de ativismo midiático (FONSECA, 2008).
Apesar das inúmeras dificuldades de gerenciamento que o projeto Cultura Viva enfrentou6, ele possibilitou que centenas de pequenas organizações culturais tivessem acesso a tecnologias de informação baseadas em software livre e em dinâmicas de organização e aprendizado em rede. O peso institucional do Ministério da Cultura e o papel pessoal do próprio Ministro também fizeram com que temas como a livre distribuição de conteúdo com licenças abertas tivessem alguma penetração na opinião pública, inclusive internacionalmente7. O entendimento da apropriação de novas tecnologias como legítima manifestação cultural contemporânea consolidou uma visão da inclusão digital que permite traçar rotas de escape do enquadramento no modelo "mercado, utilidade e produtividade". Hoje, um conjunto de práticas em relação às novas tecnologias que enfatiza suas possibilidades políticas e culturais - a participação, a abertura, a diversidade, a articulação em rede e a colaboração - foram espontaneamente incorporadas na construção da ideia de uma cultura digital particularmente brasileira.
Como referido anteriormente, além da inclusão digital como postura compensatória existe também outro horizonte de atuação cujo foco não é a mera inserção de mais pessoas em possibilidades já estabelecidas das redes conectadas. Falo aqui de um universo de reflexão e produção experimentais que - em vez de basear-se em simplesmente trazer mais pessoas para uma suposta era da informação que estaria dada - busca desconstruir, criticar e interferir na maneira como as tecnologias operam dentro da sociedade. O objetivo aqui, ao contrário daquelas políticas compensatórias que buscariam uma maior distribuição de recursos já existentes, seria explorar novos caminhos potenciais das tecnologias digitais de informação e comunicação e das dinâmicas que elas despertam. Não se trata de um campo à parte. Parte dos projetos de inclusão digital definitivamente adentraram a arena da experimentação. Uma vez ali, acabaram se aproximando de outros campos que também estavam orbitando a ideia de cultura digital: ativistas inspirados por movimentos urbanos internacionais, artistas trabalhando na fronteira arte/ciência/tecnologia, hackers desenvolvendo software livre e organizando espaços de trabalho autogeridos, empreendedores inspirados pelo universo do código aberto. Nesse contexto, uma construção que vai surgindo ao longo dos anos e sendo apropriada para diferentes finalidades é o laboratório - entendido aqui como espaço coletivo capaz de articular oportunidades, interesses e habilidades, e também como maneira de escapar às armadilhas do trabalho criativo orientado unicamente ao mercado.
Minha própria aproximação com os laboratórios aconteceu de maneira mais aprofundada a partir da experiência direta com o programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, mencionada acima. Eu fazia parte da equipe responsável pela implementação da ação Cultura Digital, que buscava proporcionar a apropriação efetiva das tecnologias de informação oferecidas aos Pontos de Cultura. Durante alguns anos, nosso trabalho foi organizar os Encontros de Conhecimentos Livres e as oficinas locais, além de promover a articulação em rede dos Pontos de Cultura. Os Encontros de Conhecimentos Livres eram ocasiões em que os Pontos de Cultura de uma região passavam cerca de cinco dias reunidos em imersão. O objetivo principal era mostrar a eles exemplos do que poderia ser feito com tecnologias livres, e também identificar indivíduos e grupos que tivessem o potencial para tornarem-se futuros replicadores das metodologias que então desenvolvíamos. As oficinas locais eram uma segunda etapa, já concentrada naqueles mesmos indivíduos e grupos com potencial. Tratavam-se de intervenções mais pontuais, que também duravam de quatro a cinco dias mas cujo objetivo era proporcionar autonomia a partir da capacitação técnica daquelas pessoas. A articulação em rede era desenvolvida de maneira continuada, incentivando que as pessoas envolvidas com os Pontos de Cultura buscassem através da internet a solução para suas questões, que publicassem sua produção com licenças livres e que criassem laços e conexões com outros Pontos. Participei da elaboração e implementação do programa como um todo, entre algumas das primeiras ideias em 2003 e minha saída em 2007.
Após alguns anos de atuação fortemente concentrada em eventos e oficinas, os indivíduos e coletivos envolvidos diretamente com o programa registravam algum esgotamento. A realização continuada de oficinas de formação havia de certa forma obscurecido o horizonte de produção autônoma daqueles grupos. O que havia começado como ativismo parecia estar transformando-se em mera prestação de serviços para o poder público. O termo laboratório ou lab começou a ser utilizado neste contexto, em parte pelo intercâmbio com projetos internacionais mas possivelmente também como maneira de escapar a uma percepção de esvaziamento ideológico ou estético dentro do contexto dos Pontos de Cultura. Começava então a despontar a denominação "hacklab"8: o grupo responsável pelo desenvolvimento dos sistemas de comunicação e demais soluções tecnológicas do Cultura Viva denominava-se hacklab. No final de 2005, organizou-se no Rio de Janeiro o Hacklab Immersion, encontro desse grupo para definir soluções para a Cultura Digital. Outras variações do "laboratório" também passaram a aparecer no entorno. No começo de 2007, alguns integrantes da MetaReciclagem ligados ao Cultura Viva organizamos em São Paulo o LaMiMe (Laboratório de Mídias da MetaReciclagem), que ofereceu oficinas abertas de tecnologias livres para produção multimídia e promoveu um encontro pioneiro de pesquisadores, artistas e ativistas de diferentes partes do Brasil que atuavam em campos afins.
Diferentemente da usual associação da ideia de laboratório a espaços físicos permanentes, muitas vezes com acesso a infraestrutura de grande porte, esses autoproclamados labs buscavam proporcionar períodos imersivos de troca de conhecimento e produção, mesmo sem a intenção de permanência ou a necessidade de equipamentos de alta tecnologia. Refletiam uma facilidade em ocupar temporariamente os espaços, tratando o presencial como efêmero. Uma referência comum entre aqueles grupos envolvidos com a construção da cultura digital no Brasil eram as Zonas Autônomas Temporárias - TAZ (abreviação em inglês de Temporary Autonomous Zones), título de livro do autor anarquista estadunidense Hakim Bey lançado no Brasil em 2001 dentro da coleção Baderna da editora Conrad. As TAZ denominariam os únicos momentos nos quais a potência de liberdade pode tomar lugar de maneira efetiva. O levante e não a revolução deveria ser a meta da ação política. Sua utilização por grupos de artistas, ativistas e produtores culturais no Brasil daquela época pode estar associada a uma percepção de imobilidade e burocratização dentro das instituições culturais - o que justificaria a recusa em lutar pela criação de espaços formais de experimentação. Tais grupos, assim, fariam uso das instalações daquelas instituições, abrindo espaços de intervenção sem necessariamente se submeterem às questões do cotidiano e sua micropolítica. Concorria também a crescente utilização coletiva da internet: a permanência era delegada para a rede, a partir de sistemas online para mobilização, registro, troca e memória. Ecoando o imaginário tecnoutópico associado à popularização da internet - sobre o qual debateremos em mais profundidade no próximo capítulo -, a construção de identidade se daria não mais dentro de instituições burocráticas, mas sim a partir de grupos de afinidade auto-organizados através de ferramentas digitais.
De fato, foi justamente esse um dos pontos de tensão que surgiram quando representantes dos grupos Mídia Tática e MetaReciclagem participaram de um projeto de intercâmbio com Holanda e Índia no âmbito da plataforma Waag-Sarai, no segundo semestre de 2004. A plataforma tinha a expectativa de que os brasileiros envolvidos chegassem ao fim do processo com o plano para implementação de um "centro de mídia" em alguma metrópole brasileira. Entretanto, nenhum dos dois grupos selecionados demonstrou particular interesse em desenvolver suas ideias exatamente daquela forma. O que então se projetava como surgimento de algumas centenas de Pontos de Cultura oferecia um horizonte no qual as prioridades deveriam ser outras: parecia mais importante ocupar os diversos espaços existentes do que criar do zero uma nova estrutura. Mídia Tática propunha um laboratório itinerante, se possível em um ônibus equipado que pudesse percorrer diferentes localidades do Brasil (ideia que posteriormente seria levada a cabo por outros grupos como o Ônibus Hacker9); enquanto a MetaReciclagem buscava desenvolver metodologias de organização e articulação em rede que pudessem ser aplicadas em qualquer lugar - e acabou por adotar uma postura muito mais voltada à documentação e compartilhamento dos resultados de ações do que em ansiar por permanência em um dado lugar.
A tática de ocupar espaços institucionais de maneira dinâmica possibilitou a criação de áreas concretas de transformação e interferência na sociedade10. Funcionou também como resposta concreta à instabilidade das próprias instituições culturais brasileiras, que frequentemente mudam de rumos ao sabor dos ventos. Por outro lado, o foco na ocupação temporária também implica um inevitável desequilíbrio na relação entre as partes. A instituição (o patrocinador) usualmente mantém todo o poder de decisão no que diz respeito a recursos, parcerias, duração e composição de equipes. Os critérios de escolha para as temáticas de projetos, dessa forma, acabam se submetendo à visão de mundo da instituição. São valorizados a quantidade de participantes, o potencial de exposição e repercussão midiática, a associação com assuntos em voga em determinado momento. Ou, por outro lado, critérios subjetivos do indivíduo que "assina o cheque". É raro que estes ou aqueles critérios coincidam com os interesses dos artistas, ativistas, educadores ou pesquisadores envolvidos com - e por vezes principais interessados em - tais iniciativas. Outra consequência particular desse cenário é que mesmo aqueles projetos que anseiem por permanência precisam competir em desvantagem pelos mesmos recursos que os projetos temporários - mais fáceis de administrar por diversas razões, inclusive trabalhistas e fiscais.
Ainda assim, ou justamente sob essas condições, a ideia de laboratório temporário foi-se fazendo cada vez mais presente, ainda que reinterpretada de acordo com as questões e condições particulares do contexto brasileiro. Hoje, dezenas de iniciativas no país usam o termo laboratório para referir-se à ocupação de espaços para reunir pessoas com competências diversas e com uma agenda em comum, tenham esses espaços infraestrutura específica ou não, tenha ou não essa ocupação a intenção de permanência. Salas de informática em escolas, instalações em universidades, pontos de cultura e outros espaços culturais e mesmo a rua ou outros espaços públicos podem tornar-se laboratórios, a depender exclusivamente de existirem pessoas que o declarem. Um lab também pode existir como parte de um evento e depois desaparecer, ou então realizar-se de forma itinerante11. Nesse sentido, pode-se dizer que laboratórios não são: laboratórios acontecem. Costumam dirigir o foco menos à formação ou à capacitação do que a explorar possibilidades experimentais, participar do debate corrente sobre quais os futuros possíveis para as tecnologias.
No final de 2011, aconteceu no Rio de Janeiro a primeira edição do Festival Internacional CulturaDigital.Br. Herdeiro do Fórum de mesmo nome que havia sido realizado duas vezes em São Paulo em 2009 e 2010, o Festival havia não somente mudado de cidade como também de posicionamento. Enquanto um fórum soa como evento voltado a um público de especialistas ou grupos engajados, o festival sugere celebração, ao mesmo tempo em que também convida curiosos e até pessoas que ignoram totalmente seus temas12. Participei da curadoria, tendo ficado responsável por organizar o que acabamos chamando de LabX, um laboratório experimental temporário, durante os dias de realização do Festival.
Selecionamos propostas de participação de cerca de trinta pessoas do mundo inteiro, e tratamos de incentivar os participantes a trazerem seus próprios projetos em desenvolvimento, em vez de oficinas ou cursos. A lógica era que um laboratório não se constrói simplesmente com aulas. Pelo contrário, a intenção era que aquelas pessoas tivessem durante alguns dias a liberdade de dedicar-se a solucionar coletivamente questões que mexiam com seu próprio universo de referências e motivações. Alguns deles levaram obras em andamento que exporiam no mês seguinte em outras cidades, outros fizeram apresentações de softwares que estavam desenvolvendo. Houve debates sobre laboratórios, intervenções poéticas, testes de protótipos. Encontros casuais ocorridos ali resultariam em diversas parcerias concretas nos meses seguintes. Alguns, é fato, limitaram-se a realizar oficinas, como estavam acostumados. Mas o lab não exigia isso deles. Precisei insistir diversas vezes - não somente com o público que passava pelo espaço como também com os próprios participantes - que "laboratório não é escola". Ou seja, que não tínhamos horários de aula predefinidos, avaliações ou certificados.
Esse episódio ilustra um aspecto importante a respeito dos labs experimentais em rede: frequentemente, eles estão situados em lugares nos quais existe mais liberdade de atuação do que as pessoas estão acostumadas a lidar. De que maneira o lab se articula com outros espaços no tecido urbano? Ao contrário de outros lugares nos quais as mesmas pessoas costumam circular - como a escola e a Universidade, o escritório e o estúdio, o café e a praça pública, a lan house e o telecentro, o comércio, a moradia - o laboratório não tem um objetivo claramente definido. Será que essa indeterminação pode ser considerada como uma de suas características definidoras? Experiências brasileiras - como o encontro Upgrade!Salvador de 2006, que realizou um debate sobre arte contemporânea dentro de um ônibus urbano de linha; ou o festival Digitofagia, que proporcionou uma ocupação cultural do MIS/SP - têm muito a contribuir com a discussão internacional sobre labs experimentais. Nos próximos capítulos pretendo trazer elementos sobre esse debate em andamento, enumerando outros exemplos de labs na história recente, relatando meu contato pessoal com uma série de labs e assemelhados durante uma visita à Finlândia e por fim retornando justamente à questão da relevância dos labs na sociedade contemporânea e buscando caminhos para driblar sua sempre latente captura pelo mercado das novidades comercializáveis.
1Entendendo estes dois termos de maneira que pode soar algo caricatural, mas que encontra eco no discurso de pessoas envolvidas com a cultura digital brasileira. Assim, a mutirão seria o esforço coletivo e impermanente voltado para a solução de problemas específicos, ao passo que a gambiarra seria a inventividade material do dia a dia, que transforma a precariedade em recurso criativo.
2Um dos principais marcos do modernismo brasileiro, o Manifesto Antropófago publicado em 1928 pelo poeta Oswald de Andrade apontava a hibridização entre culturas estrangeiras e nativas como elemento formador e aglutinador de identidade. A antropofagia costuma ser utilizada como referência para pensar a cultura digital brasileira, em especial no que se refere à apropriação de tecnologias (GARCIA, 2004; SILVA, 2011).
3É importante assinalar que na prática a juventude de classes médias e altas não enfrenta tais restrições no seu uso doméstico - fato significativo no que diz respeito às intenções subjacentes a essas iniciativas de inclusão.
4Esse tipo de perspectiva era bastante comum em projetos de inclusão digital desenvolvidos ao redor da virada do milênio, mas é importante ressaltar que essa visão está presente até hoje, particularmente em projetos de inclusão digital financiados por empresas comerciais ou fundações a elas subordinadas.
5Movimento cultural surgido no fim da década de 60 do século XX que misturava manifestações culturais tradicionais, influências da cultura pop e das vanguardas artísticas nacionais e internacionais.
6O Ministério da Cultura tinha então uma estrutura administrativa modesta para os padrões de Brasília. Quando se propôs a gerenciar um projeto que em sua primeira leva distribuía recursos para cerca de 160 organizações em todo o país, já enfrentava inúmeros problemas. À medida em que o programa crescia até abranger milhares de organizações, os problemas naturalmente se multiplicavam.
7A aproximação do então Ministro da Cultura com as licenças livres foi inclusive tema de reportagem de capa de uma edição da Wired, revista estadunidense que tem um papel central no imaginário da cultura digital, e sobre a qual falarei mais detidamente no próximo capítulo.
8No próximo capítulo exploro em maior detalhe as diferentes denominações utilizadas por laboratórios experimentais ao longo das últimas décadas e em diferentes contextos sociopolíticos, com especial atenção aos hacklabs e o imaginário político associado a eles.
10A facilidade em ocupar espaços institucionais foi de fato um dos fatores a viabilizar a concretização de iniciativas como a própria ação cultura digital dentro do Cultura Viva. Em meados de 2003, Claudio Prado, produtor cultural e amigo pessoal de Gilberto Gil, convidou dezenas de pessoas com origens e formações diversas - este autor incluído - a colaborarem com a elaboração e implementação de uma política pública de cultura digital a ser implementada pelo Ministério da Cultura. Formou-se assim o grupo que se chamaria "Articuladores" e durante cerca de dezoito meses construiria aquilo que veio a ser a base da ação cultura digital no Ministério da Cultura. Para este grupo, formalidades eram vistas como obstáculos burocráticos a ultrapassar, e um coletivo formado por pessoas com formações diversas e altamente motivadas - porque acreditavam operar uma espécie de TAZ - era altamente eficiente em dar os saltos que se necessitava (FOINA; FONSECA; FREIRE, 2005). Essa lógica de ocupação fazia com que a própria ligação com o Ministério da Cultura fosse em si uma contingência. Grande parte daquelas pessoas nunca havia planejado desenvolver um projeto para o setor público. Pelo contrário, só estavam ali porque as condições haviam surgido, quase por acaso. Posteriormente, boa parte delas retornaria às atividades artísticas, de pesquisa ou comerciais que desenvolviam antes.
11Conforme desenvolvido em projetos como o Laboca (Laboratório de Computação e Arte) de Jarbas Jácome, Jeraman e Ricardo Brazileiro, desenvolvido durante festivais como o FILE; o co:laboratório de Daniel Dias, Arthur Lima e Eduardo Silva que realizou encontros no Centro Cultural São Paulo; os encontros Hacklab desenvolvidos no SESC Pompeia de São Paulo por Radamés Ajna, Giuliano Obici e Guima-san; entre outros.
12O Festival também tinha mais autonomia em relação ao Ministério da Cultura, que desde o início daquele ano havia mudado radicalmente de rumo a partir da posse da nova Ministra, Ana de Hollanda - uma pessoa notoriamente ligada à indústria fonográfica tradicional, e consequentemente avessa às iniciativas de discussão de cultura digital e flexibilização de direito autoral anteriormente propostas por aquele Ministério. Durante a gestão de Ana de Hollanda, todos os temas ligados à cultura digital e às licenças livres foram praticamente deixados de lado. O Festival, assim, assumia naturalmente o papel de lugar de posicionamento político a favor do legado da cultura digital brasileira.
Em março de 2010, às vésperas da realização de mais uma edição do festival Pixelache1 em Helsinque, o então Diretor Artístico do festival Juha Huuskonen publicou no blog do evento o seguinte post:
"Os labs estão de volta! Parece haver um renascimento dos laboratórios experimentais de mídia acontecendo no momento. Enquanto alguns dos grandes fecharam suas portas durante os últimos anos (IVREA, Media Lab Europe, Interactive Institute), os pequenos estão florescendo - o Kitchen Budapest produziu uma quantidade impressionante de trabalhos em poucos anos, FabLabs estão sendo abertos por todo o mundo (nossos amigos em Ghent [Bélgica] acabaram de abrir um), Hackerspaces também (existe agora um em Helsinque), os Baltan Laboratories acabaram de organizar o seminário ’The Future of the Lab’ e a rede LABtoLAB acaba de começar suas atividades."2
O que são estes laboratórios, e o que significa esse suposto retorno? O que haveria de comum entre os diferentes labs enumerados por Huuskonen? Ele menciona desde instituições corporativas até laboratórios mantidos por artistas, passando também por formatos como os hackerspaces e os Fablabs. Para além da diferença de escala - labs "grandes" e "pequenos" -, o post também sugere, nas entrelinhas, uma diversidade de visões de mundo e modelos de atuação. Entre as organizações citadas, por exemplo, estava o Media Lab Europe, que funcionou por poucos anos em Dublin (Irlanda). O Media Lab Europe tentava importar à Europa o modelo de funcionamento do Media Lab do MIT, nos Estados Unidos. O encerramento de suas atividades foi atribuído a uma série de fatores, incluindo a crise financeira internacional de 2008. Mas a verdade é que mesmo antes da crise, o Media Lab Europe nunca chegou a produzir muito de significativo em seus supostos campos de atuação - inovação, tecnologia e design. Existiriam também diferenças sociais e culturais que impossibilitavam a transposição de um modelo de laboratório estadunidense ao contexto europeu?
Outro elemento importante no post de Huuskonen é o adjetivo que atribui aos laboratórios então em crescimento: "experimentais". Como referido no capítulo anterior, o experimental pode ser interpretado como um instrumento de problematização de questões contemporâneas. Estaria assim situado em oposição tanto a uma visão de mero atendimento de necessidades quanto a uma de mera observação. Andrés Fonseca contrapõe a imagem de laboratório à do observatório. Este se caracterizaria pela posição de observação de temáticas sociais para registrar uma série de comportamentos e práticas e eventualmente propor soluções concretas. Já o laboratório "nos situa necessariamente em dinâmicas de produção coletiva e inovadora da realidade, mais do que nas lógicas de registro e análise em si. O laboratório, portanto, remete ao design, à experimentação e à colaboração" (FONSECA A., 2012, p.61).
Desde o post de Huuskonen, o número de espaços ou grupos que se intitulam laboratórios ou similares (media labs, hackerspaces, fablabs, hubs, etc.) continuou crescendo exponencialmente em todos os continentes. O mapa internacional de hackerspaces3 lista cerca de 500 deles (contando somente os declarados "ativos"). O mapa de Fablabs4 lista outros 258 espaços. O website Afrilabs aponta 20 labs e hubs de inovação somente no continente africano5. Aqui no Brasil, como citado no capítulo anterior, estive pessoalmente engajado em encontros dedicados a discutir e articular laboratórios de cultura digital experimental. Diversas instituições acadêmicas e culturais têm aberto espaço para a criação de laboratórios experimentais, de mídia e inovação. Além dos espaços físicos, inúmeras ações temporárias no mundo inteiro utilizam-se da imagem do laboratório para classificar algumas de suas ações - de oficinas abertas a intervenções públicas, passando por projetos com variados níveis de complexidade conceitual ou tecnológica.
Afirmar que "os labs estão voltando", entretanto, sugere que exista uma história comum em meio à diversidade de formatos de trabalho e configurações institucionais possíveis. Esta perspectiva usualmente articula os arranjos experimentais atuais como expoentes de uma linha narrativa singular que envolveu diversas colaborações transdisciplinares entre arte e tecnologia, ou entre cultura e ciência, ao longo das últimas décadas. Neste capítulo exploro nuances desta narrativa, propondo que não se trata de uma história única mas de diversas vertentes que, se têm naturalmente muitos pontos de cruzamento, apresentam também algumas diferenças marcantes. Minha intenção ao voltar os olhos para tais diferenças é criticar uma visão triunfalista e determinista acerca do lugar do desenvolvimento de novas tecnologias e de seus usos na sociedade. Apontando tensões e conflitos presentes nessa história, creio ser possível entender melhor algumas das dinâmicas presentes em tais desenvolvimentos.
Interessa-me inicialmente registrar a oposição percebida por diferentes atores envolvidos com áreas afins entre, por um lado, uma atuação supostamente mais típica de projetos estadunidenses ou por eles influenciados, voltadas ao empreendedorismo de mercado, e de outro lado aquela expressa por projetos europeus e outros sob sua influência que assumem um posicionamento político mais explícito. Mesmo entendendo que tais posturas não são absolutas ou invariáveis, me interessa entender como esses discursos aparecem e se desenvolvem dentro das práticas dos assim chamados laboratórios experimentais.
Para analisar esta cisão, começo relatando um momento em que ela ficou particularmente explícita, há cerca de uma década, aqui no Brasil. Em seguida, volto mais algumas décadas para traçar algumas linhas de colaborações interdisciplinares e modelos de atuação que influenciaram o desenvolvimento de labs experimentais. Por fim, falo sobre alguns formatos de labs sendo desenvolvidos nos dias de hoje.
Março de 2003, unidade Avenida Paulista do SESC. Corria a sessão de abertura do festival Mídia Tática Brasil. Ao centro sentava-se Gilberto Gil, moderador daquele painel e ainda cumprindo seus primeiros meses como Ministro da Cultura do Brasil. A fala inicial de Gil dava indícios de caminhos que seriam efetivamente seguidos por sua gestão à frente do Ministério nos anos seguintes: reconhecia as tecnologias de informação e comunicação não somente como ferramentas de produção mas essencialmente como fazer cultural contemporâneo, além de importantes instrumentos para a valorização e integração da diversidade cultural.
"Antes mundo era pequeno porque terra era grande. Hoje mundo é muito grande porque terra é pequena. (...) Esses versos (...) ainda resumem meus pensamentos sobre a nova visão do mundo. A antena não é apenas parabólica. Ela tem a ressonância de uma cabaça de berimbau, uma cabaça parabólica que poderia simbolizar a utopia digital brasileira. Seria mera utopia? A cultura luta com a técnica, mas tudo com a graça de um jogo de capoeira onde a briga e a diversão, a amizade e a rivalidade se confundem." (MOREIRA, 2003)
Além de posicionar-se frente à contemporaneidade com sua usual veia antropofágica, Gil também poderia estar sugerindo com a ambiguidade da capoeira a busca de conciliação em meio à tensão explícita entre dois integrantes daquela mesa. À sua direita sentava-se John Perry Barlow, da EFF - Electronic Frontier Foundation. Do outro lado, o então coordenador do centro de pesquisa em hipermídia da Universidade de Westminster, Richard Barbrook. O debate, cujo tema era inclusão digital, contava ainda com a presença de representantes de outras instituições, projetos e poder público. Mas foram as posições antagônicas dos dois convidados estrangeiros que praticamente monopolizaram o debate da noite, como relatado à época pelo jornalista Alexandre Matias6, que definiu o episódio como "histórico".
Em sua fala, Barlow - letrista da banda de rock The Grateful Dead que nos anos noventa tornou-se ativista da cultura digital - definia a si mesmo como um "velho hippie" estadunidense. Contrapunha-se assim a Barbrook, que seria, também nas palavras de Barlow, "um punk" britânico. A aparente brincadeira reflete diferenças reais e profundas. A EFF, organização fundada por Barlow com o desenvolvedor de software Mitch Kapor, evoca no próprio nome ("frontier") a conquista do oeste estadunidense, sugerindo a exploração - ou colonização? - de espaços anteriormente desabitados. Barlow é também autor da "Declaração de Independência do Ciberespaço"7, manifesto que afirma o "ciberespaço" como realidade autônoma, separada da realidade - e ainda inexplorada -, em relação ao qual os "Governos do Mundo Industrial" não teriam soberania. Atribuía às novas tecnologias, assim, o papel de motores de uma profunda transformação social. Fred Turner (TURNER, 2006, p. 13) afirma que, com a Declaração, Barlow afirmava que as tecnologias se haviam transformado de símbolos da alienação burocrática em ferramentas para derrotar as próprias alienação e burocracia.
Afirmando-se um hippie, Barlow reafirma o discurso de grupos da contracultura estadunidense que entre os anos sessenta e setenta do século passado tentaram criar comunidades alternativas supostamente independentes do restante da sociedade. Aqueles grupos, que viam na californiana São Francisco uma Meca, exerceram forte influência sobre a cultura de uma região na qual à mesma época se consolidava uma área do conhecimento e da economia que nas décadas seguintes tomaria o mundo. Trata-se da indústria da tecnologia de informação, no chamado "Vale do Silício". Naquele contexto, tanto hippies quanto as pessoas envolvidas com computadores lançavam mão de ideias de autores como Marshall McLuhan propagando a utopia de um mundo sem atrito, a chamada "aldeia global" mediada pelos meios de comunicação eletrônica.
Já Richard Barbrook trazia à mesa outro conjunto de referências. Envolvido com o movimento punk e as rádios livres na Inglaterra dos anos oitenta, Barbrook escreveu com Andy Cameron "A Ideologia Californiana", uma crítica especialmente direcionada ao empreendedorismo "pontocom" de meados dos anos noventa. Barbrook e Cameron viam naquele cenário a consolidação de um discurso que aproximava argumentos usualmente ligados ao pensamento da esquerda a posicionamentos típicos dos setores conservadores da sociedade. Por exemplo, falava-se na substituição do capitalismo corporativo por uma economia da dádiva, na qual as pessoas se organizariam de maneira colaborativa em torno de objetivos comuns; ao mesmo tempo em que se pregava o liberalismo econômico, com um estado mínimo e a imposição da lógica de mercado segundo a qual o valor financeiro é a única medida de sucesso, além do estímulo à competição comercial como único caminho de desenvolvimento econômico e incentivo à inovação. O texto de Barbrook e Cameron acusa que sobre o entendimento público a respeito de tecnologias de informação na Europa dos anos noventa recai forte influência de um imaginário estadunidense, baseado em premissas falsas - como o mito de que a Internet foi desenvolvida principalmente pelo setor privado. Sugerem que "os engenheiros-artistas europeus devem construir um ciberespaço inclusivo e universal. Agora é a hora para o renascimento da Modernidade" (BARBROOK; CAMERON, 1995). Ainda que critiquem a suposta versão da direita política estadunidense para a história da internet, Barbrook e Cameron concordam com a importância da colaboração interdisciplinar (daí o "engenheiro-artista") e propõem uma visão utópica alternativa, ainda depositando esperanças no papel das tecnologias para o bem da sociedade. É justamente neste espaço - da fronteira entre disciplinas apontando para futuros melhores - que também se havia construído a imagem pública do Media Lab do MIT, que como veremos a seguir pode ser paradoxalmente uma das maiores expressões daquilo que Barbrook e Cameron criticavam8.
Em se tratando de organizações dedicadas à pesquisa transdisciplinar voltada ao desenvolvimento de novas tecnologias que articulam cultura e ciência, uma das referências mais conhecidas internacionalmente é o Media Lab, laboratório de mídia do MIT, universidade estadunidense localizada em Massachusetts. Encabeçado durante anos por Nicholas Negroponte9, o Media Lab notabilizou-se não somente pela quantidade de patentes registradas como também por sua presença midiática. É publicamente considerado uma referência internacional sobre inovação e conhecimento aplicado, e seus diretores e coordenadores costumam ter bastante espaço na imprensa. De fato, como veremos mais para a frente, o Media Lab tem uma ligação íntima com a Wired, revista com profunda influência sobre o tom e os formatos adotados pela mídia especializada em tecnologia e negócios no mundo inteiro10.
As bases que haviam dado origem ao Media Lab confundem-se com o desenvolvimento da própria cibernética enquanto área do conhecimento, ao longo da segunda metade do século XX. O escocês Charlie Stross é um autor de ficção científica que se orgulha de conhecer bastante sobre computadores, seus usos e sua história. Stross publicou há alguns anos um relato sobre a visita que fez ao Media Lab. Nele, sugere uma linha histórica partindo dos primórdios da cibernética em meio à Segunda Guerra Mundial, quando nomes como Alan Turing e Norbert Wiener participavam de projetos de pesquisa transdisciplinar, e que um dia levariam ao Media Lab:
"(...) durante a era pós-guerra, muitos laboratórios de pesquisa acadêmicos (e patrocinados comercialmente) levaram o campo em frente: a Universidade de Manchester foi pioneira na computação civil no Reino Unido, Xerox PARC na Califórnia inventou a impressora a laser, a interface gráfica de usuário e as redes ethernet em um período de meros cinco anos, e IBM e Bell Labs entre elas parecem ter inventado tudo desde os discos rígidos até o [sistema operacional] UNIX (e muito mais).
Todas estas instituições tinham algumas características em comum. Os pesquisadores estavam sob pressão de prazos ou pressão financeira (indireta). Havia uma forte ênfase em pesquisa aplicada combinada a excelência acadêmica - não simples design de produtos ou estudos teóricos em torres de marfim, mas pesquisa sobre como melhor aplicar teorias de vanguarda para problemas correntes. E agregando uma massa crítica de pessoas brilhantes, altamente motivadas e encorajando-as a falar livremente (...), elas se fertilizavam de maneira cruzada.
E então existe o Media Lab no MIT (o Instituto de Tecnologia de Massachusetts). O Media Lab não é um departamento ordinário de ciência da computação, e não somente porque foi fundado por um arquiteto. De fato, tentar listar tudo o que o Media Lab é em menos de uma página ou três é quase impossível - em 1997 Stewart Brand começou a escrever um artigo sobre ele e acabou com um livro." (STROSS).
A menção a Stewart Brand está longe de ser casual. Brand foi fundador do Whole Earth Catalog, um catálogo impresso de "acesso a ferramentas" publicado regularmente entre 1968 e 1972, referência da contracultura estadunidense de então. Partindo da Califórnia - na qual à mesma época computadores e afins eram desenvolvidos em lugares como o Xerox PARC mencionado acima por Stross -, a contracultura espalhou-se por todo o país e pelo mundo. Parte do imaginário compartilhado entre a contracultura e os desenvolvedores de tecnologia foi levada na bagagem. Em 1985, Brand criou com Larry Brilliant o Well, um BBS11que posteriormente se tornaria uma ativa comunidade online na internet. Em 1986, um ano antes de publicar o livro mencionado por Stross, Brand era pesquisador visitante no Media Lab. Em 1993, foi um dos fundadores da já mencionada revista Wired, um dos principais meios de propagação daquilo que Barbrook chamaria de ideologia californiana. O primeiro investidor da Wired foi Nicholas Negroponte.
A trajetória de Brand, partindo do coração da contracultura hippie dos anos sessenta para tornar-se organizador de conferências para empresas multinacionais nos anos noventa12, é representativa da inversão de postura política apontada por Barbrook. Ela explicita também a conexão íntima existente entre a contracultura hippie e a cultura hacker surgida ao longo das décadas de setenta e oitenta, à medida em que as tecnologias tornavam-se mais acessíveis - em especial com a criação dos microcomputadores. Empresários célebres do Vale do Silício como Steve Jobs (que foi fundador e presidente de empresas de tecnologia como a Pixar e a Apple) estiveram ligados a ambos os mundos: um pioneiro da microinformática e homem de negócios, Jobs confessou haver tomado LSD na Califórnia dos anos sessenta.
Mas esta história não começou com a contracultura. Precisamos voltar ainda mais algumas décadas, até a Segunda Guerra mundial. Fred Turner situa nos anos quarenta do século XX uma transformação na ciência estadunidense. Segundo ele, "antes da guerra, a ciência e os cientistas pareciam situar-se fora da política. (...) [Eles] mantinham uma distinção clara entre a ciência e a engenharia, e entre pesquisa militar e civil" (TURNER, 2006, p. 17). Mas isso mudaria durante a Segunda Guerra. Foi Vannevar Bush quem convenceu em 1940 o então presidente estadunidense Franklin Roosevelt a financiar instituições civis de pesquisa com dinheiro voltado a fins militares. Bush havia sido professor e administrador do MIT, e ficou no comando desse orçamento (TURNER, 2006, p. 18). A necessidade de tecnologias para a guerra ofereceu um propósito concreto e vultosos recursos para diversos projetos. Foi naquele contexto que começaram a ser estruturados laboratórios interdisciplinares nos quais especialistas em diversas áreas eram instados a trabalhar em torno de objetivos em comum.
"Um dos laboratórios mais efetivos e visíveis da guerra era o Radiation Laboratory do MIT. Fundado no fim de 1950 com um financiamento de meio milhão de dólares do NDRC, o Rad Lab, como era comumente conhecido, objetivava desenvolver maneiras mais eficientes de rastrear e abater os bombardeiros que então infestavam a Grã-Bretanha. (...) Antes de ser fechado no fim da guerra, o laboratório tinha o apoio de financiadores governamentais, clientes militares, prestadores de serviços industriais (...). Ao longo dos vinte anos seguintes, engenheiros e administradores associados ao Rad Lab e ao MIT durante a guerra assumiriam papéis chave em uma diversidade de iniciativas de pesquisa patrocinadas pelo Departamento de Defesa." (TURNER, 2006, p. 19)
Com a pressão de tempo e a necessidade de respostas inovadoras que atravessassem diversos campos do conhecimento, novas formas de trabalho tinham campo livre para se desenvolverem. O Rad Lab era gerenciado de maneira não-hierárquica, com um regime de trabalho flexível e colaborativo. Reunia cientistas, engenheiros, matemáticos, designers e planejadores governamentais e militares. Seus integrantes eram estimulados a empreender e buscar auxílio de colegas com outras especialidades. A maneira como os projetos eram desenvolvidos no MIT influenciou diretamente o desenvolvimento do campo da cibernética em si:
"[O matemático Norbert] Wiener não criou do nada a disciplina da cibernética; pelo contrário, ele agrupou seus termos analíticos criando pontes entre múltiplas comunidades científicas anteriormente segregadas. (...) Wiener podia reunir peças de fontes tão diversas porque ele estava em contato colaborativo constante com representantes de cada um desses domínios no Rad Lab, em suas famosas caminhadas pelos corredores do MIT, e em seus períodos na Escola Médica de Harvard. Durante essas peregrinações, ele discutia fisiologia com Arturo Rosenblueth, feedback com os engenheiros do Rad Lab e, muito provavelmente, comportamento humano com ambos.(...) [A] retórica da cibernética foi produto de trabalho empreendedor interdisciplinar." (TURNER, p. 24-25)
Turner aponta que a migração da cibernética para as ciências sociais e, em certa medida, as físicas e biológicas, deve-se às Macy Conferences, encontros de intelectuais realizados em Nova Iorque entre 1946 e 1953. Desenvolvendo, compartilhando e expandindo a cibernética, elas ajudaram a transformar o campo em um dos paradigmas intelectuais dominantes do pós-guerra. Também contribuíram decisivamente para que as ideias da cibernética fossem incorporadas ao imaginário social da época.
Barbrook (BARBROOK, 2009, p. 44) aponta a Exposição Mundial de Nova Iorque em 1964 como momento em que "a ficção científica viu-se transformada em fato científico", criando o que ele chama de "futuro imaginário": uma projeção de futuro centrada em uma visão de mundo que se tornaria importante instrumento ideológico para assegurar a manutenção da hegemonia estadunidense sobre o mundo. Na exposição mundial, isso se dava particularmente com a celebração do computador e da inteligência artificial. Tais desenvolvimentos seriam tributários diretos dos desenvolvimentos interdisciplinares do pós-guerra, aí incluídas as Macy Conferences.
Em entrevista a Annet Dekker, Edward Shanken afirma que "a cibernética foi fundamentalmente interdisciplinar desde sua origem. Seus conceitos subjacentes - loops de feedback, homeostase e a ideia de controle e comunicação - permitiram que se traçassem paralelos entre biologia e engenharia, animais e máquinas. A teoria da informação oferecia uma linguagem comum - simultaneamente técnica e metafórica - para que várias disciplinas se comunicassem umas com as outras" (DEKKER; SHANKEN, p.86).
A colaboração transdisciplinar tornou-se assim um paradigma de produção inovadora que permanece influente hoje, muitas décadas após o fim daquela guerra. Este formato de trabalho passou a estender-se também a campos que aparentemente nada tinham a ver com a indústria da guerra, como a Universidade. Entre as diversas consequências indiretas deste tipo de ambiente inovador e colaborativo pode-se citar o surgimento da já mencionada cultura hacker, que apesar de inicialmente orbitar as estruturas universitárias acabou gerando frutos autônomos - como demonstram o surgimento dos microcomputadores nos anos setenta e do software livre nos oitenta. Por sinal, Richard Stallman13, criador do projeto GNU e da Free Software Foundation, era um programador no departamento de Inteligência Artificial no MIT.
Instituições mais antigas dedicadas à inovação para a indústria também ganharam ainda mais espaço com a emergência das tecnologias de informação. Nos Bell Labs, subordinados à AT&T (corporação telefônica estadunidense), foram realizadas experiências importantes de colaboração entre arte e tecnologia. Shanken recorda que os Bell Labs, criados no final do século XIX pelo inventor e empreendedor Alexander Graham Bell, eram uma das mais importantes instituições de pesquisa dos EUA. Foram responsáveis pela criação do transistor, do laser e da teoria da informação. A lista de conquistas dos Bell Labs incluía ainda sete prêmios Nobel. Além disso, avanços nas tecnologias de informação como o sistema operacional UNIX se somavam a novas possibilidades, à medida em que artistas eram convidados a trabalhar com os engenheiros dos Bell Labs:
"Os Bell Labs eram também o lugar onde trabalhos pioneiros com música computadorizada, computação gráfica e animação computadorizada se desenvolveram, em grande medida sob os auspícios de John Pierce (...). Conhecido como o ’pai do satélite de comunicações’, Pierce também supervisionou a equipe que inventou o transistor, um termo que ele criou. (...) Em 1961, Pierce trouxe o compositor James Tenney para os Bell Labs como artista em residência. (...) Após trabalhar com artistas como Jean Tinguely, Jasper Johns e Robert Rauschenberg desde 1960, o engenheiro do Bell Labs Billy Klüver recebeu aprovação de Pierce para autorizar sua equipe a colaborar com artistas na produção de um evento hoje famoso, ’9 evenings: theatre and engineering’, que aconteceu em Nova Iorque em 1966. Àquela época, arte e engenharia eram campos muito mais autônomos do que hoje. Não haveria nenhuma razão profissional ou cultural para que artistas e engenheiros se encontrassem, e ainda menos para que trabalhassem juntos. (...) Foi neste contexto que Klüver estruturou 9 evenings como uma ’tentativa deliberada de artistas descobrirem se era possível trabalhar com engenheiros’." (SHANKEN, 2010, p.24)
Ainda segundo Shanken, apesar da repercussão negativa na crítica artística, o projeto 9 evenings contribuiria fundamentalmente para legitimar a ideia de colaborações entre arte e tecnologia. Teria sido responsável também pela criação da organização sem fins lucrativos Experiments in Art and Technology (E.A.T.), que quase meio século depois continua sendo inspiração e referência. Para Ryan Shaw, "o exemplo da E.A.T. foi seguido por inúmeras organizações públicas e particulares em todo o mundo durante os anos oitenta e noventa, incluindo nos Estados Unidos o Media Lab do MIT, o Xerox PARC, e o Interval Research". (SHAW)
O Media Lab do MIT abriu suas portas em 1985. Durante as décadas seguintes, construiu a reputação de centro de excelência em inovação tecnológica - uma reputação que se expande para muito além de seus campos de atuação. Contribuem para isso uma série de fatores. Entre eles, o relacionamento íntimo com grandes corporações e agências governamentais, especialmente militares, que garantem um grande volume de recursos para pesquisa - sem dúvida legado das décadas de prestação de serviços do MIT à indústria e o governo de seu país. Seu website14 afirma que o MIT Media Lab é financiado por cerca de 80 membros, incluindo algumas das maiores empresas do mundo e organizações governamentais, que garantem em conjunto recursos operacionais de cerca de 35 milhões de dólares anuais. Outros elementos que garantem o reconhecimento do Media Lab são sua presença constante na mídia, a começar pela revista Wired cuja história está entrelaçada a ele, como vimos na figura de Stewart Brand; e as figuras públicas de seus fundadores, em especial Nicholas Negroponte. Naturalmente, o objeto de grande parte da divulgação do Media Lab é o número de patentes registradas. São cerca de 350 projetos, muitos deles tendo resultado em produtos e tecnologias usadas cotidianamente no mundo todo. Ao longo de sua história, o Media Lab sempre teve alguns projetos que serviam como vitrine - da computação vestível ao laptop de cem dólares - que mesmo que não tenham resultado em soluções efetivas para problemas particulares serviram para estimular o debate público sobre inovação, tecnologias e cultura.
Durante os anos noventa, a ideia de "media lab" se espalharia. Negroponte publicou em 1995 um livro que - adotando uma visão claramente tecnoutópica - pegou carona no crescimento exponencial da internet comercial (e na imprensa especializada em tecnologia, frequentemente espelhada na revista Wired) e acabou por influenciar diversos contextos acadêmicos e artísticos. O livro, publicado no Brasil sob o título "a vida digital" - mas cujo título original era "being digital" - era uma compilação de artigos que Negroponte havia publicado anteriormente na Wired. Neles, defendia uma divisão algo maniqueísta do mundo entre "átomos" e "bits", que define tudo que é analógico como ultrapassado, enquanto o digital representaria sempre o futuro. Encaixava como uma luva para a movimentação do mercado em torno da chamada "nova economia" - em grande medida uma bolha especulativa que acabaria por estourar em meados de 1999, mas que nos anos anteriores estava em plena expansão. O livro foi exaustivamente citado à época como uma das obras de referência para entender a internet, de acordo com o jornalismo especializado em tecnologia - que como comentado anteriormente tem o costume de repercutir de maneira acrítica o discurso da inovação comercial. 15 Independente da validade de suas teses, entretanto, Negroponte tornou-se conhecido no mundo inteiro e carregou junto a reputação do Media Lab.
Ainda que na esteira da tal nova economia o Media Lab do MIT tenha tentado sem sucesso replicar seu próprio modelo em outras partes do mundo (tanto o Media Lab Asia na Índia quanto o já citado Media Lab Europe na Irlanda encerraram operações após poucos anos de atuação, sem deixar grande legado), outros centros de pesquisa interessados em novas tecnologias passaram também a identificar-se como laboratórios de mídia. É particularmente digna de nota neste contexto a multiplicação de iniciativas focadas na fronteira entre arte e tecnologia, retomando e renovando a aproximação entre engenheiros e artistas que havia sido apontada pelo projeto 9 evenings nos Estados Unidos. Não parece coincidência que diversos projetos que investigavam a relação entre arte e tecnologias de informação tenham passado a usar o termo media lab para legitimar suas atividades mais experimentais, difíceis de enquadrar em outros tipos de pesquisa. Essa construção de legitimidade, a busca de inserção nos mecanismos institucionais, era um objeto de desejo em meados dos anos noventa. Em 1997, uma série de organizações e grupos de diferentes países europeus participaram do encontro P2P - from practice to policy. Realizado em Amsterdam pelos holandeses Waag Institute for Old and New Media e V2 Institute for the Unstable Media, o P2P teve como resultado a Agenda de Amsterdam, uma declaração coletiva que afirmava que "a pesquisa relevante sobre os novos meios de comunicação não se origina nos laboratórios de grandes empresas e universidades, mas entre artistas, designers e pesquisadores independentes em um processo criativo, crítico e multidisciplinar que atravessa a arte e a ciência atual" (ALÉ, 2011).
Na própria Holanda, a Agenda de Amsterdam engendraria a criação do Virtueel Platform, uma organização que se situava como intermediário entre as instâncias governamentais e os diferentes labs de mídia que então surgiam e se estabeleciam. Inspirados pelo que então consideravam uma bem-sucedida maneira de criar espaços de debate crítico e produção de mídia tática, integrantes do Instituto Waag ajudaram a criar um lab de mídia em Nova Déli, na Índia. O lab chamava-se Sarai, e ao longo da primeira década do século XXI seria, dentro do contexto dos labs de mídia, um dos espaços mais férteis de cooperação global sobre novas mídias. 16
A propósito da disseminação de labs de mídia, Atau Tanaka (TANAKA, 2011, p. 14-15) sugere que existam atualmente diferentes categorias deles: labs industriais ligados a corporações de tecnologia (inspirados em laboratórios de pesquisa como os Bell Labs), labs de artemídia (centros como o austríaco Futurelab em Linz, ligado ao festival Ars Electronica, ou o ZKM em Karlsruhe, na Alemanha), labs universitários diretamente inspirados no próprio MIT Media Lab (como o Media Lab da Universidade Aalto de Helsinque), e por fim aqueles que define como laboratórios comunitários (como o Medialab Prado de Madri e o Kitchen Budapest - também conhecido como KiBu - na Hungria). É uma classificação algo limitada, visto que muitos modelos em atuação não cabem em nenhuma dessas categorias. Ainda assim, é interessante voltar os olhos para aqueles que Tanaka chama de laboratórios comunitários: ”movimentos de baixo para cima e o desenvolvimento da cena criativa faça-você-mesmo levaram ao desenvolvimento de labs baseados em comunidades. O Medialab Prado em Madrid é um lab de mídia de baixo para cima focado no acesso cidadão, e financiado pelo governo local.” (TANAKA, 2011:15). Sugere que estes seriam espaços de resistência à lógica da propriedade intelectual:
"A natureza de instrumentalização das indústrias criativas pode de fato ser incompatível com o processo artístico. Enquanto isso, abrir a criatividade para além do domínio do artista e fazer um modelo mais democrático de prática criativa guarda um potencial enorme para benefícios sociais e é consistente com o foco comunitário de labs de mídia comunitários." (TANAKA, 2011:19).
É precisamente nos tais laboratórios comunitários que surgem alguns cruzamentos de narrativa que busco desvelar neste capítulo. Os dois labs mencionados por Tanaka - Medialab Prado e Kitchen Budapest ou KiBu - fazem parte de uma rede chamada LABtoLAB, criada em 2010 para promover o intercâmbio entre diferentes iniciativas que então se definiam como labs de mídia. Embora tenham bastante em comum - em especial o foco no uso e desenvolvimento de software livre -, eles apresentam também diferenças consideráveis. Representantes de ambos - o espanhol Marcos Garcia e o húngaro Barnabas Malnay - estiveram no Brasil durante a segunda edição do Fórum CulturaDigital.Br, realizado na Cinemateca Brasileira em São Paulo com apoio do Ministério da Cultura do Brasil. Eu organizei naquela ocasião um painel internacional sobre laboratórios experimentais que contou com os dois e ainda com o finlandês Tapio Mäkelä. Durante o painel, Garcia e Malnay falaram sobre o contexto e histórico de suas organizações.
O Medialab Prado é financiado principalmente com recursos públicos, oriundos principalmente da administração municipal de Madrid e do governo federal da Espanha. Foi criado no início do ano 2000, junto ao Centro Cultural Conde Duque, com o nome Medialab Madrid. No início estava mais voltado a grandes exposições e festivais de artemídia e à ligação entre arte, ciência e tecnologia. Muitos cientistas, engenheiros e artistas participaram desta fase que foi, nas palavras de Garcia, muito frutífera. A partir do final de 2006, já transformado em Medialab Prado e localizado em nova sede, passava a dedicar-se menos à parte expositiva e mais a dinâmicas de produção e educação. O Medialab Prado criou formatos de produção crítica colaborativa que foram replicados e influenciaram projetos em diversas partes do mundo, como o "Interactivos?" - laboratórios temporários que duram de duas a três semanas, tipicamente dedicados a um tema específico (como "ciência de bairro", "tecnologia e magia" e outros já desenvolvidos) e atraem dezenas de colaboradores internacionais para desenvolver projetos coletivamente.
Já o Kitchen Budapest foi criado e é financiado quase totalmente pela companhia telefônica húngara, Magyar Telekom. Segundo Malnay, o patrocinador não costuma impor muitas condições de contrapartida, permitindo um grande nível de autonomia para os projetos do KiBu. Em poucos anos de atuação, eles acumularam um grande número de projetos criativos envolvendo tecnologia, design e cultura. Entretanto, como foi debatido naquele encontro em São Paulo a partir de uma intervenção de Eduardo Navas, mexicano radicado nos EUA, esse tipo de patrocínio corporativo costuma impor condições silenciosas - por exemplo, nunca desenvolver nenhum projeto que possa ser interpretado como crítica ao patrocinador, ou que tenha engajamento político. Sobre esse propósito, Malnay contou sobre um projeto no qual integrantes do KiBu queriam oferecer telefones e ferramentas de comunicação a comunidades Romani (minoria cigana, bastante presente nos países do centro e leste da Europa). O patrocinador acabou proibindo porque não queria que o restante da população - consideravelmente racista, nas palavras de Malnay - considerasse que a empresa estava ajudando os ciganos. O patrocinador também é sempre considerado prioritário em termos de agenda e de tomada de decisão, e o KiBu costuma prestar pequenos serviços de design e comunicação para eles. Ainda assim, Malnay sustenta que para manter os oitenta por cento de atividades dos quais os integrantes do KiBu se orgulham, é aceitável suportarem os outros vinte por cento. Afirmou também que buscar patrocínio estatal na Hungria seria uma opção ainda pior, dadas as condições políticas daquele país.
Estes são somente dois exemplos entre os labs que compunham o projeto LABtoLAB. A rede iniciou-se com Medialab Prado, Kitchen Budapest, Constant (Bruxelas) e PiNG (Nantes). Cada um deles sediaria um encontro presencial no qual receberia integrantes dos demais, além de outros convidados, para debater questões e estratégias comuns. O projeto foi financiado pela União Europeia, enquadrado como uma iniciativa de pesquisa sobre educação continuada em tempos de mudança constante. Logo a rede também desenvolveu relações com Area 10 (Londres), Baltan (Eindhoven) e Uselab (Sevilha)17. Uma discussão recorrente nos encontros LABtoLAB surgia precisamente do incômodo em, ao identificarem-se como "labs de mídia", associarem automaticamente sua atuação àquela do MIT Media Lab, que viam como problemática. Por vezes, definiam a si próprios como "labs de mídia organizados por artistas", tentando explicitar a singularidade de sua atuação e universo de referências. Tentavam assim articular outra genealogia para a ideia de media lab, como expresso no livro Future of the Lab organizado pelos Baltan Labs de Eindhoven:
"O media lab como existe hoje em dia é precedido por muitas tipologias de espaço de trabalho e formas de instituições de pesquisa: a oficina de produção, o estúdio de artista e o lab de pesquisa, mas também o museu, o centro comunitário, a biblioteca e a escola. Nós atualmente entendemos media labs como organizações de pesquisa que buscam respostas para as necessidades de uma sociedade informacional." (LABtoLAB, 2010, p. 54)
A conexão sugerida pelos integrantes do LABtoLAB situa o lab por um lado como episódio da própria história da arte moderna e contemporânea e por outro como infraestrutura cultural urbana, acessível a diferentes setores da sociedade. Assumem assim uma postura diferente daqueles labs ligados somente à inovação com fins econômicos. Essa postura ficou explícita em um dos encontros da rede LABtoLAB, realizado em 2012 em Nantes, França. Após problematizar-se mais uma vez a utilização do termo media lab, decidiu-se por não abandoná-lo e sim disputá-lo politicamente. Os representantes de labs ali presentes editaram o verbete da Wikipedia18, no qual anteriormente quase não havia referência a labs que não fossem o MIT Media Lab, tentando deixá-lo mais includente e plural. Optaram por uma ação tática, talvez com poucas consequências práticas mas que definitivamente tinha uma bagagem simbólica - utilizando-se de um dos ícones da cultura digital, a enciclopédia aberta e colaborativa, para incluir outras perspectivas.
Essa utilização de uma estrutura dada para interferir no imaginário remonta a outra vertente importante da história dos labs que diz respeito à apropriação crítica de tecnologias e ao universo da mídia tática, que tentarei expor superficialmente a seguir. Se a história de Stewart Brand indica a influência da contracultura hippie sobre a cultura hacker estadunidense, na Europa as coisas se passaram forma algo distinta. De fato, uma proporção relevante dos envolvidos com atividades de lugares como o Medialab Prado em Madri é de pessoas envolvidas, ou ao menos familiarizadas, com o histórico europeu dos assim chamados hacklabs, surgidos em meados dos anos noventa:
"Hacklabs são, em sua maioria, espaços mantidos por voluntários que oferecem acesso público gratuito a computadores e à internet. Eles geralmente utilizam-se de máquinas reutilizadas rodando GNU/Linux, e além de oferecer acesso a computadores, a maioria dos hacklabs oferece oficinas em diversos tópicos, desde uso básico de computadores e instalação de GNU/Linux até programação, eletrônica e transmissão de rádio independente (ou pirata). Os primeiros hacklabs se desenvolveram na Europa, frequentemente advindos de tradições de centros sociais ocupados ["squatted"]19 e labs de mídia comunitários. Na Itália eles estava conectados com os centros sociais autonomistas; e na Espanha, Alemanha e Holanda com movimentos squatters anarquistas." (MAXIGAS, 2012).
Neste contexto, os hacklabs estariam associados a um universo de referências essencialmente diverso da contracultura hippie estadunidense e da sua transformação gradual em empreendedorismo comercial. Pelo contrário, na Europa essa história também passava por momentos marcantes no fim dos anos sessenta - em especial com o maio de 1968 e os situacionistas -, para depois transitar por movimentos de resistência e uma cultura punk abertamente política até chegar aos anos noventa com a busca de maior acesso a ferramentas de produção de mídia. Maxigas reforça em especial a ligação entre os hacklabs europeus, a cultura dos squats e o ativismo de mídia20:
"Estas tendências entrelaçadas se juntaram na criação dos hacklabs. Os squats, por um lado, diretamente incorporados nos fluxos urbanos da vida, precisavam utilizar infraestruturas de comunicação como o acesso à Internet e o acesso público a terminais. Ativistas de mídia, por outro lado, com frequência enraizados em comunidades locais, precisavam de espaços para reunir-se, produzir, ensinar e aprender." (MAXIGAS, 2012)
O primeiro hacklab teria surgido na Alemanha, com a fundação do Chaos Computer Club em 1981 em Hamburgo. Subsequentemente, também foram criados CCCS em outras cidades alemãs. A partir dessas primeiras experiências, os hacklabs se espalhariam por diferentes cidades europeias nos anos seguintes. ASCII em Amsterdam, Ultralab em Roma, Riereta em Barcelona, entre outros. Eventos periódicos internacionais como o Chaos Communication Congress na Alemanha ou o Hackmeeting na Itália disseminavam e reiteravam a identidade dos grupos que mantinham tais espaços, promovendo o intercâmbio de ideias e de soluções técnicas para diversas questões: de rádios piratas a redes wi-fi independentes, de centros de acesso à internet à instalação de software livre para produção de mídia. O ASCII esteve particularmente ligado aos festivais Next5Minutes, realizados a partir do fim da década de noventa no contexto das teorias de mídia tática que se desenvolviam principalmente em Amsterdam21. Os N5M, por sinal, influenciaram diretamente a realização do festival Mídia Tática Brasil, mencionado no início deste capítulo.
O contraste entre métodos, aspirações e referências do MIT Media Lab e o cenário na Europa fica claro no testemunho de algumas pessoas que frequentaram ambos. Em meados de 2010, tive a oportunidade de entrevistar o designer Cesar Harada. Jovem talento nipo-francês graduado na França, Harada ainda estudou no Royal College of Arts de Londres antes de tornar-se fellow do programa estadunidense TED, que apoia "ideias que vale a pena compartilhar"22 e posteriormente ser convidado a juntar-se ao SENSEable City Laboratory do MIT, que desenvolve ações em conjunto com o Media Lab. Entrevistei-o logo que havia deixado o MIT. Harada expressava claramente a decepção advinda do choque entre uma visão europeia, politicamente situada, e a maneira como os labs universitários estadunidenses funcionam:
"Nos EUA o Media Lab está quase totalmente incorporado à indústria. No laboratório onde eu trabalhava, nenhum projeto é independente. Cada projeto tem um financiador externo. Com exceção de poucas e ótimas exceções, o Media Lab do MIT é extremamente comercial e apoiado comercialmente. O melhor exemplo é o próprio motivo da minha saída. O laboratório me pediu para desenvolver uma tecnologia para limpar a mancha de óleo [do vazamento no Golfo do México]. Eu projetei máquinas para limpar o vazamento de óleo. Mas eles queriam me forçar a trabalhar com uma nanotecnologia que só estará disponível depois de 2020. A ideia deles era pegar 20 milhões de dólares, dividir entre dois laboratórios e desenvolver o conceito das máquinas, em vez de soluções reais. O laboratório estava recorrendo a fundos de emergência para levantar recursos para uma tecnologia que não era adequada para solucionar emergências. Mas eles não se incomodam em usar dinheiro de pessoas que estão passando por problemas agora. Eles só querem associar arte e ciência, aparecer e ficar ricos rapidamente." (FONSECA, 2010)
Seria impossível, por outro lado, afirmar que os hacklabs europeus estão livres da "ideologia californiana" de Barbrook. A própria adoção do termo "media lab" por iniciativas na Europa é um indicativo dessa influência, mesmo que tenha sido uma estratégia de legitimação. Ainda assim, a fé na inovação tecnológica como maneira de construir uma sociedade independente dos "governos do mundo industrial", como queria Barlow, precisou ali adaptar-se a um contexto politico totalmente diverso daquele dos Estados Unidos. Por exemplo, não é insignificante a quantidade de desenvolvedores de software alemães que pagam suas contas pessoais com o auxílio a estudantes concedido pelo governo daquele país. Muitos deles inclusive foram ou são pessoas chave na implementação de hacklabs politicamente atuantes. É a aproximação entre o empreendedorismo digital, o ativismo tecnológico e o estado de bem-estar social que tem resultados interessantes como auxiliar a viabilidade do desenvolvimento de software livre que não seria possível comercialmente. É frequente, inclusive, a atuação frontalmente contrária a interesses empresariais. É o caso, por exemplo, das tecnologias - em boa parte desenvolvidas em hacklabs - voltadas à criação de redes sem fio através das quais as pessoas podem compartilhar suas conexões à internet, a exemplo da alemã Freifunk ou da catalã Guifi. Por outro lado, mesmo políticas oficiais de desenvolvimento econômico da União Europeia têm adotado ao longo da última década mecanismos de apoio financeiro a fundo perdido para a criação de "startups", empreendimentos comerciais de tecnologia e comunicação. O discurso da inovação digital estadunidense expresso pela ideologia californiana com sua suposta fé no livre mercado e na ausência de interferência governamental seria verbalmente avesso a este tipo de instrumento (por mais que, como apontado por Barbrook, grande parte dos desenvolvimentos de tecnologia estadunidense tenha vindo de encomendas ou fundos militares, essencialmente pertencentes ao setor público).
Outro episódio significativo é a progressiva adoção do termo hackerspaces no lugar de hacklabs. Os hacklabs, como vimos, eram bastante ativos durante a virada do milênio principalmente na Europa. Já os primeiros espaços que se identificavam como hackerspaces surgiram durante os anos noventa, mas eles só se tornaram um movimento consistente a partir de 2007. Algumas instâncias do Chaos Computer Club, citado anteriormente como berço dos primeiros hacklabs, já então passavam a identificar-se como "hacker spaces". Naquele ano, um projeto chamado "Hackers on a plane" levou hackers estadunidenses para o Chaos Communication Congress na Alemanha.
"Ohlig e Weiler do hackerspace C4 em Colônia deram na conferência uma palestra revolucionária chamada Construindo um Hackerspace. A apresentação definiu padrões de design de hackerspaces, escritos na forma de catecismo e oferecendo soluções para problemas comuns que surgem durante a organização de um hackerspace. Mais importante, canonizaram o conceito de hackerspaces e inseriram a ideia de criar novos hackerspaces pelo mundo inteiro na agenda do movimento hacker. Quando a delegação dos EUA voltou para casa, eles apresentaram suas experiências sob o nome programático Construindo Hacker Spaces em Todo Lugar: Suas Desculpas Não São Válidas." (MAXIGAS, 2012).
Um dos estadunidenses presentes no Hackers on a plane em 2007 era Bre Pettis. Alguns anos antes, quando ainda era professor de artes em escolas públicas de Seattle, Pettis havia começado a produzir tutoriais em vídeo sobre como fazer coisas que misturavam habilidades manuais e tecnologia. Isso acabaria virando um trabalho profissional para publicações digitais como a Make Magazine. Para projetos mais complexos, como um robô desenhista, Pettis buscava a ajuda de um espaço mantido por hackers em Seattle chamado Hackerbot Labs. Em 2007, depois do Hackers on a plane, Pettis mudou-se de Seattle para Nova Iorque. Como precisasse de ajuda de hackers e não encontrasse por lá um espaço dedicado a reuni-los, e ainda influenciado pelos lugares que visitou em Berlim, ele fundou com amigos o NYCResistor, no Brooklyn (PETTIS, 2008).
No fim de 2008, Pettis convocou integrantes de diversos hackerspaces a enviar contribuições para um livro sobre o tema. À época, cheguei a receber uma mensagem de um hacker europeu envolvido com diversos hacklabs na Itália e Espanha reclamando que ninguém da rede hackmeeting, que organizava o encontro anual na Itália havia alguns anos, tinha recebido a chamada por contribuições. Segundo ele, "nenhum dos colaboradores do livro é do sul, nem mesmo do sul da Europa, e isso é uma separação dramática". Através de um conhecido "mais diplomático", ele buscava estender o prazo para envio de contribuições para o livro, afirmando que "precisamos fazer todo o possível para que essa iniciativa seja inclusiva, do contrário será somente outra invenção hegemônica dizendo que ’fizemos primeiro nos Estados Unidos’, como já aconteceu antes. apropriadores, eles vão fazer a coisa do hackerspace por eles mesmos. nós tínhamos hacklabs no sul na época em que eles ainda nem sabiam digitar em um terminal".
Algumas semanas depois, o mesmo hacker opinaria em um grupo de discussão por email que "muitos hackers entre nós estão preocupados que tal iniciativa não tenha muito contato com o hemisfério sul. embora os hackers do sul que eu conheço prefiram reagir dizendo ’não nos importamos com esses yuppies subsidiados’, existe muito contato a fazer por aqui, e algum histórico a compartilhar (...) um contexto como o ASCII em Amsterdam ou os hacklabs na Itália e Espanha parecem significativamente (muito) diferentes desse novo NYC Resistor, mas isso pode ser bom, já que nós gostamos de diferença, certo? o único problema surge quando as diferenças não são reconhecidas e as pessoas preferem não compartilhar nenhuma base em comum, na minha opinião". Posteriormente, entretanto, ele acabaria desistindo por conta das restrições de tamanho que o livro impunha às contribuições - 500 palavras.
Na versão final do livro, entre os dezenove hackerspaces europeus mencionados, onze eram da Alemanha. Outros cinco eram da Holanda, Áustria, França e Bélgica. Havia ainda um italiano, um espanhol e um croata. Outros dez hackerspaces norteamericanos eram listados também, e contribuições sobre os já inativos ASCII e o PUSCII em Amsterdam foram incorporadas ao livro. O próprio Pettis escreveu um breve histórico sobre o Chaos Computer Club, que como vimos teria originado os primeiros hacklabs alemães. É curioso perceber que Pettis considera o engajamento político do CCC uma característica não somente digna de observação (por demais distante do cotidiano de um hackerspace estadunidense, talvez) como também recente:
"Atualmente o CCC está se envolvendo mais com lutas políticas. Ao conversar com Jens [Ohlig], ele refletiu que aparentemente a cada semana um membro do CCC trabalha com o parlamento em uma ou mais questões que impactam a liberdade, direitos digitais, e a encruzilhada de tecnologia e legislação. Para muitos no CCC, lutar por seus direitos e hacking são inseparáveis. (...) O CCC é geralmente considerado pelo alemão médio como a última linha de defesa para a liberdade e os direitos civis na Alemanha na era digital." (PETTIS, 2009, p.87).
Nos anos seguintes, o mesmo Pettis se tornaria um dos expoentes dos hackerspaces estadunidenses: além de produzir conteúdo para empresas de mídia e negócios como a já citada Make Magazine, o portal Etsy.com e o canal de TV a cabo History Channel, ele ainda fundaria com colegas do NYCResistor a Makerbot Industries, empresa que fabrica impressoras 3D23. Coerente com a matriz estadunidense dos hackerspaces, a Makerbot Industries recebeu aportes financeiros do mercado no valor de 10 milhões de dólares, estabeleceu parcerias com Autodesk e Microsoft (corporações que produzem software proprietário, reconhecidas por impor controle sobre seus usos) e em 2013 foi vendida à Stratasys - fabricante de impressoras 3D - pelo valor de 403 milhões de dólares. Claro exemplo de assimilação pelo mercado.
As diferenças entre hacklabs e hackerspaces não devem, ainda assim, ser tomadas como absolutos. Pelo contrário, existe uma grande sobreposição de temas, técnicas e frequentadores entre uns e outros. A diferença se dá muito mais em termos de visão de mundo, afiliação a uma ou outra narrativa histórica, ou mesmo de momento de constituição e familiaridade com o histórico de hacklabs e hackerspaces. Para Maxigas (MAXIGAS, 2012), a permeabilidade entre esses diferentes modelos seria frequentemente positiva porque complementar, uma vez que os hacklabs buscam um maior engajamento com movimentos sociais, ao passo que os hackerspaces usualmente relacionam-se com públicos mais amplos. Tatiana Bazzichelli, contrapondo-se à ideia de que os hackerspaces estadunidenses seriam apolíticos, afirma que, ainda que tenham uma postura mais voltada aos negócios, isso não significa que tenham uma postura acrítica em relação ao establishment.
"A ideia de hacktivismo como uma prática anticapitalista, típica de muitas comunidades hackers europeias (como demonstra a comunidade em torno do site http://hackmeeting.org) não tem uma tradição real na Califórnia. Muitos hackers na Europa inspiraram-se pelo ethos libertário da cibercultura estadunidense, mas trataram de adaptá-lo radicalmente aos contextos sociais e políticos locais nos quais se encontravam, transformando-o em algo mais ’antagonista’. Na Itália, a interpretação prática do conceito de ’hacktivismo’, simbolizado pelas publicações politicamente orientadas da Shake Editions, é um exemplo claro disso. No outro extremo, (...) a atividade de Stewart Brand e do Whole Earth Catalog, [e] o desenvolvimento da cultura hacker da cibercultura na Califórnia entrelaçaram profundamente o empreendimento de negócios, as redes sociais e valores libertários e antiautoritários." (BAZZICHELLI 2013, p. 186)
Mesmo entre os hackerspaces da Califórnia, existem nuances no relacionamento com corporações e financiadores. Há hackerspaces com um relacionamento bastante próximo da mentalidade empreendedora e pró-mercado, como o Hacker Dojo, localizado em Mountain View24. Ele teve apoio financeiro de corporações como o Google e a Microsoft desde sua fundação. Segundo Bazzichelli, o Hacker Dojo é visto por seus frequentadores tanto como lugar de autoaprendizado e compartilhamento quanto como uma incubadora de negócios. Os associados pagam uma taxa de cem dólares mensais para fazer parte dele. Por outro lado, também ali na Califórnia existiriam hackerspaces politicamente situados:
"Uma abordagem mais similar à ideia radical de hackear como uma prática política e comunitária adotada por alguns coletivos europeus está na raiz do Noisebridge (www.noisebridge.net), um hackerspace no distrito Mission de San Francisco. Jacob Appelbaum, cofundador do NoiseBridge, codesenvolvedor do Tor Project (www.torproject.org) e recentemente tornado famoso por representar o Wikileaks na conferência Hope [Hackers On Planet Earth] de 2010, argumenta que o NoiseBridge inspirou-se em grande medida pela cultura de redes e pelo hacktivismo europeus, como as experiências do C-Base e do Chaos Computer Club em Berlim, MAMA em Zagreb, Metalab e Monochrom em Viena, e ASCII em Amsterdam. Assim, enquanto muitos hackers europeus durante os anos oitenta e noventa do século passado inspiraram-se nas tecnoutopias da cibercultura estadunidense, hoje em dia muitos jovens hackers nos EUA inspiram-se na abordagem comunitária europeia em relação às tecnologias, como evidenciado por alguns grupos hackers e ativistas ativos na última década" (BAZZICHELLI 2013, p. 188).
Hacklabs e hackerspaces são frequentemente tomados como sinônimos. É uma confusão que evoca, ainda que em outros termos, a oposição entre software livre e software open source (EVANGELISTA, 2010): não se trata de uma oposição simétrica, à medida em que as pessoas que utilizam um ou outro termo não veem a fronteira no mesmo lugar. Existe também um nível considerável de sobreposição entre aquilo que é chamado de software livre ou de open source. O mesmo pode ser visto entre hacklabs e hackerspaces. É provável ainda que, mesmo que os primeiros grupos a utilizarem e disseminarem os termos hacklabs e hackerspaces tenham proposto descrições claras, com o passar do tempo os dois campos tenham se confundido, e tendam a se confundir ainda mais. Especialmente quando citados por pessoas ou grupos sem tanta familiaridade com seus históricos, que vão utilizá-los mais como metáfora do que definição, assim como também acontece com o software livre e open source.
Nesse sentido, e levando em conta uma aparente popularização dos hackerspaces nos dias de hoje, parece ainda mais significativo quando iniciativas recentes identificam-se como hacklabs. Mesmo em casos que não se enquadram no sentido original - espaços urbanos ocupados, ligados a ideias autonomistas ou anarquistas e que ofereciam acesso à tecnologia -, chamar uma iniciativa de hacklab pode funcionar como um marcador histórico, referência a uma posição de resistência e engajamento político. Hacklab pode ainda ser um termo mais fácil de ser usado por projetos temporários ou itinerantes, uma vez que não faz referência explícita à ideia de um espaço físico específico. Tem sido utilizado também com alguma frequência por projetos de arte eletrônica engajada, talvez precisamente por sua bagagem politizada. Pela mesma medida, projetos que se denominam como hackerspaces podem soar como mais abertos ao empreendedorismo digital e destinados a dialogar com o público leigo ou com o mercado. Mas também podem parecer mais adequados a iniciativas que se proponham a criar e manter espaços físicos permanentes dedicados ao aprendizado sobre e desenvolvimento de tecnologias, mesmo que assumam um posicionamento político aberto. A diferença entre hacklabs e hackerspaces aparece assim como uma tensão que por vezes se manifesta de maneira bastante explícita e em outras se torna muito sutil ou mesmo inexistente. Não me parece que seja possível solucionar essa tensão, e talvez isso nem seja necessário.
Fablabs são uma rede de laboratórios de fabricação digital baseados em um modelo criado dentro do Centro para Bits e Átomos (CBA) no Media Lab do MIT. Os Fablabs - laboratórios de fabricação digital - consistem em espaços nos quais se disponibilizam diversos equipamentos que, mais do que à produção de mídia, prestam-se à criação de objetos a partir de arquivos digitais - fresadoras, cortadoras de vinil e outros materiais, máquinas de bordar, impressoras 3D, por vezes um scanner 3D, entre outros. São em geral tecnologias que já existem há algumas décadas. Até recentemente, entretanto, as máquinas voltadas à fabricação digital voltavam-se primordialmente à produção industrial - se já eram caras e complexas para engenheiros e designers, seriam ainda mais para o público amador e curioso em geral. Os Fablabs também utilizam tecnologias de videoconferência para promover a colaboração direta entre os integrantes de diversos labs, que assim poderiam supostamente buscar soluções para questões específicas em uma rede de pares no mundo inteiro.
O surgimento dos Fablabs deve-se principalmente a pesquisas do MIT que investigavam as consequências do barateamento e do maior acesso a tais tecnologias, na esteira de um curso oferecido por Neil Gershenfeld, diretor do CBA, que chamava-se "como fazer (quase) qualquer coisa". Foi no CBA que criou-se o primeiro Fablab com esse formato. Gershenfeld teria percebido similaridades na relação entre, de um lado, os primeiros computadores de grande porte e os microcomputadores, e de outro lado as tecnologias de fabricação disponíveis para a indústria e o potencial de sua utilização pela sociedade, de maneira pulverizada e em pequena escala. Em paralelo, surgiam também iniciativas como a Reprap. Surgida pelas mãos e mente de Adrian Bowyer, professor de Engenharia Mecânica na Universidade de Bath, no Reino Unido, a Reprap - prototipadora rápida replicante - consiste em uma impressora 3D que além de fabricar objetos também produz partes das peças necessárias para criar cópias de si própria (daí o "replicante")25. Os Fablabs e as tecnologias que utilizam também tornaram-se mais conhecidos à medida em que começaram a ser descritos como ponta de lança da "nova revolução industrial".
As tecnologias de fabricação propriamente ditas têm bastante em comum com outras tendências atualmente em voga, como o hardware livre e a computação física. Tomadas em conjunto e aproximando-se do universo inovador dos hackerspaces, de uma suposta valorização do amadorismo (a partir, por exemplo, de websites sociais para publicação de tutoriais, como o Instructables e a Make Magazine) e do empreendedorismo digital, comporiam a chamada "cultura maker" (que pode ser traduzida como cultura do fazer, ou da fabricação). Além dos Fablabs - usualmente ligados a instituições acadêmicas com acesso a recursos para investir em máquinas que podem custar algumas dezenas de milhares dólares -, existem também espaços voltados à cultura maker inspirados nos hackerspaces, os chamados Makerspaces. No discurso usualmente adotado por integrantes destes espaços como a Betahaus de Berlim, se os Fablabs voltam-se primordialmente a estudantes universitários de design e engenharia, os makerspaces estariam mais abertos a amadores, hackers e mesmo artesãos. 26
Por um lado, soa promissor refletir sobre o potencial da fabricação local, que no limite poderia reduzir drasticamente custos de logística, valorizar talentos criativos em diferentes localidades e promover uma economia da abundância a partir da troca social de esquemas de fabricação de produtos inspirada no software livre. Por outro lado, a ideia de uma rede descentralizada de espaços independentes nos quais se pudesse não somente acessar a internet como também fabricar objetos (entre outras implicações diminuindo o controle e a tributação sobre circulação de mercadorias) cai como uma luva para as aspirações tecnoutópicas. Não é coincidência que um dos nomes de peso a afirmar a cultura maker como plataforma para a nova revolução industrial tenha sido Chris Anderson, que já foi editor da revista Wired e coordenador das conferências TED. Para ele, um dos principais resultados da fabricação digital é expandir o horizonte de atuação da inovação tecnológica - não mais limitada às redes digitais e mídias sociais, mas agora aberta ao "mundo dos átomos" (ANDERSON, 2012)27. Anderson refere-se especialmente a todo o restante da economia que ainda não foi substancialmente afetado pelo e-commerce. Sugere que uma abertura a ideias comerciais inovadoras supostamente presente nas startups digitais da internet estaria agora acessível a inventores-empreendedores voltados para a criação de novos produtos materiais.
Apesar de toda a retórica "revolucionária", é interessante perceber que essa vertente comercial da cultura maker costuma utilizar-se de um vocabulário oriundo da produção industrial, sem muito questionamento. Assim, o grande valor de proporcionar-se acesso a tecnologias de fabricação digital seria que inventores em potencial poderiam prototipar suas invenções a baixo custo. Poderiam, assim, testá-las na prática antes de enviá-las para fabricação em massa (possivelmente em alguma planta industrial na China que aceite encomendas de fabricação a partir de esquemas digitais). Similarmente, Bre Pettis - sobre quem já falei anteriormente na seção sobre os hackerspaces, criador das Makerbot Industries, que fabricam impressoras 3D e caíram no gosto da revista Wired28, também fala muito em protótipos. No mesmo artigo - de três páginas - da revista 2600 em que contou sobre sua viagem à Europa e sobre a fundação do hackerspace NYC Resistor, Pettis usa variações como "prototipar", "protótipo" ou "prototipadora" mais de vinte vezes. O protótipo se faz presente mesmo nos encontros "Interactivos?" organizados pelo Medialab Prado. Usualmente abertos a uma postura mais explicitamente politizada, é frequente que participantes desses encontros afirmem que estão criando "protótipos" de intervenção na sociedade.
Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.
A cidade britânica de Sheffield foi, a partir do século XVIII, um dos centros da Revolução Industrial. Estima-se que durante a expansão da produção industrial da época, sua população tenha se multiplicado por dez. A cidade notabilizou-se principalmente pelo desenvolvimento de técnicas de produção de aço, setor no qual teve importância mundial até os anos setenta do século vinte. A entrada de novos competidores internacionais acabaria levando Sheffield a um acelerado declínio, à medida em que seu parque industrial era desativado.
Em 1997, um grupo de artistas de Sheffield interessados em desenvolver experiências com tecnologias de informação mas que não possuíam recursos para adquirir computadores resolveu fundar a Redundant Technology Initiative. Sua intenção era utilizar computadores descartados para desenvolver projetos artísticos. A cada exposição que realizavam, chamavam mais a atenção e recebiam mais doações de equipamentos. Após alguns meses, decidiram utilizar o excedente de material para montar o Access Space - um autodenominado "lab de mídia criativa". Coordenado pelo artista James Wallbank, o Access Space em pouco tempo se tornaria uma organização singular. Por um lado, tinha características comuns aos hacklabs: afirmam ter sido o primeiro espaço público de acesso à internet funcionando exclusivamente com software livre. De outro lado, estão mais integrados à institucionalidade. Constituíram uma empresa chamada Low-tech, que encaminha equipamentos para reciclagem, além de estabelecer convênios com o governo local para oferecer capacitação a beneficiários de programas sociais - desempregados, pensionistas, ex-presidiários e outros. Em seu website29, o Access Space afirma ser o lab aberto de arte digital mais antigo ainda em funcionamento, e também o mais sustentável. O Access Space foi o lugar onde se originaram projetos como o Zero Dollar Laptop - propondo a reutilização de laptops descartados em contextos sociais, eles atacam de maneira pragmática e distribuída questões de exclusão digital e do lixo eletrônico, ao mesmo tempo em que criticam o projeto do Laptop de Cem Dólares concebido por Nicholas Negroponte junto ao MIT Media Lab30.
Tive a oportunidade de debater com ou assistir a apresentações de Wallbank em diversas ocasiões: durante o festival Futuresonic em Manchester, Inglaterra (2008); no encontro de redes Wintercamp, em Amsterdam, Holanda (2009); no seminário Paralelo, em São Paulo (2009); durante o Festival Pixelache, em Helsinque, Finlândia (2013); entre outras oportunidades. Em suas palestras ele relata que durante os anos noventa, enquanto muita gente se esforçava para captar centenas de milhares de dólares para montar seus labs de mídia - na esteira da multiplicação de labs decorrente da popularização do modelo do MIT Media Lab -, eles decidiram simplesmente reutilizar recursos ociosos. Tais recursos estariam em três escalas: o lugar - o Access Space está localizado em antigo espaço público anteriormente desocupado; a infraestrutura - reaproveitando computadores doados através do uso de software livre; e finalmente o talento e dedicação ociosos dos cidadãos desempregados ou subempregados.
O Access Space publicou em 2008 o livro em quadrinhos Grow Your Own Media Lab (Cultive Seu Próprio Lab de Mídia), com ilustrações e textos elaborados por alguns de seus frequentadores, que conta mais sobre seu modelo de lab: um espaço receptivo a pessoas interessadas em utilizar tecnologias, baseado na troca de conhecimento e na utilização de software livre. Nos dias de hoje seria possível questionar o caráter propriamente experimental dos projetos desenvolvidos no Access Space, uma vez que o modelo apresentado no livro por vezes sugere uma ênfase prioritária no acesso (evocando aquilo que no capítulo anterior chamei de "modelo compensatório"). Mesmo assim, eles têm especial relevância pelo fato de haver proposto um formato de espaço que, ainda que dialogando com a ideia de lab de mídia do MIT e do universo da arte digital de meados dos anos noventa, posicionou-se concretamente de maneira oposta a muitos dos pressupostos tecnoutópicos tão presentes naqueles contextos. Atualmente, seu projeto mais importante, ao menos em termos simbólicos, é o ReFab Space.
ReFab Space é a interpretação do Access Space para a atual onda de cultura maker, em especial a retórica dos Fablabs. É precisamente na encruzilhada entre o grande potencial transformador carregado pelas tecnologias de fabricação digital e sua assimilação pelos mecanismos globais de uma economia industrial baseada essencialmente na especulação e na publicidade que o ReFab Space se situa. Formado a partir do momento em que o Access Space recebeu doações de máquinas de fabricação digital descartadas por indústrias falidas, o ReFab Space já aí se diferencia, para dar um exemplo de contexto socioeconômico análogo, do FabLab de Manchester - que, afiliado à rede de Fablabs do MIT, já foi inaugurado com vultosos recursos para a compra de equipamentos, na esteira de um projeto de revalorização de uma zona industrial da cidade. Wallbank costuma dizer que o problema dos Fablabs é que eles "não precisam de dinheiro" - como são usualmente estruturas criadas dentro do universo acadêmico, seus equipamentos seriam mais usados para criar problemas do que solucioná-los.
De certa forma, a diferença entre um Fablab típico e a maneira como o ReFab Space estabeleceu-se poderia ser análoga àquela entre o protótipo e a gambiarra. Ou, de maneira mais ampla, entre adquirir novas coisas e recuperar as que estão à mão. O legado de atuação do Access Space no tema do lixo eletrônico poderia sugerir uma contraposição entre a "maker culture" (a cultura da fabricação) e uma "repair culture" (a cultura do conserto). De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).
Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, brutos31. Os objetos produzidos raramente são recicláveis32. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados33. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.
No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.
Ao longo deste capítulo tratei de diversos modelos de labs que, acompanhando diferentes momentos e contextos sociais e econômicos, foram desenvolvidos desde a metade do século XX até os dias de hoje. Mais do que simplesmente traçar um histórico, minha intenção era desvelar nuances e dar visibilidade a suposições que frequentemente são deixadas de lado quando se pensa nas bases que deram origem aos laboratórios experimentais hoje em atividade. À medida em que se misturam as histórias das colaborações interdisciplinares do esforço de guerra, da contracultura, do situacionismo, da cultura hacker e do surgimento de novas contradições e realidades com a disseminação da internet, o universo de possibilidades latentes em cada lab parece adensar-se. Ativismo e crítica ao consumismo situam-se lado a lado com empreendedorismo comercial e pensamento tecnoutópico. Não acredito que haja uma solução para essa tensão, que pode ser pensada como uma condição inerente aos hiperconectados tempos atuais.
No capítulo seguinte tratarei de minha pesquisa de campo, durante a qual tive a oportunidade de visitar uma série de projetos na Finlândia que orbitam o cenário dos labs experimentais, ao mesmo tempo em que participava diretamente da organização de um Festival de Arte e Tecnologia que aconteceria naquela cidade e em uma ilha perto de Talim, na Estônia.
1A rede Pixelache consiste em uma série de eventos e outras ações focadas na produção transdisciplinar entre arte, ciência e tecnologia, desenvolvidos em diferentes localidades do mundo. O festival Pixelache é realizado em Helsinque (Finlândia) desde 2002, e deu origem a outros eventos e encontros como o Mal au Pixel (Paris, França), Piksel (Bergen, Noruega), Afropixel (Dacar, Senegal), Pixelazo (Bogotá, Colômbia), entre outros.
2Post disponível em http://www.pixelache.ac/blog/2010/the-labs-are-back/ (acessado em 27/11/13).
3Disponível em http://hackerspaces.org (acessado em 27/11/13)
4Disponível em http://www.fablabs.io/map (acessado em 25/02/14)
5Mapa disponível em http://afrilabs.com/labs/ (acessado em 27/11/13)
6Post de blog disponível em http://www.oesquema.com.br/trabalhosujo/2010/12/23/richard-barbrook-x-jo... (acessado em 27/11/13)
7Disponível no original em inglês em https://projects.eff.org/~barlow/Declaration-Final.html (acessado em 23/11/13)
8É interessante perceber ainda que, apesar de uma relatada tendência de Gilberto Gil, como moderador do painel em 2003, em pender para as opiniões de Barlow, Richard Barbrook guardou uma impressão positiva do debate. No prefácio à edição brasileira de seu livro Futuros Imaginários, afirma: "Os que têm computadores e acesso à banda larga podem ser em número bem menor no Brasil do que na Europa ou EUA, mas era ali que se poderia achar os primórdios da cultura participativa da Internet. O carnaval, e não o mercado, era o modelo do Ministro da Cultura para a emergência da sociedade da informação. Fazendo jus às suas raízes na Tropicália, Gil é um verdadeiro cosmopolita. Imitação não é subserviência - é inspiração e cooperação. Remixar, samplear e citar são ferramentas do trabalho coletivo na economia da dádiva da alta tecnologia" (BARBROOK, 2010).
9Nicholas Negroponte é um arquiteto e acadêmico estadunidense. Fundou o Media Lab com Seymour Papert (que havia trabalhado com Jean Piaget na Suíça), Marvin Minksy (que assumiu com Papert a área de Inteligência Artificial do Media Lab) e a designer Muriel Cooper, que segundo Negroponte promoveu a aproximação do Media Lab com o mundo das artes.
10Também no Brasil, as revistas e "cadernos de informática" da mídia corporativa seguem o estilo da Wired na cobertura da área: uma perspectiva superficial que entende "inovação" como sinônimo absoluto de "novas formas de fazer dinheiro". É em si uma opção bastante lucrativa, à medida em que o tom publicitário é bastante atraente para anunciantes de empresas de tecnologia, mas peca justamente pela ausência quase absoluta de uma postura crítica - exceto quando se trata de desvalorizar qualquer opinião que destoe da visão que Turner chamou tecnoutópica (TURNER, 2006).
11Bulletin Board Systems eram sistemas de fórum online populares entre usuários de computadores antes do surgimento da internet comercial. Outro californiano ligado à contracultura, Howard Rheingold cunhou o termo "comunidade virtual" como título do livro em que relata a sociabilidade que se desenvolvia através dos BBSs.
12Como mencionado no verbete sobre Brand na Wikipedia, disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Stewart_Brand (acessado em 27/11/13)
13Richard Stallman é fundador da Free Software Foundation e criador da licença pública geral (GPL, na abreviação em inglês) utilizada para a distribuição de software livre e aberto. Steven Levy definiu Stallman como "O último dos hackers verdadeiros" (LEVY, 1984). Ele mantém até os dias de hoje uma rotina intensa de participação em conferências em diversas partes do mundo para fomentar o uso e o desenvolvimento de software livre. É definitivamente um dos mais importantes disseminadores de uma cultura de compartilhamento, e é reconhecido por hackers e afins em qualquer parte do mundo.
14Disponível em http://media.mit.edu/ (acessado em 28/11/13)
15De maneira alguma estes setores entrariam no mérito de questionar a verdadeira falácia que é sugerir a fruição do "digital" por pessoas comuns. De fato, praticamente todos os usos que as pessoas faziam e fazem dos computadores (assim como dos tablets e smartphones de hoje em dia) são por essência analógicos: música e a voz precisam fazer vibrar o ar, enquanto imagens e a movimentação do mouse (ou de dedos em uma tela) são igualmente maneiras analógicas de receber informação ou de operar um sistema.
16Como mencionado no capítulo anterior, tive a oportunidade de participar de algumas etapas da plataforma Waag-Sarai, que propunha o desenvolvimento de um "centro de mídia" em algum lugar do Brasil. Os resultados foram algo diversos daquilo que esperavam tanto os holandeses quanto os indianos, mas ainda assim julgo que o processo tenha sido bastante positivo ao propor que projetos brasileiros se situassem em um cenário internacional relevante para a época.
17Em 2010, o encontro LABtoLAB que se realizava em Madri acolheu também a participação de mais de uma dezena de representantes de projetos experimentais da América Latina. Estive presente no encontro, a convite da Agência Espanhola de Cooperação Internacional e Desenvolvimento. Publiquei um relato do LABtoLAB aqui: http://desvio.cc/blog/labtolab-dia-dia (acessado em 28/11/13). Um resultado interessante do encontro surgiu a partir da percepção entre os latino-americanos de que as conversas estavam por demais eurocêntricas. Foi dali que surgiram as bases para o labSurlab, evento que já teve edições em Medelín, Quito e La Paz (http://labsurlab.org/, acessado em 28/11/13).
18Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Media_Lab (acessado em 30/11/13)
19O squatting propõe a ocupação coletiva de espaços desabitados. Na Europa, o movimento squatter está particularmente ligado à atuação política anarquista e autonomista, em especial com vertentes manifestas na cultura punk.
20Como sugerido no capítulo anterior, deve ter sido em meados de 2004 ou 2005 que ouvi pela primeira vez sobre os "hacklabs". Trabalhava, junto a cerca de outras oitenta pessoas em todas as regiões do Brasil, na elaboração, planejamento e implementação da estratégia de cultura digital para os Pontos de Cultura, projeto do Ministério da Cultura do Brasil. Alguns colegas propunham então que o projeto deveria apoiar o surgimento de hacklabs, laboratórios de cultura hacker. Referiam-se ao termo já utilizado à época para definir alguns espaços, localizados usualmente na Europa. Eram, como discorri naquele capítulo, laboratórios que afirmavam-se independentes e auto-organizados, nos quais eram explorados e desenvolvidos usos críticos de tecnologias da informação. A imagem me interessou inicialmente porque o tipo de prática que afirmavam desenvolver dialogava diretamente com os espaços de MetaReciclagem que existiam no Brasil, cujo funcionamento tentávamos então replicar dentro da rede de Pontos de Cultura.
21David Garcia e Geert Lovink foram expoentes do movimento da mídia tática, que propunha uma utilização politicamente situada das novas tecnologias de informação e comunicação. Inspiravam-se na oposição sugerida por Michel de Certeau, segundo a qual a estratégia seria domínio exclusivo da indústria e dos usuais detentores do poder, enquanto a tática - a esperteza do uso cotidiano - estaria acessível a todos os grupos sociais. (CAETANO, 2006).
22O TED é outro braço importante das ligações entre MIT Media Lab, Wired e a opinião pública. Teve origem em 1984 como uma conferência dedicada a "Tecnologia, Entretenimento e Design". Aquela edição, além de apresentações pioneiras do microcomputador Macintosh e do CD - que na época era uma novidade, desenvolvida pela Sony -, recebeu também palestras de Nicholas Negroponte e Stewart Brand. O organizador da conferência foi o arquiteto e designer Richard Saul Wurman. Foi só em 1990 que Wurman transformou o TED em uma conferência anual - somente para convidados -, que tornava-se um veículo de grande alcance para difundir ideias tecnoutópicas acompanhando a popularização da internet. Ao longo dos anos noventa, Wurman escreveria colunas para a revista Wired com alguma frequência. Em 2000, o comando do TED passaria a Chris Anderson, que no ano seguinte também assumiria como editor-chefe da Wired. Em meados da década passada, passaram a transmitir e disponibilizar pela internet algumas das apresentações das conferências, nas chamadas TED Talks. Hoje o TED tornou-se uma espécie de franquia de evento sobre empreendedorismo e tecnologia, adotando uma perspectiva bastante identificada com elementos da ideologia californiana.
23Impressoras 3D são máquinas digitais que fabricam objetos tridimensionais através da deposição de camadas de resina plástica. Falaremos mais sobre elas na seção sobre Fablabs e makerspaces.
24Cidade na Califórnia onde fica a matriz do Google.
25A meta do projeto Reprap é chegar a um modelo de impressora 3D que seja 100% replicante. Algumas das versões atualmente disponíveis podem imprimir todas suas partes de plástico, mas ainda não os circuitos eletrônicos e peças de metal.
26Um dos editores da revista Make, Phil Torrone, publicou em 2011 no seu blog um texto em que elogia o amadorismo em oposição à especialização, e sugere que quando se trata de eletrônicos todos são "iniciantes". http://makezine.com/2011/11/02/zen-and-the-art-of-making/ (acessado em 25/02/2014).
27Já comentei anteriormente e não vou retomar aqui em detalhes minha opinião sobre a superficialidade dessa suposta dicotomia platônica entre bits e átomos, mas me parece importante assinalar a conexão com o discurso de Nicholas Negroponte, fundador do MIT Media Lab.
28Pettis foi tema de capa da edição especial sobre design da Wired, em setembro de 2012, em matéria escrita pelo próprio editor Chris Anderson.
30O projeto One Laptop Per Child (OLPC) baseia-se no desenvolvimento de um computador educacional especialmente voltado para estudantes de países em desenvolvimento. Governos de países como o Uruguai e o Brasil (onde o projeto foi chamado UCA - Um Computador por Aluno) adotaram o projeto. Segundo formatos usuais do MIT Media Lab, o OLPC é um projeto bastante centralizado: é produzido por um só fabricante e requer encomendas de pelo menos um milhão de unidades. O projeto ainda é criticado por estimular o individualismo no uso dos computadores, por haver deixado de lado bandeiras que ajudaram na sua disseminação (como a manivela para carregar suas baterias ou a ênfase em redes wi-fi distribuídas, chamadas de redes mesh) e por focar-se principalmente no software, não sendo planejado para permitir o intercâmbio de peças e o conserto local.
31A própria nomenclatura utilizada para denominá-la indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.
32Existem pesquisas a respeito de plásticos e resinas que permitiriam transformar objetos fabricados por essas tecnologias em matéria-prima para novos objetos, mas ainda são muito incipientes. Como também, vale registrar, usos como a fabricação, em equipamentos similares, de alimentos, placas de circuito impresso ou compostos orgânicos.
33Cortadoras laser são máquinas que permitem recortar ou fazer gravações em diversos materiais - chapas de madeira, metal, acrílico ou outros materiais - a partir de arquivos digitais. São utilizadas industrialmente para fabricar desde brinquedos até roupas. Uma cortadora laser, assim, permite não apenas fazer protótipos de produtos para futura fabricação, mas também objetos prontos para o uso.
Helsinque, na Finlândia, é sede de diversas iniciativas que operam na fronteira entre arte, ciência e tecnologia. Aproveitei duas visitas que fiz àquela cidade – durante as quais estaria colaborando com a realização de um festival internacional que opera justamente nestes campos – para desenvolver uma observação de inspiração etnográfica. Me interessava obter um retrato mais aprofundado do cenário como um todo do que seria possível simplesmente estudando labs isoladamente e à distância. O grande número de arranjos experimentais e a diversidade em suas configurações e metodologias, em contraste com a escala de uma cidade relativamente pequena, acabariam trazendo insights importantes para entender possibilidades correntes dos labs experimentais. Este capítulo traz um relato deste período em Helsinque.
A previsão do tempo foi infelizmente acertada. A primavera demorava a vir neste ano, segundo os conformados finlandeses. Antes mesmo de chegar, eu já chamava a cidade de "Gelo-sinque, capital da Friolândia". Estávamos na terceira semana de abril, época em que o frio já deveria estar amansando. Mas naquela tarde de sábado o vento gelado conseguia entrar pela menor fresta de roupa. O número reduzido de pessoas na rua piorava ainda mais a sensação térmica naquela parte da cidade. Cruzávamos Kallio, bairro originalmente operário que nas últimas décadas foi-se transformando em área boêmia, em direção a Vallila, que passa por um processo similar mas ainda mantém oficinas e áreas de indústria1.
Acompanhava-me naquela tarde Nathalie Aubret, coordenadora do Festival Pixelache. Nathalie vem de Paris, mas vivendo em Helsinque há alguns anos já se considera mais finlandesa do que francesa. À nossa frente, em passo rápido, ia Antti Ahonen. Fotógrafo com longa lista de serviços prestados ao Pixelache, Antti é também integrante do Koelse, grupo de artistas e programadores que utiliza eletrônicos descartados e outros objetos para desenvolver obras, instalações e intervenções. Nosso destino naquela tarde era a sede do Koelse. Ambos vestiam casacos e gorros de lã, contrariando minha expectativa de que os habitantes locais teriam uma maior tolerância ao frio. Segundo Nathalie, Antti veste o mesmo gorro desde que ela o conheceu, anos atrás. Ele confirma a observação, como se orgulhoso de cada pequena contribuição para criticar o consumismo no mundo.
Eu fazia minha primeira visita àquela cidade e àquele país por ocasião do Festival Pixelache, que se realizaria no mês seguinte. O Pixelache acontece desde 2002, promovendo a aproximação e a colaboração entre diversas áreas de conhecimento. Em seu website, o Festival é definido como uma "plataforma transdisciplinar para arte, design, pesquisa e ativismo experimentais". Comparado a outros eventos inseridos no cenário internacional dos festivais de arte e tecnologia, o Pixelache é considerado um dos mais informais e despojados. Ainda assim (ou justamente por isso), é respeitado por uma suposta maior liberdade em experimentar com formatos e produções aliando pioneirismo e profundidade. Realizado usualmente em Helsinque, o Festival ainda engendrou ao longo de uma década de atividade uma rede de festivais independentes que identificam-se coletivamente como Rede Pixelache: Piksel (Noruega), Afropixel (Senegal), Mal au Pixel e Electropixel (ambos na França), Pixelazo (Colômbia), Pikslaverk (Islândia), Pikselvärk (Suécia) e mais recentemente o Tropixel, no Brasil2.
Para a edição de 2013 do Festival em Helsinque, a equipe de organizadores do Pixelache decidiu receber propostas de curadoria através de uma convocatória aberta. O tema deste ano seria "Facing North/Facing South", que pode ser traduzido como "encarando o norte / encarando o sul". Era um tema que dizia respeito a dois enquadramentos: o mundial e o regional. Por um lado explorava a tensão geopolítica entre os supostos norte e sul globais, habitualmente associados respectivamente a países ricos e países pobres ou "em desenvolvimento". De outro, refletia as tensões e convergências da integração de fato entre Helsinque, capital da Finlândia, e Talim, capital da Estônia. Separadas por oitenta quilômetros de mar, as duas cidades têm um histórico de relacionamento cultural e econômico intensos. Os textos iniciais do Festival, que estava planejado para acontecer nas duas localidades, já sugeriam uma cidade híbrida (chamada alegoricamente de Helim ou Talsinque), e parte da programação seria dedicada a debater esta imagem e suas implicações.
Curioso com aquelas questões (e instado por algumas pessoas chave ligadas à rede Pixelache), costurei no segundo semestre de 2012 uma proposta de curadoria do Festival junto à rede Bricolabs3. Foi uma construção colaborativa reunindo pesquisadores, curadores, artistas, hackers e articuladores de diversas partes do mundo. Fizemos uma série de reuniões pela internet, durante as quais debatemos questões que estariam refletidas em nossa proposta. Um dos pontos recorrentes era uma crítica à dicotomia norte-sul, que nos parecia por demais simplificadora e inadequada frente a casos dos quais era exemplo a própria rede Bricolabs. Com cerca de duzentos integrantes de diversas partes do mundo, acreditávamos representar uma dinâmica de colaboração que fugia a tais divisões superficiais (norte com dinheiro e conhecimento, sul com demandas materiais e mão de obra braçal).
Posteriormente eu entenderia que para os finlandeses, a tensão norte-sul não diz respeito somente à divisão entre hemisférios, mas fundamentalmente à própria identidade do país. Helsinque, cidade situada no extremo sul da Finlândia, é ainda assim a segunda capital mais setentrional do mundo (atrás apenas de Reiquiavique, na Islândia). Ou seja, do ponto de vista da Finlândia, também praticamente todas as capitais europeias estão ao sul. O país tem ainda outras particularidades. Os finlandeses falam uma língua quase autóctone4. Por centenas de anos, foram dominados alternadamente pela Suécia e pela Rússia. Ao longo do século XX, inclusive durante a Guerra Fria, a Finlândia era formalmente um país neutro. Recebia influência direta da então URSS, mas ao mesmo tempo era integrante de órgãos internacionais como a OCDE e a Associação Europeia de Livre Comércio. Durante os anos setenta, a Finlândia era vista como ponte diplomática entre os blocos capitalista e comunista. Hoje convivem ali um estado de bem-estar social com corporações internacionais como a Nokia. O país situa-se assim como zona fronteiriça, característica que pude sentir pessoalmente andando pelas ruas de Helsinque. Muitas coisas eram familiares, evocando características de outras cidades europeias. Pode-se usar o idioma inglês para falar com as pessoas sem a necessidade de perguntar se o dominam, ao contrário de outros países europeus. Ainda assim, tive uma sensação de estranhamento com alguns detalhes - arquitetura, comportamento, silêncio, natureza - que me pareceram bastante particulares.
Desde a criação da rede Bricolabs em 2006, já havíamos criado e desenvolvido uma série de projetos colaborativos internacionais. Em 2009 fizemos em Amsterdam uma reunião de encontro da rede, à qual estiveram presentes nove pessoas de oito nacionalidades distintas (vindas de três continentes diferentes). A rede Bricolabs facilitou ainda inúmeros encontros e colaborações pontuais ou em pequenos grupos. Nossa proposta para o Pixelache baseava-se nestas dinâmicas. Propusemo-nos a organizar discussões sobre colaboração multidirecional e tecnologias livres e abertas, sessões ao vivo via internet com grupos em diferentes partes do mundo, oficinas e exposições.
Enviamos a proposta em novembro de 2012. Em dezembro, recebemos a notícia de que ela havia sido selecionada. A partir de janeiro, entramos em uma rotina de reuniões semanais pela internet com integrantes da Bricolabs e do Pixelache para construir nossa parte da programação. O Festival aconteceria por dois dias em Helsinque, e então migraria para a ilha de Naissaar, na costa da Estônia, perto de Talim. À rede Bricolabs foi designada uma parte central do Pixelache: uma exposição e um seminário, ambos em Helsinque. Estávamos também convidados a participar do Camp Pixelache, uma desconferência - encontro cuja agenda de atividades é definida na abertura pelos próprios participantes - que aconteceria durante os dois dias em Naissaar.
Estabelecemos uma rotina de reuniões pela internet que continuaria durante toda a fase de preparação para o Pixelache. Havia, como usual nesse tipo de construção, alguma limitação de entendimento uma vez que nos comunicávamos basicamente em inglês, idioma nativo para não mais do que três entre as cerca de dez pessoas envolvidas. As reuniões davam-se por texto, ocorrendo geralmente em salas de bate-papo via IRC5. Ainda assim, conseguimos elencar um conjunto de temas que faziam sentido para todos os envolvidos. Além da já citada inquietação com a superficialidade de uma dicotomia norte-sul, outros tópicos de interesse envolviam a "colaboração antidisciplinar", as "redes ressonantes profundas" e as "infraestruturas subjetivas".
Um pouco mais complexo foi administrar a tensão entre o ritmo aberto e informal das conversas online e as necessidades concretas de um evento que acontecia em um lugar específico, com datas definidas e um orçamento fechado. No processo, encontrei uma série do que poderia chamar de determinantes culturais. Eu vinha de mais de uma década de experiência com todo tipo de eventos diretamente informados por práticas cambiantes das redes digitais - nas quais o formato das conversas é por vezes até mais importante do que aquilo que se fala nelas. Havia participado de e promovido desde reuniões abertas em lugares públicos organizadas sem nenhuma antecedência até mesas de debate internacionais em um formato mais tradicional, passando ainda por laboratórios temporários sem propósito definido, ciclos abertos de conversas e oficinas, e até certa vez uma tarde de discussões temáticas com dezessete microapresentações entre cerca de cinquenta participantes. Participara de paródias de seminários acadêmicos e da leitura cantada do estatuto de uma ONG, cuja primeira assembleia havia acontecido em uma escada, seguindo a ordem de quem gritava mais alto. Essa diversidade de práticas, apesar de frequentemente frustrar as expectativas de uma ou outra instituição, sempre me pareceu bastante enriquecedora para os grupos que delas participavam.
Para os organizadores do Pixelache na Finlândia, entretanto, era natural que um evento como aquele tivesse três elementos: seminário, exposição e oficinas. O máximo de informalidade com que eles conseguiam lidar era a desconferência, que ainda assim tem regras simples e claras. Me pareceu que, do ponto de vista finlandês, é desperdício de tempo questionar os formatos, uma vez que o seminário, a exposição e a oficina fazem parte de um modelo consagrado que garante grande objetividade. Sob este ponto de vista, estes três formatos têm finalidades e características invariáveis. O seminário permite que ideias sejam apresentadas e confrontadas umas com as outras. A exposição oferece expressões concretas da reflexão e da experimentação que vão além da palavra escrita e falada6. Já a oficina seria a maneira correta de compartilhar conhecimento aplicado, em especial técnicas para fazer-se qualquer coisa. É frequente, inclusive, que nesses meios fale-se em "transmissão de conhecimento", expressão que para meu universo de referências influenciado pela pedagogia de Paulo Freire soa absurda.
Foi só depois de insistir algumas vezes sem muita reverberação que comecei a pensar que essa visão mais estrita é reflexo de uma sociedade urbana instruída - na qual toda a população tem acesso ao mesmo tipo de educação, com instituições estáveis e, em especial, bastante racionalizada. Talvez seja natural que no Brasil, onde frequentemente o que vemos são simulacros de debate, exposições superficiais e oficinas repetitivas ou mesmo equivocadas, queiramos experimentar não somente com o que se fala mas com os próprios formatos de se falar. Ou então seria nossa vertente antropofágica que emerge, buscando a síntese entre o mundo como é e as ideias sobre como o mundo é. De todo modo, o processo de planejamento do Pixelache ensinou-me bastante a respeito daqueles formatos mais tradicionais - aos quais acabaríamos por fim nos conformando.
A visita em abril seria o momento para conhecer um pouco da cidade, do cenário local e dos espaços previstos para nossa programação no Pixelache. Em pleno andamento da pesquisa de mestrado, atraía-me também a Helsinque a curiosidade sobre modelos e formatos estruturais voltados a fomentar a produção experimental entre campos como cultura, ciência, educação e ativismo. A Finlândia, e em particular sua capital, têm tradição na produção de fronteira entre tais áreas, que o senso comum contemporâneo costuma apontar como apartadas. Desde que comecei a pesquisar tais temas, percebi que pessoas e instituições finlandesas são referências recorrentes. Estava assim interessado em visualizar de que maneira essa produção acontece e como se articula com as dinâmicas próprias da cidade.
Havíamos nos encontrado no início da tarde em Kulmahuone, uma entre as muitas iniciativas que oferecem espaço de trabalho para freelancers. O que primeiro chamou minha atenção no Kulmahuone foi justamente quão ordinário ele é. Trata-se de uma sala simples, decorada com bom gosto mas sem excessos. Tem alguns sofás, internet wi-fi e uma pequena cozinha com uma máquina de café expresso. Como outros espaços que eu conheceria posteriormente em Helsinque, o Kulmahuone não tem em si nenhum equipamento ou maquinário fixos particularmente relevantes. É um espaço aberto e reconfigurável.
O que nos levava ali naquela tarde era o encontro do Trashlab Repair Cafe, uma das linhas de atuação da Pixelversity - braço do Pixelache dedicado a ações permanentes e de formação abertas ao público. Aquele dia era dedicado ao conserto de roupas e bolsas. Havia um monte de máquinas de costura, agulhas, linhas de todas as cores e um grupo animado de pessoas, inclusive crianças e um cachorro. Alguém comentou que na Finlândia os homens costumam entender mais sobre costura do que as mulheres, pois têm aulas disso na escola. Os presentes usavam o material disponível na sala para consertar ou fazer suas próprias carteiras, calças, bolsas e mochilas.
Aquela cena que poderia parecer prosaica refletia na verdade um posicionamento que eu veria frequentemente entre os finlandeses. Ao contrário dos sentidos que podem ser evocados nas culturas médias brasileiras, para as quais consertar uma roupa pode trazer uma conotação negativa - a pessoa conserta porque não tem os meios para comprar uma nova -, para aqueles finlandeses o conserto era um ato de resistência. Inseridos em uma sociedade com alto grau de conscientização ecológica (a casa do amigo que me hospedou tinha cinco lixeiras para diferentes tipos de resíduo), para aquelas pessoas reformar uma peça de roupa é uma ação granular que significa alinhar-se a diversos movimentos internacionais que posicionam-se contrariamente ao consumismo exacerbado que alegadamente permeia a sociedade mundial.
Impressionou-me perceber quão importante era aquela pequena reunião informal, alegre e familiar, dentro do contexto da reflexão que o Trashlab vem propondo acerca de diversos tipos de resíduo, desperdício e reaproveitamento. Não era simplesmente um ato individual de resistência, mas um evento aberto situado em uma cidade relativamente pequena7. Pelo que se depreende da expectativa dos participantes, um simples encontro entre pessoas que têm preocupações em comum pode interferir em uma série de dinâmicas locais, articular questionamentos e por vezes até oferecer novas respostas a temas de alta relevância para a vida cotidiana, abrindo espaço de decisões usualmente atribuídas a especialistas para a interferência de outros tipos de agentes. É, entre outras coisas, uma maneira de mobilizar forças que podem ser articuladas para ajudar na construção de uma sociedade atual em que o poder encontra-se cada vez mais difuso. Sob esta perspectiva, ações como o encontro do Trashlab podem assumir a importante carga simbólica de apontar caminhos alternativos para o futuro da sociedade.
Depois de cerca de vinte minutos caminhando sob o vento frio com Nathalie e Antti após o Trashlab Repair Cafe, chegamos à frente de um grande prédio. Antti sacou um molho com algumas dezenas de chaves. Abriu o portão, contando-nos que estávamos em uma fábrica de cosméticos que havia sido desativada. Em vez de acontecer o que se costuma ver em casos parecidos nas cidades brasileiras - o abandono do espaço ou, ainda pior, sua transformação em mais um shopping center ou empreendimento imobiliário de "classe média alta" -, a construção foi mantida como estava e dividida em salas que são alugadas a preços acessíveis. Cada sala, e há dezenas delas, é um universo em si. Logo na entrada vimos uma pequena oficina que confecciona e vende equipamentos para sauna, uma tradição finlandesa. Existem também produtoras multimídia, gráficas, empresas de tecnologia, escritórios, e projetos diversos. Ali também tive a impressão de uma configuração que dialoga com a autonomia e a indeterminação.
No caminho para lá, Nathalie afirmara que o movimento squatter não tem muito peso em Helsinque, ao contrário de outras capitais europeias. Me parece que isso pode ser resultado de uma sociedade em que há oferta suficiente de moradia e espaço para trabalho. Cheguei a perguntar-me se a aproximação criativa entre necessidade real, inconformismo e desobediência civil que costuma acontecer no contexto squatter naquelas outras cidades não faria falta na Finlândia. Não encontrei dados para responder a esta questão.
Tomamos um elevador industrial, sem porta de proteção, e subimos alguns andares. Antti sacou novamente suas chaves e conduziu-nos para dentro da sede do Koelse. Senti-me imediatamente em casa, como se entrasse em algum espaço de MetaReciclagem em qualquer lugar do Brasil8. Prateleiras e mais prateleiras de equipamentos empilhados, ferramentas, bancadas e componentes eletrônicos. Uma tal quantidade de material estocado que parece ser difícil encontrar qualquer coisa específica. Uma visão ainda mais surpreendente em contraste com a propensão finlandesa pelo design clean, pela austeridade e pela praticidade que testemunhei em outros estabelecimentos, espaços públicos e residências.
Atravessamos a primeira sala e nos sentamos em algumas cadeiras na sala dos fundos. Antti contou um pouco sobre o grupo. O Koelse é um coletivo de artistas que desenvolve projetos geralmente ligados à reutilização de eletrônicos. São também pessoas bastante interessadas em sustentabilidade e na crítica ao consumismo e à obsolescência planejada9. Eles armazenam inclusive equipamentos para os quais não veem utilidade imediata - nas palavras de Antti, nunca se sabe quando vão precisar exatamente de um motor com as características específicas daquele encontrado em um gravador de cassete que encontraram na lixeira.
Logo chegaram mais dois integrantes do coletivo, Tomi Flinck e a italiana Sara Milazzo. Os dois estavam ali buscando peças para uma mesa de controle que gerenciaria uma série de sensores para interagir com uma dançarina de flamenco em um evento de que participariam. Mostraram alguns equipamentos que construíram à mão, que me fizeram recordar das produções do coletivo brasileiro Gambiologia10. Antti mencionou um documentário sobre o Koelse que estaria quase pronto. Conversamos por algum tempo sobre o Brasil, lixo e material eletrônico.
Encontramos durante a conversa muitas questões comuns entre ações deles e as de grupos brasileiros, apesar dos contextos socioeconômicos díspares. Achei particularmente curioso o fato de que Tomi exibia a mesma postura, gestualidade e até contava o mesmo tipo de piadas que já vi entre hackers em outros países, inclusive no Brasil. Não era uma personagem desconhecida. Existem de fato diversos pontos em comum entre hackers e ativistas em diferentes partes do mundo. São pessoas que frequentemente compartilham referências culturais: filmes e animações (em especial ficção ciberpunk11), videogames antigos e recentes, séries de TV, música pop de algum lugar exótico. Têm também em comum a familiaridade com ícones contemporâneos como Richard Stallman. Ele mesmo uma espécie de peregrino divulgando o software livre em eventos e conferências internacionais, Stallman acaba tornando-se tema de conversas para quebrar o gelo entre hackers e ativistas em qualquer parte do mundo.
Saindo da sede do Koelse partimos rumo ao destino seguinte, que ficava um ou dois andares abaixo. Tentamos descer pela escada, mas deparamo-nos com um robusto portão de grade, trancado. Voltamos e tomamos o elevador. Paramos em frente à porta encimada por uma faixa em inglês dizendo "porque podemos" ("because we can"). Ao centro o símbolo hacker e o nome Helsinki Hacklab colados com fita, e abaixo a foto de um osciloscópio ou algo parecido. Percebi ali mesmo uma questão de nomenclatura: Hacklab, e não Hackerspace. Como discorri no capítulo anterior, os termos têm diferentes genealogias que ainda que não sejam determinantes acabam por afiliar-se a históricos que sugerem posicionamentos políticos diversos: hacklabs costumam estar associados a um contexto ativista europeu, frequentemente (embora nem sempre) ligado a grupos anarquistas ou autonomistas; enquanto os hackerspaces se popularizaram a partir de uma releitura estadunidense dos hacklabs, evitando assumir uma politização explícita e sendo mais permeáveis a projetos comerciais e voltados ao mercado.
Fomos recebidos no Hacklab por outro finlandês chamado Antti, cujo sobrenome não registrei. Logo no hall, as usuais particularidades finlandesas: um banquinho para que os frequentadores tirem seus sapatos - e logo circulem descalços pelas salas -, além de um grande cabide para pendurar casacos. Antti nos levou a conhecer as instalações. Deu ênfase especial aos equipamentos e ferramentas. Começamos pela sala de eletrônica, no fundo. Materiais e químicos para gravar placas de circuito, ferros de solda, alguns circuitos prontos. Continuamos por outra sala que segundo Antti deveria ser uma sala de áudio. Entretanto, em uma bancada no centro do ambiente, uma grande impressora 3D chamava a atenção. Muitos computadores, mas tudo bem organizado.
Passamos por mais uma sala, onde alguns projetos eram desenvolvidos. Um grande mural com paineis LCD que são levados a eventos. Não para uso comercial, mas também nenhuma inclinação política explícita. Parece especialmente importante para seus integrantes a exploração e experimentação com o funcionamento e os usos potenciais das tecnologias. Havia ainda um monte de caixas fechadas, de aspecto robusto e com inscrições em alfabeto cirílico. Antti conta que trata-se de um antigo radar russo, para o qual não encontraram manual de instruções. Uma das caixas está aberta, e podem-se entrever válvulas dentro dela. O plano é desenvolver coletivamente maneiras de utilizá-lo. Na mesma sala estava uma reprap, a impressora 3d replicante.
A infraestrutura do Helsinki Hacklab é mantida com a contribuição financeira de cerca de cem pessoas, grande parte delas oferecendo periodicamente valores pequenos. Os integrantes ativos, que estão no hacklab com maior frequência, são cerca de trinta. Apesar do nome do espaço - fundado em 2010 - sugerir uma afiliação ao histórico de contestação dos hacklabs, tive a impressão de que ele poderia igualmente ser chamado de hackerspace. Da maneira como o conheci - e isso pode ser um condicionante importante, afinal fui guiado por um único integrante -, ficou a impressão de que ali os equipamentos são mais centrais do que uma hipotética posição de resistência. Inclusão e acesso parecem distantes, até em decorrência de obstáculos concretos: para chegar-se à sala, é necessário passar por vários portões trancados. E o ambiente recendia muito mais a normalidade alternativa (e espaço para utilização de tempo disponível) do que a ativismo politicamente engajado.
Minha visita à Finlândia aconteceu principalmente, como mencionado, pela participação da rede Bricolabs no festival Pixelache, que aconteceria no mês seguinte. Precisávamos planejar uma série de detalhes relacionados a logística, hospedagem e grade de programação. Eu queria também conhecer os espaços onde se realizaria o festival. Por esses motivos, passei uma tarde trabalhando no escritório da organização responsável pelo Pixelache. Nathalie encontrou-me em Kallio e tomamos a única linha de metrô, na direção norte. O escritório localiza-se em mais um espaço urbano ressignificado: Suvilahti, a antiga usina de eletricidade de Helsinque. De seu pátio com ares de zona industrial abandonada - amplos espaços de concreto e asfalto, grandes construções austeras de paredes descascadas ou pintadas em cores sóbrias, estruturas de metal enferrujado, e àquela época do ano grandes montes de gelo e entulho - pode-se ver a nova usina, construída em estilo contemporâneo. Uma das laterais da área é emoldurada por um extenso muro grafitado, costumeiramente renovado pelos frequentadores. O outro lado é delimitado por uma avenida de tráfego intenso e pela estação de metrô Kalasatama.
Assim como a fábrica de cosméticos onde se localizam a sede do Koelse e o Helsinki Hacklab, também Suvilahti foi fracionada e suas partes são alugadas para dezenas de iniciativas culturais e criativas. Além da organização responsável pelo Pixelache, também se localizam ali um ateliê de grafite e murais, estúdios e produtoras multimídia, uma escola de circo, a Eesti Maja (casa de cultura estoniana), além de escritórios de design e outros empreendimentos assemelhados. Dedicando-se a áreas complementares, é frequente o intercâmbio entre diferentes organizações no local. Como é comum na Finlândia, um dos prédios centrais do complexo tem uma sauna compartilhada. As instalações da Suvilahti também recebem frequentemente festas, shows e eventos. É um espaço bem conhecido na cidade, relativamente perto de Kallio e outras áreas boêmias.
A organização do Pixelache compartilha o escritório com a Sociedade Finlandesa de Bioarte, reforçando sua posição de fronteira entre arte, cultura e ciência. Fica em um prédio difícil de discernir de outros similares em Suvilahti, sem nenhuma sinalização específica. Para chegar-se até o escritório é necessário passar por duas portas usualmente trancadas, mas não existe nenhum tipo de portaria ou interfone. Em Helsinque, espera-se que qualquer pessoa tenha um telefone e o número dos presentes para avisar que está chegando. Encontros casuais são tão raros quanto alguém sem telefone. Em um saguão interno em frente à escada, ficava uma maquete da área de Suvilahti. O escritório é uma sala simples, com alguns objetos empilhados em um canto, e naquela tarde tinha quatro ou cinco pessoas trabalhando. Mesmo sendo uma sala sem divisórias, com uma grande mesa central onde todos sentam-se de frente uns para os outros, estranhei o silêncio no ambiente. Todos trabalhavam voltados para seus próprios computadores, concentrados em suas atividades. Só dirigiam-se aos outros quando tinham alguma pergunta sobre trabalho. Uma situação natural para finlandeses, ao que pareceu, mas quase insuportável para um brasileiro. Por outro lado, o fato de estarmos próximos a iniciativas de naturezas similares provou-se importante. Mais de uma vez, tínhamos alguma questão a resolver e simplesmente caminhávamos alguns minutos até algum vizinho para perguntar sobre cabos, equipamentos, materiais, infraestrutura ou tintas.
Parte da programação do Pixelache aconteceria em lugares dentro de Suvilahti ou no entorno. A exposição da rede Bricolabs ficaria dentro de três contêineres de transporte marítimo, alugados especificamente para este fim. Dentro deles estariam expostas obras enviadas por integrantes da rede - vídeos, instalações, objetos tecnológicos feitos à mão e outros. Aproveitei a visita para medir os espaços possíveis para os contêineres e enviar fotos deles para Kruno Jost, o croata integrante da Bricolabs que ficaria responsável por montar a exposição. Decidimos colocá-los em frente à casa estoniana. Jost chegaria alguns dias antes do festival, acompanhado da artista eslovena Maja Kohek. Os dois tratariam então de montar a exposição com as peças enviadas por correio pelos artistas e participantes. Não teriam um projeto detalhado da montagem antes de chegar a Helsinque. "Curadoria em tempo real", como diziam Jost e Kohek. Naquela tarde em Suvilahti, aprendi que essa maneira de preparar a exposição - usual, do meu ponto de vista - era considerada por demais improvisada para os finlandeses. Estavam inseguros de que algum imprevisto pudesse comprometer a abertura da exposição, que aconteceria em um mês. Tratei de tranquilizá-los mas a tensão permaneceria, ainda que silenciada.
Para encerrar o reconhecimento de espaços fui visitar o Happi, do outro lado da avenida que ladeia Suvilahti. A rede Bricolabs havia aceitado trabalhar com todos os formatos compreendidos pela organização do Pixelache - exposição, oficinas e seminário. Precisávamos então de um espaço para realizar o seminário - um dia inteiro de painéis e debates sobre alguns dos temas que haviam emergido de nossas conversas através da internet, com pessoas de nove países diferentes. Propusemos também a participação de integrantes da Bricolabs em outras partes do mundo, através da internet. Precisaríamos também de espaço para realizar algumas oficinas que estavam sendo planejadas.
O Happi é um espaço de uso comunitário, usualmente voltado a atividades para jovens e adolescentes. São quatro andares com equipamentos diversos - de pequenas salas para reuniões com projetores, mesas de trabalho e wi-fi a um lounge com sofás e espreguiçadeiras, passando por uma pequena biblioteca com salas para escutar música e assistir a DVDs, uma sala com grandes bancadas para oficinas, entre outras. Logo à esquerda de quem entra no térreo, depois dos sempre necessários cabides para casacos, havia dois grandes sofás em frente a uma TV com três videogames diferentes. Alguns espaços eram delimitados por cortinas, e portanto facilmente reconfiguráveis. Em um extremo, um café servindo comidas simples e bebidas quentes. Do outro lado, um palco que poderia ser transformado em auditório utilizando-se as cadeiras dobráveis que eles mantinham no almoxarifado. Naquela tarde, uma dúzia de adolescentes montava uma exposição. A coordenadora do espaço levou-nos a conhecer seu escritório, no último andar. Mostrou-nos a agenda do Happi na tela de seu computador - um monitor de 32 polegadas sobre uma mesa alta, sem cadeiras, para ser utilizada em pé. Era uma pessoa enérgica, com ares de esportista - como muitos dos finlandeses. Mas não falava inglês, algo inusual para a geração dela. Confirmou a reserva das datas. Descemos para falar com o "zelador", um finlandês de uns dezoito anos de idade. Nem ele nem o recepcionista pareciam muito felizes com nossa presença ali, demandando coisas para um evento cujos objetivos eles não entendiam muito bem. Mas acabaram passando seus emails para que pedíssemos tudo formalmente. Já os jovens que frequentavam o espaço - e pareciam estar ali principalmente para passar o tempo -, demonstravam alguma curiosidade sobre nós. O Happi fez-me lembrar de alguns Pontos de Cultura e centros comunitários no Brasil. Como estes, tinha um aspecto de infraestrutura primordialmente voltada ao acesso, com uma agenda de atividades abertas para a população. Por outro lado, como eu também veria na prática no mês seguinte, era profundamente reconfigurável.
Na casa de um amigo finlandês, eu folheava um livro - que ele havia adquirido em uma recente viagem ao Brasil - sobre casas projetadas por Oscar Niemeyer. Empolgado, apontou para uma página específica onde havia um móvel que havia sido projeto por Alvar Aalto. Ficou decepcionado ao perceber que eu não sabia quem havia sido Aalto, conhecido designer e arquiteto finlandês. Reconheci somente o nome que batiza também a renomada Universidade, cujo Fablab fui conhecer. Além de unidades ligadas aos diversos campos do conhecimento, a Universidade Aalto conta também com quatro "fábricas", plataformas multidisciplinares de colaboração: design factory, services factory, health factory e media factory.
O bairro Arabia de Helsinque é uma área residencial no entorno do prédio de mesmo nome, onde costumava localizar-se o que chegou a ser a maior fábrica de cerâmica da Europa. As antigas instalações industriais hoje sediam o campus da unidade de Arte, Design e Arquitetura, onde localiza-se a media factory. O exterior austero do prédio contrasta com as rampas, elevadores e corredores modernos. Cheguei acompanhado de Nathalie Aubret, coordenadora do Pixelache. Ela contou que supostamente todas as atividades daquele campus serão movidas nos próximos anos para novas instalações do outro lado da cidade. Até chegarmos no Arabia, ela não sabia se poderíamos entrar sem autorização prévia expressa. Por fim, não precisamos. No térreo, uma loja vende objetos de design, principalmente cerâmica. Peças com pequenos defeitos são expostas, com descontos significativos. Subimos pelo elevador, atravessamos uma passarela e chegamos a uma antessala que nos levaria ao Aalto Fablab, laboratório de fabricação digital subordinado à media factory. Já naquele ambiente, jovens sentados no chão pareciam debater um projeto. Aparentavam ser estudantes universitários. Atravessamos a antessala e nos vimos em um aquário de vidro, cercado de equipamentos.
Fomos recebidos pela sorridente Anu Määttä, mestre do estúdio. Ela é a pessoa responsável pelo funcionamento cotidiano do Fablab: supervisiona agendamentos, máquinas, pessoal e suprimentos. Precisamente por isso, Anu acompanha de perto grande parte dos projetos desenvolvidos por ali. Levou-nos para dar uma volta pelas instalações. Aqui e ali, indícios de experimentos: uma caixa com pedaços de madeira cortados à máquina, em formas curvas e compridas. Alguns anéis coloridos produzidos na impressora 3D. Uma mesa com objetos mais complexos. Parece ser um jogo comum na cultura maker elaborar e fabricar objetos que não seria viável construir à mão: encaixes, dobradiças, peças embutidas em outras. O Aalto Fablab utiliza pouco as capacidades de videoconferência que costumam ser associadas à rede internacional de Fablabs. Já têm grande parte dos equipamentos usuais em Fablabs, mas pretendem adquirir alguns equipamentos mais complexos ou com maior qualidade, como um scanner 3d.
Ao contrário de nosso guia no Helsinki Hacklab alguns dias antes, Anu parecia estar mais interessada em nos apresentar as pessoas do que as máquinas. Grande parte delas eram estudantes ou professores da própria Universidade, desenvolvendo protótipos para seus próprios projetos. Anu conta que em princípio qualquer pessoa pode agendar horários para usar o Fablab. O uso das máquinas é gratuito e o material precisa ser pago somente por quem utilizar mais do que o equivalente a cinco euros. Eles têm horários específicos para não-estudantes. Mas não é tão comum que apareça alguém de fora da comunidade universitária. Ela demonstrou bastante interesse e flexibilidade para fazer coisas acontecerem. Perguntou se precisaríamos de alguma coisa do Fablab para o Pixelache, mesmo que fosse em horários que não costumam trabalhar, como os fins de semana.
Operando há alguns anos, o Aalto Fablab já é conhecido tanto na cena artística e cultural da cidade quanto internacionalmente, em grande medida pela atuação de Massimo Menichinelli, que além de ter sido um dos responsáveis pela criação do Fablab também costuma escrever extensivamente e fazer apresentações sobre Fablabs12. Apesar da repercussão de suas atividades, entretanto, representantes do Fablab não puderam afirmar muito a respeito de sua continuidade a médio prazo. Aparentemente, eles costumam funcionar através de recursos concedidos anualmente, o que associado à sua dependência de uma infraestrutura mais dispendiosa do que outros formatos de labs cria alguma fragilidade. Somando-se a isso a iminência de mudança de todo o Campus Arabia da Universidade Aalto para novas instalações, o resultado é que algumas pessoas ali estavam menos otimistas do que eu imaginara. Talvez essa insegurança seja justamente uma consequência de sua posição ambígua, lidando simultaneamente por um lado com legítimas aspirações colaborativas e de transformação social, e por outro lado com um contexto, métodos e vocabulário originados na produção industrial tradicional.
Cerca de um mês após aquela primeira visita à Finlândia, fui uma vez mais a Helsinque para a realização propriamente dita do festival Pixelache. Pude então presenciar outra dinâmica relacionada ao contexto dos labs experimentais: além da cena local, dezenas de pessoas envolvidas com arte, tecnologia, ativismo e pesquisa afluíram à cidade, vindas de diversos países. A programação de oficinas, palestras e intervenções imprimia outro ritmo às pessoas e às conversas. Uma escolha interessante do festival foi a movimentação constante, acontecendo em diversos lugares. Na noite prévia à abertura, todos os participantes que já estavam na cidade foram recebidos no Made in Kallio. Café, loja com produtos de designers independentes e espaço para trabalho, no dia seguinte o Made in Kallio sediaria algumas das oficinas práticas do Pixelache. Uma sessão de trabalho sobre outro evento e a palestra inaugural também aconteceriam em uma Universidade.
A sessão oficial de abertura foi na Casa da Cultura Estoniana, em frente à qual residia a exposição da rede Bricolabs. À noite, todos os participantes foram convidados à sauna de Suvilahti. No segundo dia do festival, as atividades concentraram-se no Happi, onde realizamos a conferência Bricolabs. À noite jantamos e tomamos a balsa (na verdade, um navio de grande porte) até Talim, na Estônia. Passamos a noite em um hotel e pela manhã tomamos um barco menor, para cem pessoas, em direção à ilha de Naissaar. Já na chegada, foram definidos os espaços e a agenda dos dois dias que passaríamos ali. Mesmo com o frio intenso, diversos debates, conversas e sessões de trabalho tomaram lugar em Naissaar. A sensação que tenho daqueles cinco dias é que se parecem duas semanas. Foram dias cansativos, mas imensamente enriquecedores.
Entre as impressões que permaneceram após meus dois períodos na Finlândia, me parece particularmente relevante haver encontrado espaços bem mais abertos do que poderia imaginar. Kulma Huone, como mencionado anteriormente, é praticamente uma sala que pode ser transformada no que se quiser fazer com ela. Até mesmo Happi, que parece ter uma natureza de funcionamento bem determinada, adaptou-se bem às nossas necessidades com a reconfiguração de pequenos elementos de mobiliário. O prédio que sedia Koelse e o Helsinki Hacklab, e também o complexo Suvilahti, são simplesmente espaços industriais desocupados que foram minimamente adaptados para o reaproveitamento. Não existe um esforço centralizado de criação prévia de significado para eles, como se vê frequentemente em projetos de reurbanização no Brasil. Simetricamente, também não são espaços deixados para serem devorados pela especulação imobiliária ou então transformados em destroços. Parece existir sim uma intenção de ocupação, mas ela se dá de maneira mais leve e sutil, sem tanta interferência dos detentores da infraestrutura a respeito dos temas, estruturas e métodos de sua ocupação.
Analisando a experiência de campo relatada neste capítulo em contraste tanto com o histórico de labs experimentais quanto com as construções recentes no Brasil, passei a trabalhar com a ideia dos labs como espaços intencionalmente deixados em branco, que exploro a seguir.
1Mesmo na capital da Finlândia, país que ainda mantém a reputação de uma sociedade mais igualitária, parece repetir-se um processo recorrente em outras cidades contemporâneas europeias: à medida em que as fábricas tradicionais as abandonam em favor de países em desenvolvimento, os bairros historicamente ocupados pelos funcionários industriais veem sua população se transformar. Correndo o risco de tornar a situação caricatural, ouso esboçar o ciclo usual da chamada gentrificação: uma desvalorização imobiliária inicial em tais vizinhanças atrai imigrantes em busca de alugueis baixos. Em seguida junta-se a eles uma população boêmia - estudantes e jovens professores universitários, artistas e pesquisadores em início de carreira. Este segundo público é usualmente atraído não somente pelos preços mas também pela liberdade e pela diversidade cultural, usualmente incomuns em bairros europeus de classe média. Por fim, as mesmas regiões - agora efervescentes de produção cultural e vida noturna - acabam por atrair uma classe urbana emergente, com maior poder aquisitivo e curiosa por novidades. Esse processo usualmente acaba por expulsar o que resta dos habitantes tradicionais, os imigrantes e em seguida também os artistas e universitários, que vão atrás de outros bairros nos quais o mesmo processo se reinicia. Ali em Helsinque a questão não é tão radical quanto em cidades como Londres, Berlim ou Barcelona, mas ainda assim o mecanismo da gentrificação parece estar à porta. Me interessa aqui somente apontar essa tendência, que interessa para a investigação sobre labs à medida em que estes dialogam com questões sociais urbanas.
2O autor organizou uma das etapas do Tropixel, realizada em outubro de 2013 na cidade de Ubatuba/SP.
3A rede internacional Bricolabs foi criada em 2006 a partir de uma série de conversas que tive com Rob van Kranenburg, Bronac Ferran, Jaromil e Matt Ratto. A intenção, à época, era promover a articulação entre diversos projetos no mundo inteiro orbitando ideias como "infraestruturas genéricas", a aproximação entre hardware, software e espectro livre, e a apropriação crítica de tecnologias. Organizada através de uma lista de debates por e-mail, a Bricolabs conta hoje com cerca de duzentos integrantes nas Américas, Europa e Ásia - envolvidos com labs experimentais, teóricos críticos, artistas, curadores e produtores culturais.
4O idioma finlandês vem do ramo Fino-Úgrico, aparentado somente ao Estoniano e ao Magiar da Hungria.
5IRC (Internet Relay Chat) é um protocolo voltado à criação de salas de bate-papo na internet. Um dos servidores de IRC mais utilizados no mundo é o Freenode, disponível em http://freenode.net (acessado em 30/11/13)
6Cheguei inclusive a perguntar se nossa exposição poderia ser um laboratório em andamento, ao que me responderam explicitamente que não. Em uma das reuniões da rede Bricolabs, comentou-se sobre o desconforto em trabalhar com "coisas penduradas em paredes".
7Helsinque tem uma população de 610 mil habitantes (Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Helsinki, acessada em 17/11/13)
8O autor é um dos fundadores da MetaReciclagem, rede brasileira que trabalha com a apropriação crítica de resíduos eletroeletrônicos, tendo estabelecido ao longo da última década dezenas de laboratórios de reutilização de computadores doados, em diferentes partes do Brasil.
9Obsolescência planejada ou programada define a escolha da indústria em fabricar produtos cuja vida útil é intencionalmente reduzida, induzindo sua substituição em menos tempo.
10Coletivo de Belo Horizonte que trabalha com esculturas e objetos artísticos construídos com a lógica da gambiarra e da reutilização. Mais informações em http://gambiologia.net (acessado em 30/11/13)
11Movimento literário criado nos anos oitenta por autores de ficção científica como Bruce Sterling e William Gibson. A literatura ciberpunk contrapunha-se às tendências épicas do campo ficção científica, criando cenários distópicos nos quais megacorporações e inteligências artificiais detinham o poder.
12Em seus textos, Menichinelli costuma minimizar o papel do MIT Media Lab na criação da rede de Fablabs - indica que eles surgiram lá "por acaso". Também volta sua atenção para questões particulares que não costumam ser citadas nas referências estadunidenses de Fablabs, como criação de comunidade, sustentabilidade, troca, etc.
Quer se trate do impulso empreendedor com objetivos comerciais, do desejo de criar uma sociedade mais justa e includente, da exploração estética e de linguagem ou de qualquer uma das possíveis combinações entre esses três e eixos e outros similares, o vasto campo de atividades onde se aproximam cultura e tecnologia tem uma questão central a enfrentar. Qual seria seu poder real de influenciar o sentido e o ritmo do desenvolvimento e da apropriação de tecnologias? Existiria permeabilidade aos interesses da sociedade dentro dos processos de desenvolvimento tecnológico? Ou pelo contrário, seria tal desenvolvimento autônomo e não influenciado - e ainda menos comprometido - com aqueles interesses? Em outras palavras, seria possível projetar tecnologias e usos dessas tecnologias que assegurassem transformação seguindo linhas intencionais, ou que ao menos aumentassem a probabilidade de ocorrência de transformação de acordo com planos conscientes? Até que ponto instrumentalizar as tecnologias com o objetivo de moldar o futuro é um caminho efetivo para interferir no estado das coisas? Quais são as consequências que isso pode trazer?
Propondo-se a analisar Ciência e a Tecnologia como uma composição que se desenrola de forma integrada (chamadas conjuntamente de C&T), Renato Dagnino (DAGNINO) identifica duas abordagens usuais para interpretar seu desenvolvimento: uma que parte da perspectiva da C&T, a outra nas maneiras como dinâmicas da sociedade a constróem. Sem a pretensão de aprofundar-me em tais questões, exponho abaixo alguns dos pontos principais dessas duas abordagens.
Segundo a abordagem focada na C&T, esta se desenvolveria fundamentalmente na busca da verdade, segundo dinâmicas próprias e de forma linear, universal e inexorável que estariam isoladas do contexto sociopolítico. Esta abordagem é claramente evolucionista, tomando por certo que qualquer tecnologia em determinado momento é "naturalmente" superior às anteriores. Essa visão estaria manifesta usualmente em torno de uma entre duas ideias distintas: a neutralidade das tecnologias, ou o determinismo tecnológico.
A afirmação da neutralidade das tecnologias parte da suposição de que a separação entre a C&T e o contexto social seria impermeável para ambos os lados. Deste modo, nem a sociedade influenciaria a C&T nem pelo contrário a C&T influenciaria a sociedade. Deixada a suas próprias dinâmicas, ela estaria sempre direcionada a evoluir positivamente. Já o determinismo tecnológico indicaria a C&T como "variável independente e universal que determinaria o comportamento de todas as outras variáveis do sistema produtivo e social, como se elas dependessem inteiramente das mudanças e da organização tecnológicas" (DAGNINO: 19). No determinismo tecnológico, assim, a C&T despontaria como o próprio motor de toda transformação relevante na história.
Ainda segundo Dagnino, uma segunda abordagem para o desenvolvimento da C&T - concentrada na sociedade - reconheceria o conteúdo essencialmente político do desenvolvimento das tecnologias. Esta abordagem estaria subdividida em duas variantes: a tese fraca da não-neutralidade e a tese forte da não-neutralidade. Segundo a tese fraca da não-neutralidade, o contexto sociopolítico conformaria o ambiente no qual é gerado o conhecimento científico e tecnológico. Assim, o desenvolvimento de C&T internalizaria características do contexto e contribuiria para seu desenvolvimento e permanência. A C&T, dessa forma, incorporaria em seus próprios desenvolvimentos relações de poder e autoridade. A tese forte da não-neutralidade iria ainda além, ao entender que a C&T está inescapavelmente comprometida com a manutenção do estado atual da sociedade, de modo que não seria adequada ou mesmo viável sua aplicação em contextos sociopolíticos diversos, e ainda menos poderia ela engendrar transformação social real a partir de suas dinâmicas usuais.
Entre os diferentes grupos sociais que compõem o cenário no qual operam os laboratórios experimentais que são objeto desta pesquisa, tanto a postura do determinismo tecnológico quanto a ciência enquanto sistema estruturado são igualmente criticados. Esta pela pretensão de operar como espaço único de geração de conhecimento; aquele na medida em que recusaria o potencial de interferência advindo do restante da sociedade. É possível mesmo imaginar a própria emergência dos labs como uma espécie de resposta à imobilidade das duas abordagens identificadas por Dagnino.
O discurso articulado nos diferentes labs experimentais, por mais que utilize-se de empréstimos que poderiam ser interpretados através de uma ou outra daquelas abordagens, não está usualmente afiliado a alguma delas em particular. Seria possível caracterizar nessa postura de recusa de lado a lado a intenção de encontrar fugas dos supostamente inexoráveis caminhos do determinismo tecnológico, bem como das instituições de C&T que estariam, seguindo Dagnino, colaborando – quando não comprometidas - com uma postura conservadora. O recurso à experimentação e a projetos não necessariamente direcionados à inserção no mercado, bem como a sabotagem consciente das aspirações e da linguagem superficial advinda do empreendedorismo e da inovação comerciais são também elementos importantes. Ainda mais importante é a aproximação entre arte e tecnologia em um sentido diferente daquelas primeiras experiências interdisciplinares dos anos sessenta - que de certa forma tentavam instrumentalizar a arte como elemento para possiblitar novos usos e saltos qualitativos no desenvolvimento da indústria de tecnologias. Pelo contrário, a arte que surge no contexto dos labs experimentais - ou ao menos o discurso desta arte - é frequentemente engajada em uma postura de resistência contra os vícios da indústria, do consumismo individualista, da sociedade do controle, do esgotamento de recursos naturais e da submissão da diversidade cultural a uma cultura global homogenizada.
Em quais plataformas se baseia e de que maneira tenta operar esta busca dos labs por desvios relevantes? Em que medida o capitalismo informacional, reforçado pela C&T, já antevê essas buscas e desenvolve maneiras de neutralizá-las? Haveria caminhos através dos quais se poderiam criar zonas de criação que escapassem aos mecanismos de auto-incremento e reprodução do sistema? Este capítulo, que encerra minha pesquisa de mestrado, oferece menos respostas do que aprofundamentos dessas questões em distintos caminhos.
Richard Barbrook aponta a Exposição Mundial de Nova Iorque em 1964 como expoente da criação de "futuros imaginários" estadunidenses, uma construção fundamentalmente ideológica com objetivos subordinados às aspirações políticas e econômicas daquele país. Não é coincidência que ela tenha se realizado justamente no momento de ascendência da Guerra Fria contra os soviéticos. Mais do que um catálogo de descobertas da época, a Exposição Mundial teria funcionado como protótipo de uma sociedade futura. Um protótipo no qual a ficção científica teria se transformado em fato científico (BARBROOK, 2009: p. 44).
Estes futuros imaginários originados na Guerra Fria carregariam uma série de implicações às quais raramente se dá a devida atenção. Se a Exposição anterior realizada na mesma cidade em 1939 tinha como grande atração o automóvel, em 1964 as atenções voltavam-se para os três novos ícones da modernidade estadunidense: computadores, foguetes e reatores nucleares. De certa forma, era uma inversão de escala. Enquanto o automóvel era um produto de consumo de massas que em última instância estaria disponível a qualquer cidadão com dinheiro para comprá-lo, estes novos ícones eram o símbolo de um tipo de aplicação tecnológica de grande porte e alta complexidade, inacessíveis ao cidadão comum. Tanto foguetes quanto reatores e computadores apontavam para um mundo utópico no qual a humanidade alcançaria, respectivamente, o transporte rápido a longas distâncias (possivelmente ao espaço e outros astros), a energia grátis e infinitamente abundante, e a inteligência artificial. Tais usos dependeriam necessariamente de organizações grandes e centralizadoras.
Barbrook sustenta que os futuros imaginários permanecem presentes nas aspirações da sociedade dos dias atuais. Proezas tecnológicas como os robôs domésticos dotados de inteligência artificial, uma economia racionalizada através de tecnologias de informação que evitaria oscilações e crises financeiras, além da chegada da sociedade da informação, representavam o futuro em 1964 e ainda o fazem hoje em dia.
A análise de Barbrook que sugere uma continuidade direta do elogio aos futuros imaginários da Guerra Fria até os dias de hoje é questionável. De maneira ilustrativa, é possível traçar um paralelo entre a crescente disponibilização de tecnologias neste período e o universo e vocabulários da ficção científica, que usualmente dão indícios das expectativas e aspirações a respeito das tecnologias e do futuro. Os únicos computadores disponíveis à época da Exposição de Nova Iorque eram os grandes mainframes, que poderiam de fato ser encarados como representantes daquelas tecnologias inacessíveis como também eram o foguete e o reator nuclear. Entretanto, o surgimento dos microcomputadores pelas mãos de amadores, e a subsequente emergência significativa da cultura hacker nas décadas seguintes, sugerem outros elementos neste cenário. O ramo da ficção científica que despontou a partir dos anos oitenta - o movimento ciberpunk - é soturno, tão desconfiado de grandes corporações quanto de possíveis manifestações da inteligência artificial que eventualmente saíssem do controle humano1. Em vez do herói asséptico em uma sociedade altamente tecnológica, o típico protagonista da ficção ciberpunk é um desajustado que vive à margem da sociedade, frequentemente ligado a movimentos de resistência contra a hegemonia das máquinas. Nada mais distante do que a população homogenizada daqueles futuros dos anos sessenta.
A influência do pessimismo ciberpunk no imaginário contemporâneo foi grande a ponto de gerar mais recentemente movimentos de contraofensiva como o Solve for X. Trata-se de uma iniciativa que se propõe a debater "ideias radicais" (que poderiam "soar como ficção científica") para resolver problemas globais2. Retomando uma vertente épica - esta sim típica daqueles futuros imaginários identificados por Barbook -, Solve for X deposita esperanças na possibilidade de guiar o desenvolvimento tecnológico em direção à solução de "grandes problemas". Nas palavras de um dos palestrantes convidados pelo Solve for X, o escritor Neal Stephenson, nos primeiros 2/3 do século XX a humanidade avançou desde um ponto em que não se acreditava que objetos mais pesados que o ar poderiam voar, até a chegada à Lua em 1968. Stephenson afirma que após aquele momento a humanidade teria perdido a capacidade de realizar grandes feitos e que os maiores talentos estariam sendo alocados hoje para resolver problemas de relevância questionável ("eu vi as melhores mentes do meu tempo desenvolvendo filtros anti-spam")3. A perspectiva do Solve for X, dessa maneira, tende a concordar com Barbrook no diagnóstico de uma suposta estagnação nos horizontes de inovação tecnológica desde meados dos anos sessenta. Por outro lado, desprezando a crítica ciberpunk como mero obstáculo ao progresso, propõe justamente ressuscitar o desenvolvimento de grandes projetos como os que aconteciam nos anos sessenta. A particularidade é que agora seus objetivos não mais seriam traçados por agentes governamentais, mas teriam origem nas aspirações de corporações de tecnologia. O Solve for X é de certa forma a encarnação tecnoutópica dos futuros imaginários. Não é por acaso que entre seus principais patrocinadores e apoiadores estejam nomes como Google, MIT, TED e Singularity University.
Mesmo apontando as diferenças entre o futuro imaginário da Guerra Fria, o cinismo ciberpunk, as tecnoutopias corporativas californianas e as presentes combinações destes elementos, é possível perceber uma base invariável entre esses cenários. Todos parecem partir da suposição de que o mundo contemporâneo seria inevitavelmente administrado segundo princípios da cibernética. Assim, haveria uma transformação da sociedade inteira em um sistema autogerido, no qual a criação e a circulação de informação (e de mercadorias transformadas em informação, assim como informação transformada em mercadorias) seriam elementos fundamentais de governança. Cada pessoa nesta cadeia informacional seria entendida não mais como indivíduo, mas como um simples nodo em uma rede que engloba a todos, como abelhas operando uma "inteligência de enxame". Esta imagem é utilizada corriqueiramente pelos batalhões tecnoutópicos como analogia à maneira como as pessoas operariam em uma sociedade em rede. Costumam elogiar a capacidade do enxame de adaptar-se a oscilações no ambiente, mas é raro que questionem a inescapável subordinação de qualquer indivíduo do enxame à necessidade de sobrevivência da rainha. Trata-se, assim, de uma metáfora que aplicada à humanidade implica uma homogenização da capacidade de cada indivíduo em efetuar mudanças, neutralizando qualquer possibilidade de transformação profunda que ponha em risco as estruturas do poder vigente.
Um mundo cibernético seria, assim, um instrumento perfeito para garantir estabilidade. Em outras palavras, para evitar qualquer mudança indesejada pelos planejadores do próprio sistema. Neste contexto, assume papel fundamental a ideia de retroalimentação. Assim como um sistema cibernético de defesa antiaérea monitora o próprio desempenho para corrigir seus disparos e em última instância "prever o futuro" (KIM, 2004), também o capitalismo neoliberal identifica os desvios em suas bordas e deles se alimenta, tratando de no ciclo seguinte assimilar e neutralizar toda dissidência. Essa abrangência parece configurar a total inescapabilidade da cibernética, quando aplicada à administração da sociedade. Ocorrências que desviem do padrão já seriam esperadas - bem como seriam inevitáveis sua assimilação, cooptação e consequente neutralização. O surgimento e o posterior esvaziamento da literatura ciberpunk pode inclusive ter ido neste sentido, transformado por realimentação - de potência crítica ao sistema a mero elemento de estilo e identidade cultural.
No âmbito da presente pesquisa, uma opção pessimista poderia identificar movimento semelhante na transição desde os hacklabs de cunho explicitamente político aos hackerspaces permeáveis ao mercado. Essa trajetória seguiria a similar transformação de espaços que em determinado momento situavam-se no contexto da arte engajada, da teoria crítica e do ativismo midiático, até renderem-se - em meados da década passada - à retórica administrativo-financeira das “indústrias criativas”. Este campo, incentivado por políticas públicas adotadas pelo Reino Unido e Austrália e posteriormente replicadas em todo o mundo, concentra-se no desenvolvimento dos chamados setores criativos. São áreas de atuação econômica dos quais o conhecimento aplicado e a criatividade seriam os elementos primordiais. As políticas de indústrias criativas costumam colocar-se como estratégia de constante aceleração econômica (além de, implicitamente, assegurarem a manutenção de uma divisão internacional do trabalho, com pitorescas e altamente publicizadas exceções). No limite, as indústrias culturais buscam transformar toda expressão cultural, criativa ou intelectual em produtos vendáveis. Substituem desta forma o posicionamento e a relevância frente à sociedade pela mensuração de valor sob critérios financeiros, o que ocasiona por extensão um crescente distanciamento entre a sociedade e a produção intelectual e criativa que nela se desenvolve.
A tradução do trabalho intelectual em termos que podem ser analisados matematicamente está também ligada de maneira intrínseca à defesa da digitalização irrestrita de todo fato social - que não é senão sua transformação em dados numéricos -, presente tanto no discurso tecnoutópico de Nicholas Negroponte e da revista Wired quanto nas novas gerações das redes sociais digitais. Nestes círculos, a digitalização costuma ser defendida como intrinsecamente positiva, uma vez que permite uma maior eficiência no armazenamento e circulação de informação. A geração automática de estatísticas sobre relacionamentos sociais, hábitos de navegação e variação de temas de interesse é a mina de ouro do capital financeiro aplicado nas indústria de tecnologia dos dias de hoje. Transforma-se o próprio uso cotidiano da internet em instrumento de criação de valor (na casa dos bilhões de dólares anuais), explorado por um número reduzido de corporações internacionais. Estas criam os chamados "jardins murados" da internet - grandes porém restritos sistemas de circulação de informação que seriam a manifestação concreta da extensão da cibernética tanto à economia internacional quanto ao dia a dia de toda a população que utiliza a rede.
O desenvolvimento da cibernética foi acompanhado pelo surgimento da computação biológica, interessada em simular através de computadores as dinâmicas auto-organizadas comuns a fenômenos orgânicos. Tiziana Terranova aponta a instrumentalização do campo da computação biológica como tentativa sustentada e enganosa de "naturalizar relações técnicas e sociais - apoiando a noção de uma Internet auto-organizada intrinsecamente dada à ação benéfica de forças de livre-mercado" (TERRANOVA, 2004: 99). Segundo esta perspectiva, a rede seria não somente uma descrição topológica de conexões, mas sim a definição de um novo tipo de máquina produtiva. Os resultantes sistemas auto-organizados seriam caracterizados por um excesso de valor, que demandaria "estratégias flexíveis de valorização e controle" (TERRANOVA, 2004: 100). Terranova retoma do filósofo pré-socrático Epicuro o conceito de clinamen - princípio de indeterminação que toma a forma de acaso na teoria do átomo - para definir o objeto de estudo da computação biológica. As pequenas variações e instabilidades representariam microdesterritorializações. No capitalismo neoliberal cibernético essa indeterminação seria considerada como fonte potencial tanto de imensa lucratividade quanto de mudanças abruptas e indesejadas (TERRANOVA, 2004: 107). A instrumentalização comercial da computação biológica, assim, possibilitaria capturar o máximo possível da produtividade da multidão e de suas microvariações, ao mesmo tempo em que se exerceria um controle suave ("soft control") que neutraliza qualquer potencial de transformação efetiva.
Para Terranova, o controle cibernético dentro do capitalismo informacional seria "definido em duas maneiras: como o oposto da racionalidade mecânica (programação passo a passo), porque esta é muito rígida e no limite muito frágil para operar em tal terreno; e também como a antítese do governo centralizado, porque este supõe um conhecimento completo de cada componente individual do sistema total, algo impossível de alcançar neste tipo de estrutura" (TERRANOVA, 2004: 122).
A prevalência de princípios cibernéticos aplicados como computação biológica, então, significaria que não existe linha de fuga para a captura de valor pelo capitalismo informacional? Toda variação que poderia escapar aos ditames tanto do determinismo tecnológico quanto do papel conservador e reprodutor de desigualdades que a tecnologia assume junto com a ciência contemporânea estaria então neutralizada de antemão?
Terranova sugere, pelo contrário, que os próprios mecanismos da computação biológica teriam muito a oferecer em termos de pensar processos de organização de baixo para cima e emergência em uma cultura em rede, sua relação com a reorganização dos modos capitalistas de produção e os potenciais políticos que tal reorganização abriria. Sua interpretação para o "virtual" também indica caminhos para intervenções na sociedade:
"O que reside além do possível e do real é assim a abertura do virtual, da invenção e da flutuação, do que não pode ser planejado ou mesmo antecipado, do que não existe permanência real mas apenas reverberações. Ao contrário do provável, o virtual pode apenas irromper e então recuar, deixando apenas traços atrás de si, mas traços que estão virtualmente aptos a regenerar uma realidade gangrenada por sua redução a um conjunto fechado de possibilidades." (TERRANOVA, 2004: 27).
Como espaços situados nesta margem do virtual (daquilo que Terranova chama de virtual), os labs experimentais incorporam uma série de elementos potencialmente transformadores. De fato, eventos e ações ligadas a labs no mundo inteiro têm dado espaço a construções que sugerem escapes, ainda que frequentemente locais e efêmeros, aos abrangentes enquadramentos do capitalismo informacional. Não se trata de uma simples postura de contraposição dura e unificada ao sistema nos moldes de movimentos ativistas com mais tempo de estrada, mas da multiplicação de vozes que propõem diversos vocabulários e práticas de resistência. Labs experimentais acabam tornando-se lugares nos quais permacultores têm a oportunidade de encontrar e conviver com hackers, com ativistas dedicados à soberania alimentar, com artistas contemporâneos, movimentos sociais e muitos outros espaços de atuação. Operam assim na potência da invenção, a cada momento, de acordos e colaborações impossíveis de se prever.
Existe também uma questão inédita que diz respeito a escala e internacionalização. Estima-se que entre 2006 e 2011 tenham surgido mais de cem hackerspaces em todo o mundo. Somente no Brasil, a figura do laboratório de produção colaborativa disseminou-se no universo acadêmico, nas empresas de tecnologia, em políticas públicas de cultura, na educação formal e informal, em museus e galerias de arte, nas escolas e centros culturais. Mesmo tratando-se de diversos modelos de labs, o surgimento de redes colaborativas que operam entre eles tem uma série de implicações. Referências culturais comuns mesmo em países distantes4, a circulação de pessoas afiliadas a diversos grupos e o desenvolvimento de projetos compartilhados entre labs indicam espaços de não-enquadramento que poderiam, em uma leitura otimista, superar barreiras do capitalismo informacional como a competição e a imposição do mercado como modelo único de produção de valor. De fato, no contexto dos labs a própria referência da colaboração é interpretada de maneira diversa àquela das colaborações interdisciplinares dos labs industriais como o MIT Media Lab. Em vez de mera ferramenta para chegar a algum ponto específico, a colaboração é a própria base da formação dos labs, que são construídos como estruturas híbridas que não se encaixam totalmente nos formatos institucionais vigentes. É frequente que os labs tenham extensões na internet que não coincidem com suas comunidades locais, ou que estimulem que seus integrantes sejam também afiliados a outras organizações.
Ned Rossiter sugere que os tempos atuais demandam o desenvolvimento de novos tipos de formatos institucionais para organizar as relações sociais, uma vez que ”as dinâmicas sociotécnicas peculiares a uma série de tecnologias de mídia digital (...) instituem novas formas de socialidade em rede” (ROSSITER, 2006:23). Já antecipando possíveis críticas à ideia de institucionalização de práticas típicas da rede, por conta da resistência contra as supostas ”burocratização e enrijecimento de sistemas sociotécnicos de comunicação cuja configuração padrão é em fluxos, descentralizada, horizontal, etc.” (ROSSITER, 2006:23), ele argumenta que é necessário escapar à posição de passividade, e engajar-se no processo político de disputa do território psíquico, social e semiótico das instituições. Insinua assim a possibilidade da construção crítica e da interferência efetiva na sociedade, superando a dicotomia do ativismo midiático da virada do milênio que, usando terminologia inspirada em Michel de Certeau, afirmava a tática, ”método subreptício, fragmentário e silencioso de resistência e subversão” como espaço primordial de oposição às estratégias, ”modos de agir do poder econômico, político e científico” (CAETANO, 2006:10).
Como sugerido anteriormente, ao contrário da submissão aos métodos típicos do mercado, os laboratórios experimentais por vezes opõem-se frontalmente a eles – o que certamente ocasiona problemas recorrentes de sustentabilidade, ao passo que também permite uma maior liberdade operacional. Um exemplo está no relato de Annette Wolfsberger a respeito do encontro do coletivo de artistas e programadores GOTO10 durante o Wintercamp, em 2009:
"Para concluir, o integrante do GOTO10 sublinhou algumas questões: a pesquisa/fluxo deles é justamente contrária ao design de produtos, e seus processos são frequentemente interminados. O GOTO10 se descreve como solo para semear; mais como um coletivo no cruzamento de redes do que uma rede em si, mas seja qual for a tipologia eles reforçam que uma rede não é um fim em sim mesmo, mas sim um playground." (WOLFSBERGER, 2009:111).
A menção crítica ao design de produtos é interessante à medida em que se retoma a tensão entre o protótipo e a gambiarra mencionada no terceiro capítulo. Assim, em um lab experimental a gambiarra frequentemente adquire significado mais relevante do que o protótipo: não a etapa anterior à produção industrial em série, mas o objeto experimental, por vezes classificado como obra artística, simbolicamente carregado e representativo da virtualidade de que falava Terranova. Sua existência enquanto objeto em si é, dessa forma, mais importante do que sua sugestão como produto futuro.
Existiriam maneiras de incentivar de forma intencional e continuada uma produção que proporcione caminhos de fuga de uma sociedade cujo mecanismo de reprodução é justamente a neutralização do desvio? Como evitar que a assimilação cibernética acabe por transformar todo impulso por mudança em mero elemento de exploração comercial? Se o contexto é de uma sociedade transformada em código discreto e mensurável - literalmente, codificada -, que busca desta forma atribuir valor de mercado a toda expressão social, como fazer para efetuar qualquer tipo de transformação?
Se existe um elemento presente em grande parte dos laboratórios experimentais - em especial mas não exclusivamente naqueles que operam entre o ativismo de mídia, o design crítico, a arte engajada e o desenvolvimento de tecnologia abertas e livres - é justamente o potencial da indeterminação. Quando afirmamos anteriormente nesta dissertação que "laboratório não é escola", poderíamos estender o raciocínio dizendo que o lab também não é estúdio multimídia, agência de comunicação, centro comunitário, editora, incubadora de negócios, instituição de pesquisa. Porém, o lab tem a possibilidade de assumir características de cada um desses formatos. O laboratório não é escola, mas pode ocasionalmente funcionar como escola, e assim por diante. Nessa multiplicidade de comportamentos possíveis, que em vez de estarem dados de antemão desenrolam-se somente a depender de condições que se apresentem - materiais, humanas e contextuais -, é que pode residir um exemplo da potência do improvável. Proponho analisar tais labs como espaços em branco, que trabalham ativamente para criar vazios onde o significado surge e desaparece, e assim continua sucessivamente.
Os espaços em branco, estes labs que pretendem operar futuros distintos, precisam impor a si próprios uma recusa a tudo aquilo que o sistema lhes exige: coerência, mensurabilidade, exemplos de sucesso. Em outras palavras, o sucesso dos labs como instâncias de pensamento e prática transformadoras depende justamente de sua capacidade de manterem-se como espaços sem função definida. Ainda que necessitem utilizar-se da linguagem institucional e de seus mecanismos retóricos para levar a cabo suas aspirações, devem ao mesmo tempo sabotar conscientemente - mesmo que em silêncio - estes mecanismos e linguagem. É sintomático que, em conversa que mantive com James Wallbank, coordenador do Access Space em Manchester, ele tenha justamente se recusado a pensar uma "definição" para os labs porque, afirmou, definir supõe estabelecer limites, e "o tipo de prática na qual estamos interessados não tem um fim, uma borda ou um limite".
Do ponto de vista de quem está inserido no sistema e acredita nele, os labs que adotam tal postura praticam uma espécie de auto-sabotagem ativa. É frequente que tenham dificuldades para se manterem financeiramente. Porém, segundo o raciocínio que aqui desenvolvo, tal condição não seria resultado de inabilidade, e sim uma condição inescapável de situar-se nesta fronteira. Aquilo que para um empreendedor típico poderia soar como desperdício de talentos ou de oportunidades imediatas, em um lab pode ser uma estratégia não-expressa de garantir relevância a médio ou longo prazos.
O lab experimental como espaço em branco frequentemente prescinde mesmo da existência enquanto lugar particular. O dinamismo da colaboração em rede significa que o lab pode ser constituído simplesmente por um grupo de pessoas que decidem trabalhar juntas, e a partir daí arregimentam parcerias de acordo com a necessidade de cada projeto. Por vezes opõem-se frontalmente à própria ideia do lab enquanto infraestrutura física de grande porte, como sugere Aymeric Mansoux em entrevista a Angela Plohman:
"[E]u gostaria de me referir rapidamente à ideia do lab de mídia-arte dos anos 1990. Para ser honesto, eu não sou muito afeito a esse tipo particular de lab de mídia. É uma das razões pelas quais nós começamos o coletivo GOTO10 há alguns anos. Este ’anti-lab’ estava bastante focado em uma abordagem faça-você-mesmo: ensinávamos uns aos outros e organizávamos coisas juntos. Nós queríamos evitar um lugar físico e estávamos mais interessados em colaborar com entidades especializadas que eram boas em alguma coisa. Nós não queríamos ter o tipo de espectro amplo de diferentes atividades e habilidades que a maioria dos labs e organizações de mídia-arte pareciam oferecer. O risco desses ’conglomerados’ é que você perde a flexibilidade exigida para o processo criativo, enquanto dentro de uma ’ecologia’ - uma rede de organizações especializadas com pequenos grupos de trabalho - é mais fácil desmembrar o fluxo de trabalho e ser criativo com a colaboração em si." (PLOHMAN, 2011:253)
Parte dessa suposta irrelevância do espaço físico pode também ser atribuída à disseminação de equipamentos portáteis e de conectividade sem fios. Para Annett Dekker, este fato também impõe diferenças para a maneira como os labs se organizam em relação aos labs institucionais de há alguns anos:
"Caitlin Jones (diretora do Western Front em Vancouver) percebeu uma mudança do estúdio de artista para espaços de trabalho colaborativos, para o estúdio de laptop e o estúdio em rede - os dois últimos talvez assinalando o fim do programa de residência artística como o conhecemos. (...) [O] estúdio de laptop existe em uma rede de outros estúdios de laptop, mudando a experiência de estúdio de um lugar fixo para um mais dinâmico." (DEKKER, 2011:317)
Ainda assim, seria precipitado afirmar a irrelevância do espaço ou do encontro presencial. Na verdade, as possibilidades de articulação através da internet e da produção totalmente distribuída podem sugerir uma importância ainda maior ao momento do encontro e à relação com os diferentes locais onde ele pode ocorrer. Labs experimentais, operando em rede, constituem por um lado nodos locais ligados a um cenário internacional que compartilha realizações e, frequentemente, os esquemas técnicos e conceituais que possibilitam tais realizações - dialogando com as ideias de conhecimento aberto e livre. Até mesmo os modelos de produção, os formatos de trabalho, as metodologias de governança são ativamente reinventados em cada lugar a partir das contribuições de outros labs. Construções coletivas como os festivais itinerantes Labsurlab em diferentes países da América Latina, a plataforma Rede//Labs - com cuja criação eu estive pessoalmente envolvido - e eventos em várias cidades como o Labtolab e o Summerlab, na Europa, são espaços de circulação de pessoas e ideias entre labs.
Por outro lado, situado na cidade, cada lab dialoga ativamente com seu entorno, conectando de fato os fluxos das redes online às dinâmicas próprias de cada local. São, nesse sentido, mais interfaces do que lugares com função determinada, e sua relevância potencial no contexto urbano é ainda maior, à medida em que se constróem de forma articulada com questões próprias de cada localidade. Arranjos experimentais, nesse sentido, podem funcionar como espaços de resistência a processos como a gentrificação e a privatização do espaço público5.
No limite, o lab pode assumir o papel de interferir de maneira incisiva em processos culturais, técnicos e políticos dentro da cidade. Nesse sentido, o lab seria menos um lugar ou arranjo institucional definido do que uma postura de questionamento, orientada à produção do comum. A esse respeito, Horst Hörtner (2010), criador do Future Lab de Linz, comenta que se o lab de arte-mídia surgiu em meados dos anos noventa como provedor de infraestrutura para artistas nômades que mudavam-se de um programa de residência artística para outro, hoje em dia seu sentido seria outro.
"(...) a mídia-arte, o design de mídia, a criação de novas tecnologias de mídia - em resumo, a produção de mídia - acontece cada vez mais longe desses oásis, não porque o lab não seja mais um lugar atrativo, mas porque o espaço entre os oásis agora também está sendo pavimentado com uma infraestrutura apropriada. Conexões de banda larga com o consequente poder computacional de múltiplos computadores de grande porte, bem como as instalações para o processamento de mídia e acesso remoto ilimitado para especialistas de labs através de ferramentas de comunicação elaboradas - finalmente, são todos propriedade comum.” (HÖRTNER, 2010:108)
É difícil concordar com a última frase de Hörtner. No exemplo da transição de hacklabs para hackerspaces, o que se vê é justamente o contrário: a infraestrutura comum e acessível à população daqueles foi substituída pelas portas fechadas destes, para cuja manutenção usualmente os frequentadores precisam pagar mensalidades em dinheiro. Entretanto, por detrás da argumentação de Hörtner percebe-se o momento em que a indeterminação toma os labs de assalto. Se o lab supostamente existia em função da necessidade por infraestrutura e hoje essa infraestrutura está dada, o que acontece? O acúmulo de experiências, conceitos e produções dos laboratórios não é assimilável pela simples pulverização do acesso a equipamentos e rede. Pode-se passar a questionar: talvez, enfim, o lab não servisse simplesmente para oferecer acesso. Quais foram as outras coisas que se realizaram naqueles lugares que acabaram por adquirir uma importância, ou ao menos uma curiosidade, inesperadas? Essa inversão de perspectivas, em vez de esvaziar de significado o laboratório experimental, inunda-o de vazio prestes a ser ocupado. Shanken afirma que os labs do futuro precisam lançar-se ousadamente nos buracos negros de vácuo, “permitindo que o imprevisto emerja em seu opulento nada” (SHANKEN, 2010:30). A busca do vazio, de tornar-se espaço intencionalmente mantido em branco, surge assim como caminho relevante para labs experimentais. De um lado como fonte de contínuo questionamento a fomentar criatividade aplicada, e de outro como maneira de escapar à captura cibernética.
O surgimento e desenvolvimento de algo que ao menos por algum tempo foi chamado de cultura digital brasileira pode tem alguns pontos de contato com a ideia de laboratórios experimentais como espaços em branco. Uma característica importante da ação Cultura Digital desenvolvida dentro do programa Cultura Viva foi justamente que propunha um tipo de construção que não havia sido tentada em nenhum lugar do mundo, ao menos não naquela escala. Eram inicialmente centenas de Pontos de Cultura, selecionados não pelo que tinham em comum mas pelo contrário como supostos representantes da diversidade cultural brasileira. Cada um daqueles espaços era tratado como uma instância transformadora em potencial, cuja voz precisava não de adestramento mas sim expansão. Para conectar os Pontos, desenhou-se uma metodologia que utilizava a internet como veículo para uma comunicação descentralizada. Foi proposta a utilização de softwares livres não somente como maneira de economizar recursos, mas também como afirmação política de autonomia. Junto ao software livre, foram ainda trabalhados valores de solidariedade e colaboração, refletidos nas oficinas de "generosidade intelectual" que defendiam o compartilhamento da produção cultural com licenças livres (FOINA; FONSECA; FREIRE, 2005).
Não existiam experiências anteriores que aliassem, como aquela, uma política pública estatal de grande escala a uma postura alinhada à cultura hacker em termos conceituais e de prática cotidiana. Essa característica operou de diversas formas: por um lado atraiu a colaboração de dezenas de pessoas ligadas a formas diversas de ativismo midiático e cultural. Funcionou também como um projeto experimental em si: incorporando as contribuições de pessoas que tinham conhecimento de causa, foi desenvolvida em curto espaço de tempo uma política pública de inclusão digital articulada com diversidade cultural e experimentação estética e técnica. A rede de pessoas que construiu e implementou a cultura digital, dessa forma, ou operava um espaço em branco inserido em um contexto institucional atípico, ou então engendrou a formação de diversos espaços em branco nos quais uma série de experimentações, desvios e escapes tiveram lugar.
É precisamente por conta deste legado que seria irresponsável pensar hoje em laboratórios de arte e tecnologia ignorando aquilo que chamei aqui de cultura digital brasileira, tratada em seus dois movimentos - compensatório e exploratório. Pode-se inclusive sugerir o inverso: que o ponto de partida para pensar em labs que sejam relevantes hoje não seja aquilo que se entende por laboratórios de acordo com suas manifestações no restante do mundo, para depois buscar replicá-los por aqui. Pelo contrário, sugiro uma tangente da discussão sobre como desenvolveu-se em particular a cultura digital brasileira e de que forma dialogava com outras questões da sociedade de então. Expandindo essa relação ao limite, veremos surgir a relevância de criarem-se de espaços intencionalmente deixados em branco. Chamá-los de laboratórios seria antes uma ação de disputa de significado e ocupação do que seja o imaginário do experimental do que uma conformação a uma narrativa histórica linear. Neste sentido, mais importante do que especificar listas de equipamentos, grade de horários, definição de equipe e disposição espacial de mobiliário é pensar e pôr em prática metodologias efetivas de articulação em rede, engajamento, abertura, inclusão e desconstrução. Além disso, faz-se necessário incorporar uma estratégia deliberada de sabotagem de expectativas da sociedade cibernética e do capitalismo informacional. Evitar a profissionalização, a mercadização ou a institucionalização do lab e interpretá-lo sempre como espaço intencionalmente deixado em branco é insistir, talvez quixotescamente, que futuros melhores são possíveis.
1A conexão com a cultura hacker é explícita: Bruce Sterling, nome fundamental tanto como autor ciberpunk quanto no papel de articulador do ciberpunk como movimento literário, também escreveu The Hacker Crackdown, uma investigação jornalística sobre a cultura hacker e a repressão a ela por agências de segurança estadunidenses ao longo dos anos oitenta.
2Website disponível em http://www.solveforx.com/ (acessado em 11/02/2014).
3Palestra disponível na íntegra no website https://www.youtube.com/watch?v=TE0n_5qPmRM (acessado em 11/02/2014).
4Como relatado superficialmente no capítulo anterior a respeito de minha visita ao Koelse, em Helsinque.
5Experiências como o Lab de Cartografias Insurgentes, realizado no Rio de Janeiro em 2011 (https://cartografiasinsurgentes.wordpress.com/, acessado em 25/02/2014), adotam este posicionamento de forma explícita.
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