Labs no Mundo

3 Labs no Mundo

Em março de 2010, às vésperas da realização de mais uma edição do festival Pixelache1 em Helsinque, o então Diretor Artístico do festival Juha Huuskonen publicou no blog do evento o seguinte post:

"Os labs estão de volta! Parece haver um renascimento dos laboratórios experimentais de mídia acontecendo no momento. Enquanto alguns dos grandes fecharam suas portas durante os últimos anos (IVREA, Media Lab Europe, Interactive Institute), os pequenos estão florescendo - o Kitchen Budapest produziu uma quantidade impressionante de trabalhos em poucos anos, FabLabs estão sendo abertos por todo o mundo (nossos amigos em Ghent [Bélgica] acabaram de abrir um), Hackerspaces também (existe agora um em Helsinque), os Baltan Laboratories acabaram de organizar o seminário ’The Future of the Lab’ e a rede LABtoLAB acaba de começar suas atividades."2

O que são estes laboratórios, e o que significa esse suposto retorno? O que haveria de comum entre os diferentes labs enumerados por Huuskonen? Ele menciona desde instituições corporativas até laboratórios mantidos por artistas, passando também por formatos como os hackerspaces e os Fablabs. Para além da diferença de escala - labs "grandes" e "pequenos" -, o post também sugere, nas entrelinhas, uma diversidade de visões de mundo e modelos de atuação. Entre as organizações citadas, por exemplo, estava o Media Lab Europe, que funcionou por poucos anos em Dublin (Irlanda). O Media Lab Europe tentava importar à Europa o modelo de funcionamento do Media Lab do MIT, nos Estados Unidos. O encerramento de suas atividades foi atribuído a uma série de fatores, incluindo a crise financeira internacional de 2008. Mas a verdade é que mesmo antes da crise, o Media Lab Europe nunca chegou a produzir muito de significativo em seus supostos campos de atuação - inovação, tecnologia e design. Existiriam também diferenças sociais e culturais que impossibilitavam a transposição de um modelo de laboratório estadunidense ao contexto europeu?

Outro elemento importante no post de Huuskonen é o adjetivo que atribui aos laboratórios então em crescimento: "experimentais". Como referido no capítulo anterior, o experimental pode ser interpretado como um instrumento de problematização de questões contemporâneas. Estaria assim situado em oposição tanto a uma visão de mero atendimento de necessidades quanto a uma de mera observação. Andrés Fonseca contrapõe a imagem de laboratório à do observatório. Este se caracterizaria pela posição de observação de temáticas sociais para registrar uma série de comportamentos e práticas e eventualmente propor soluções concretas. Já o laboratório "nos situa necessariamente em dinâmicas de produção coletiva e inovadora da realidade, mais do que nas lógicas de registro e análise em si. O laboratório, portanto, remete ao design, à experimentação e à colaboração" (FONSECA A., 2012, p.61).

Desde o post de Huuskonen, o número de espaços ou grupos que se intitulam laboratórios ou similares (media labs, hackerspaces, fablabs, hubs, etc.) continuou crescendo exponencialmente em todos os continentes. O mapa internacional de hackerspaces3 lista cerca de 500 deles (contando somente os declarados "ativos"). O mapa de Fablabs4 lista outros 258 espaços. O website Afrilabs aponta 20 labs e hubs de inovação somente no continente africano5. Aqui no Brasil, como citado no capítulo anterior, estive pessoalmente engajado em encontros dedicados a discutir e articular laboratórios de cultura digital experimental. Diversas instituições acadêmicas e culturais têm aberto espaço para a criação de laboratórios experimentais, de mídia e inovação. Além dos espaços físicos, inúmeras ações temporárias no mundo inteiro utilizam-se da imagem do laboratório para classificar algumas de suas ações - de oficinas abertas a intervenções públicas, passando por projetos com variados níveis de complexidade conceitual ou tecnológica.

Afirmar que "os labs estão voltando", entretanto, sugere que exista uma história comum em meio à diversidade de formatos de trabalho e configurações institucionais possíveis. Esta perspectiva usualmente articula os arranjos experimentais atuais como expoentes de uma linha narrativa singular que envolveu diversas colaborações transdisciplinares entre arte e tecnologia, ou entre cultura e ciência, ao longo das últimas décadas. Neste capítulo exploro nuances desta narrativa, propondo que não se trata de uma história única mas de diversas vertentes que, se têm naturalmente muitos pontos de cruzamento, apresentam também algumas diferenças marcantes. Minha intenção ao voltar os olhos para tais diferenças é criticar uma visão triunfalista e determinista acerca do lugar do desenvolvimento de novas tecnologias e de seus usos na sociedade. Apontando tensões e conflitos presentes nessa história, creio ser possível entender melhor algumas das dinâmicas presentes em tais desenvolvimentos.

Interessa-me inicialmente registrar a oposição percebida por diferentes atores envolvidos com áreas afins entre, por um lado, uma atuação supostamente mais típica de projetos estadunidenses ou por eles influenciados, voltadas ao empreendedorismo de mercado, e de outro lado aquela expressa por projetos europeus e outros sob sua influência que assumem um posicionamento político mais explícito. Mesmo entendendo que tais posturas não são absolutas ou invariáveis, me interessa entender como esses discursos aparecem e se desenvolvem dentro das práticas dos assim chamados laboratórios experimentais.

Para analisar esta cisão, começo relatando um momento em que ela ficou particularmente explícita, há cerca de uma década, aqui no Brasil. Em seguida, volto mais algumas décadas para traçar algumas linhas de colaborações interdisciplinares e modelos de atuação que influenciaram o desenvolvimento de labs experimentais. Por fim, falo sobre alguns formatos de labs sendo desenvolvidos nos dias de hoje.

3.1 Hippies e Punks

Março de 2003, unidade Avenida Paulista do SESC. Corria a sessão de abertura do festival Mídia Tática Brasil. Ao centro sentava-se Gilberto Gil, moderador daquele painel e ainda cumprindo seus primeiros meses como Ministro da Cultura do Brasil. A fala inicial de Gil dava indícios de caminhos que seriam efetivamente seguidos por sua gestão à frente do Ministério nos anos seguintes: reconhecia as tecnologias de informação e comunicação não somente como ferramentas de produção mas essencialmente como fazer cultural contemporâneo, além de importantes instrumentos para a valorização e integração da diversidade cultural.

"Antes mundo era pequeno porque terra era grande. Hoje mundo é muito grande porque terra é pequena. (...) Esses versos (...) ainda resumem meus pensamentos sobre a nova visão do mundo. A antena não é apenas parabólica. Ela tem a ressonância de uma cabaça de berimbau, uma cabaça parabólica que poderia simbolizar a utopia digital brasileira. Seria mera utopia? A cultura luta com a técnica, mas tudo com a graça de um jogo de capoeira onde a briga e a diversão, a amizade e a rivalidade se confundem." (MOREIRA, 2003)

Além de posicionar-se frente à contemporaneidade com sua usual veia antropofágica, Gil também poderia estar sugerindo com a ambiguidade da capoeira a busca de conciliação em meio à tensão explícita entre dois integrantes daquela mesa. À sua direita sentava-se John Perry Barlow, da EFF - Electronic Frontier Foundation. Do outro lado, o então coordenador do centro de pesquisa em hipermídia da Universidade de Westminster, Richard Barbrook. O debate, cujo tema era inclusão digital, contava ainda com a presença de representantes de outras instituições, projetos e poder público. Mas foram as posições antagônicas dos dois convidados estrangeiros que praticamente monopolizaram o debate da noite, como relatado à época pelo jornalista Alexandre Matias6, que definiu o episódio como "histórico".

Em sua fala, Barlow - letrista da banda de rock The Grateful Dead que nos anos noventa tornou-se ativista da cultura digital - definia a si mesmo como um "velho hippie" estadunidense. Contrapunha-se assim a Barbrook, que seria, também nas palavras de Barlow, "um punk" britânico. A aparente brincadeira reflete diferenças reais e profundas. A EFF, organização fundada por Barlow com o desenvolvedor de software Mitch Kapor, evoca no próprio nome ("frontier") a conquista do oeste estadunidense, sugerindo a exploração - ou colonização? - de espaços anteriormente desabitados. Barlow é também autor da "Declaração de Independência do Ciberespaço"7, manifesto que afirma o "ciberespaço" como realidade autônoma, separada da realidade - e ainda inexplorada -, em relação ao qual os "Governos do Mundo Industrial" não teriam soberania. Atribuía às novas tecnologias, assim, o papel de motores de uma profunda transformação social. Fred Turner (TURNER, 2006, p. 13) afirma que, com a Declaração, Barlow afirmava que as tecnologias se haviam transformado de símbolos da alienação burocrática em ferramentas para derrotar as próprias alienação e burocracia.

Afirmando-se um hippie, Barlow reafirma o discurso de grupos da contracultura estadunidense que entre os anos sessenta e setenta do século passado tentaram criar comunidades alternativas supostamente independentes do restante da sociedade. Aqueles grupos, que viam na californiana São Francisco uma Meca, exerceram forte influência sobre a cultura de uma região na qual à mesma época se consolidava uma área do conhecimento e da economia que nas décadas seguintes tomaria o mundo. Trata-se da indústria da tecnologia de informação, no chamado "Vale do Silício". Naquele contexto, tanto hippies quanto as pessoas envolvidas com computadores lançavam mão de ideias de autores como Marshall McLuhan propagando a utopia de um mundo sem atrito, a chamada "aldeia global" mediada pelos meios de comunicação eletrônica.

Já Richard Barbrook trazia à mesa outro conjunto de referências. Envolvido com o movimento punk e as rádios livres na Inglaterra dos anos oitenta, Barbrook escreveu com Andy Cameron "A Ideologia Californiana", uma crítica especialmente direcionada ao empreendedorismo "pontocom" de meados dos anos noventa. Barbrook e Cameron viam naquele cenário a consolidação de um discurso que aproximava argumentos usualmente ligados ao pensamento da esquerda a posicionamentos típicos dos setores conservadores da sociedade. Por exemplo, falava-se na substituição do capitalismo corporativo por uma economia da dádiva, na qual as pessoas se organizariam de maneira colaborativa em torno de objetivos comuns; ao mesmo tempo em que se pregava o liberalismo econômico, com um estado mínimo e a imposição da lógica de mercado segundo a qual o valor financeiro é a única medida de sucesso, além do estímulo à competição comercial como único caminho de desenvolvimento econômico e incentivo à inovação. O texto de Barbrook e Cameron acusa que sobre o entendimento público a respeito de tecnologias de informação na Europa dos anos noventa recai forte influência de um imaginário estadunidense, baseado em premissas falsas - como o mito de que a Internet foi desenvolvida principalmente pelo setor privado. Sugerem que "os engenheiros-artistas europeus devem construir um ciberespaço inclusivo e universal. Agora é a hora para o renascimento da Modernidade" (BARBROOK; CAMERON, 1995). Ainda que critiquem a suposta versão da direita política estadunidense para a história da internet, Barbrook e Cameron concordam com a importância da colaboração interdisciplinar (daí o "engenheiro-artista") e propõem uma visão utópica alternativa, ainda depositando esperanças no papel das tecnologias para o bem da sociedade. É justamente neste espaço - da fronteira entre disciplinas apontando para futuros melhores - que também se havia construído a imagem pública do Media Lab do MIT, que como veremos a seguir pode ser paradoxalmente uma das maiores expressões daquilo que Barbrook e Cameron criticavam8.

 

3.2 Cibernética e o MIT Media Lab

Em se tratando de organizações dedicadas à pesquisa transdisciplinar voltada ao desenvolvimento de novas tecnologias que articulam cultura e ciência, uma das referências mais conhecidas internacionalmente é o Media Lab, laboratório de mídia do MIT, universidade estadunidense localizada em Massachusetts. Encabeçado durante anos por Nicholas Negroponte9, o Media Lab notabilizou-se não somente pela quantidade de patentes registradas como também por sua presença midiática. É publicamente considerado uma referência internacional sobre inovação e conhecimento aplicado, e seus diretores e coordenadores costumam ter bastante espaço na imprensa. De fato, como veremos mais para a frente, o Media Lab tem uma ligação íntima com a Wired, revista com profunda influência sobre o tom e os formatos adotados pela mídia especializada em tecnologia e negócios no mundo inteiro10.

As bases que haviam dado origem ao Media Lab confundem-se com o desenvolvimento da própria cibernética enquanto área do conhecimento, ao longo da segunda metade do século XX. O escocês Charlie Stross é um autor de ficção científica que se orgulha de conhecer bastante sobre computadores, seus usos e sua história. Stross publicou há alguns anos um relato sobre a visita que fez ao Media Lab. Nele, sugere uma linha histórica partindo dos primórdios da cibernética em meio à Segunda Guerra Mundial, quando nomes como Alan Turing e Norbert Wiener participavam de projetos de pesquisa transdisciplinar, e que um dia levariam ao Media Lab:

"(...) durante a era pós-guerra, muitos laboratórios de pesquisa acadêmicos (e patrocinados comercialmente) levaram o campo em frente: a Universidade de Manchester foi pioneira na computação civil no Reino Unido, Xerox PARC na Califórnia inventou a impressora a laser, a interface gráfica de usuário e as redes ethernet em um período de meros cinco anos, e IBM e Bell Labs entre elas parecem ter inventado tudo desde os discos rígidos até o [sistema operacional] UNIX (e muito mais).

Todas estas instituições tinham algumas características em comum. Os pesquisadores estavam sob pressão de prazos ou pressão financeira (indireta). Havia uma forte ênfase em pesquisa aplicada combinada a excelência acadêmica - não simples design de produtos ou estudos teóricos em torres de marfim, mas pesquisa sobre como melhor aplicar teorias de vanguarda para problemas correntes. E agregando uma massa crítica de pessoas brilhantes, altamente motivadas e encorajando-as a falar livremente (...), elas se fertilizavam de maneira cruzada.

E então existe o Media Lab no MIT (o Instituto de Tecnologia de Massachusetts). O Media Lab não é um departamento ordinário de ciência da computação, e não somente porque foi fundado por um arquiteto. De fato, tentar listar tudo o que o Media Lab é em menos de uma página ou três é quase impossível - em 1997 Stewart Brand começou a escrever um artigo sobre ele e acabou com um livro." (STROSS).

A menção a Stewart Brand está longe de ser casual. Brand foi fundador do Whole Earth Catalog, um catálogo impresso de "acesso a ferramentas" publicado regularmente entre 1968 e 1972, referência da contracultura estadunidense de então. Partindo da Califórnia - na qual à mesma época computadores e afins eram desenvolvidos em lugares como o Xerox PARC mencionado acima por Stross -, a contracultura espalhou-se por todo o país e pelo mundo. Parte do imaginário compartilhado entre a contracultura e os desenvolvedores de tecnologia foi levada na bagagem. Em 1985, Brand criou com Larry Brilliant o Well, um BBS11que posteriormente se tornaria uma ativa comunidade online na internet. Em 1986, um ano antes de publicar o livro mencionado por Stross, Brand era pesquisador visitante no Media Lab. Em 1993, foi um dos fundadores da já mencionada revista Wired, um dos principais meios de propagação daquilo que Barbrook chamaria de ideologia californiana. O primeiro investidor da Wired foi Nicholas Negroponte.

A trajetória de Brand, partindo do coração da contracultura hippie dos anos sessenta para tornar-se organizador de conferências para empresas multinacionais nos anos noventa12, é representativa da inversão de postura política apontada por Barbrook. Ela explicita também a conexão íntima existente entre a contracultura hippie e a cultura hacker surgida ao longo das décadas de setenta e oitenta, à medida em que as tecnologias tornavam-se mais acessíveis - em especial com a criação dos microcomputadores. Empresários célebres do Vale do Silício como Steve Jobs (que foi fundador e presidente de empresas de tecnologia como a Pixar e a Apple) estiveram ligados a ambos os mundos: um pioneiro da microinformática e homem de negócios, Jobs confessou haver tomado LSD na Califórnia dos anos sessenta.

Mas esta história não começou com a contracultura. Precisamos voltar ainda mais algumas décadas, até a Segunda Guerra mundial. Fred Turner situa nos anos quarenta do século XX uma transformação na ciência estadunidense. Segundo ele, "antes da guerra, a ciência e os cientistas pareciam situar-se fora da política. (...) [Eles] mantinham uma distinção clara entre a ciência e a engenharia, e entre pesquisa militar e civil" (TURNER, 2006, p. 17). Mas isso mudaria durante a Segunda Guerra. Foi Vannevar Bush quem convenceu em 1940 o então presidente estadunidense Franklin Roosevelt a financiar instituições civis de pesquisa com dinheiro voltado a fins militares. Bush havia sido professor e administrador do MIT, e ficou no comando desse orçamento (TURNER, 2006, p. 18). A necessidade de tecnologias para a guerra ofereceu um propósito concreto e vultosos recursos para diversos projetos. Foi naquele contexto que começaram a ser estruturados laboratórios interdisciplinares nos quais especialistas em diversas áreas eram instados a trabalhar em torno de objetivos em comum.

"Um dos laboratórios mais efetivos e visíveis da guerra era o Radiation Laboratory do MIT. Fundado no fim de 1950 com um financiamento de meio milhão de dólares do NDRC, o Rad Lab, como era comumente conhecido, objetivava desenvolver maneiras mais eficientes de rastrear e abater os bombardeiros que então infestavam a Grã-Bretanha. (...) Antes de ser fechado no fim da guerra, o laboratório tinha o apoio de financiadores governamentais, clientes militares, prestadores de serviços industriais (...). Ao longo dos vinte anos seguintes, engenheiros e administradores associados ao Rad Lab e ao MIT durante a guerra assumiriam papéis chave em uma diversidade de iniciativas de pesquisa patrocinadas pelo Departamento de Defesa." (TURNER, 2006, p. 19)

Com a pressão de tempo e a necessidade de respostas inovadoras que atravessassem diversos campos do conhecimento, novas formas de trabalho tinham campo livre para se desenvolverem. O Rad Lab era gerenciado de maneira não-hierárquica, com um regime de trabalho flexível e colaborativo. Reunia cientistas, engenheiros, matemáticos, designers e planejadores governamentais e militares. Seus integrantes eram estimulados a empreender e buscar auxílio de colegas com outras especialidades. A maneira como os projetos eram desenvolvidos no MIT influenciou diretamente o desenvolvimento do campo da cibernética em si:

"[O matemático Norbert] Wiener não criou do nada a disciplina da cibernética; pelo contrário, ele agrupou seus termos analíticos criando pontes entre múltiplas comunidades científicas anteriormente segregadas. (...) Wiener podia reunir peças de fontes tão diversas porque ele estava em contato colaborativo constante com representantes de cada um desses domínios no Rad Lab, em suas famosas caminhadas pelos corredores do MIT, e em seus períodos na Escola Médica de Harvard. Durante essas peregrinações, ele discutia fisiologia com Arturo Rosenblueth, feedback com os engenheiros do Rad Lab e, muito provavelmente, comportamento humano com ambos.(...) [A] retórica da cibernética foi produto de trabalho empreendedor interdisciplinar." (TURNER, p. 24-25)

Turner aponta que a migração da cibernética para as ciências sociais e, em certa medida, as físicas e biológicas, deve-se às Macy Conferences, encontros de intelectuais realizados em Nova Iorque entre 1946 e 1953. Desenvolvendo, compartilhando e expandindo a cibernética, elas ajudaram a transformar o campo em um dos paradigmas intelectuais dominantes do pós-guerra. Também contribuíram decisivamente para que as ideias da cibernética fossem incorporadas ao imaginário social da época.

Barbrook (BARBROOK, 2009, p. 44) aponta a Exposição Mundial de Nova Iorque em 1964 como momento em que "a ficção científica viu-se transformada em fato científico", criando o que ele chama de "futuro imaginário": uma projeção de futuro centrada em uma visão de mundo que se tornaria importante instrumento ideológico para assegurar a manutenção da hegemonia estadunidense sobre o mundo. Na exposição mundial, isso se dava particularmente com a celebração do computador e da inteligência artificial. Tais desenvolvimentos seriam tributários diretos dos desenvolvimentos interdisciplinares do pós-guerra, aí incluídas as Macy Conferences.

Em entrevista a Annet Dekker, Edward Shanken afirma que "a cibernética foi fundamentalmente interdisciplinar desde sua origem. Seus conceitos subjacentes - loops de feedback, homeostase e a ideia de controle e comunicação - permitiram que se traçassem paralelos entre biologia e engenharia, animais e máquinas. A teoria da informação oferecia uma linguagem comum - simultaneamente técnica e metafórica - para que várias disciplinas se comunicassem umas com as outras" (DEKKER; SHANKEN, p.86).

A colaboração transdisciplinar tornou-se assim um paradigma de produção inovadora que permanece influente hoje, muitas décadas após o fim daquela guerra. Este formato de trabalho passou a estender-se também a campos que aparentemente nada tinham a ver com a indústria da guerra, como a Universidade. Entre as diversas consequências indiretas deste tipo de ambiente inovador e colaborativo pode-se citar o surgimento da já mencionada cultura hacker, que apesar de inicialmente orbitar as estruturas universitárias acabou gerando frutos autônomos - como demonstram o surgimento dos microcomputadores nos anos setenta e do software livre nos oitenta. Por sinal, Richard Stallman13, criador do projeto GNU e da Free Software Foundation, era um programador no departamento de Inteligência Artificial no MIT.

Instituições mais antigas dedicadas à inovação para a indústria também ganharam ainda mais espaço com a emergência das tecnologias de informação. Nos Bell Labs, subordinados à AT&T (corporação telefônica estadunidense), foram realizadas experiências importantes de colaboração entre arte e tecnologia. Shanken recorda que os Bell Labs, criados no final do século XIX pelo inventor e empreendedor Alexander Graham Bell, eram uma das mais importantes instituições de pesquisa dos EUA. Foram responsáveis pela criação do transistor, do laser e da teoria da informação. A lista de conquistas dos Bell Labs incluía ainda sete prêmios Nobel. Além disso, avanços nas tecnologias de informação como o sistema operacional UNIX se somavam a novas possibilidades, à medida em que artistas eram convidados a trabalhar com os engenheiros dos Bell Labs:

"Os Bell Labs eram também o lugar onde trabalhos pioneiros com música computadorizada, computação gráfica e animação computadorizada se desenvolveram, em grande medida sob os auspícios de John Pierce (...). Conhecido como o ’pai do satélite de comunicações’, Pierce também supervisionou a equipe que inventou o transistor, um termo que ele criou. (...) Em 1961, Pierce trouxe o compositor James Tenney para os Bell Labs como artista em residência. (...) Após trabalhar com artistas como Jean Tinguely, Jasper Johns e Robert Rauschenberg desde 1960, o engenheiro do Bell Labs Billy Klüver recebeu aprovação de Pierce para autorizar sua equipe a colaborar com artistas na produção de um evento hoje famoso, ’9 evenings: theatre and engineering’, que aconteceu em Nova Iorque em 1966. Àquela época, arte e engenharia eram campos muito mais autônomos do que hoje. Não haveria nenhuma razão profissional ou cultural para que artistas e engenheiros se encontrassem, e ainda menos para que trabalhassem juntos. (...) Foi neste contexto que Klüver estruturou 9 evenings como uma ’tentativa deliberada de artistas descobrirem se era possível trabalhar com engenheiros’." (SHANKEN, 2010, p.24)

Ainda segundo Shanken, apesar da repercussão negativa na crítica artística, o projeto 9 evenings contribuiria fundamentalmente para legitimar a ideia de colaborações entre arte e tecnologia. Teria sido responsável também pela criação da organização sem fins lucrativos Experiments in Art and Technology (E.A.T.), que quase meio século depois continua sendo inspiração e referência. Para Ryan Shaw, "o exemplo da E.A.T. foi seguido por inúmeras organizações públicas e particulares em todo o mundo durante os anos oitenta e noventa, incluindo nos Estados Unidos o Media Lab do MIT, o Xerox PARC, e o Interval Research". (SHAW)

O Media Lab do MIT abriu suas portas em 1985. Durante as décadas seguintes, construiu a reputação de centro de excelência em inovação tecnológica - uma reputação que se expande para muito além de seus campos de atuação. Contribuem para isso uma série de fatores. Entre eles, o relacionamento íntimo com grandes corporações e agências governamentais, especialmente militares, que garantem um grande volume de recursos para pesquisa - sem dúvida legado das décadas de prestação de serviços do MIT à indústria e o governo de seu país. Seu website14 afirma que o MIT Media Lab é financiado por cerca de 80 membros, incluindo algumas das maiores empresas do mundo e organizações governamentais, que garantem em conjunto recursos operacionais de cerca de 35 milhões de dólares anuais. Outros elementos que garantem o reconhecimento do Media Lab são sua presença constante na mídia, a começar pela revista Wired cuja história está entrelaçada a ele, como vimos na figura de Stewart Brand; e as figuras públicas de seus fundadores, em especial Nicholas Negroponte. Naturalmente, o objeto de grande parte da divulgação do Media Lab é o número de patentes registradas. São cerca de 350 projetos, muitos deles tendo resultado em produtos e tecnologias usadas cotidianamente no mundo todo. Ao longo de sua história, o Media Lab sempre teve alguns projetos que serviam como vitrine - da computação vestível ao laptop de cem dólares - que mesmo que não tenham resultado em soluções efetivas para problemas particulares serviram para estimular o debate público sobre inovação, tecnologias e cultura.

Durante os anos noventa, a ideia de "media lab" se espalharia. Negroponte publicou em 1995 um livro que - adotando uma visão claramente tecnoutópica - pegou carona no crescimento exponencial da internet comercial (e na imprensa especializada em tecnologia, frequentemente espelhada na revista Wired) e acabou por influenciar diversos contextos acadêmicos e artísticos. O livro, publicado no Brasil sob o título "a vida digital" - mas cujo título original era "being digital" - era uma compilação de artigos que Negroponte havia publicado anteriormente na Wired. Neles, defendia uma divisão algo maniqueísta do mundo entre "átomos" e "bits", que define tudo que é analógico como ultrapassado, enquanto o digital representaria sempre o futuro. Encaixava como uma luva para a movimentação do mercado em torno da chamada "nova economia" - em grande medida uma bolha especulativa que acabaria por estourar em meados de 1999, mas que nos anos anteriores estava em plena expansão. O livro foi exaustivamente citado à época como uma das obras de referência para entender a internet, de acordo com o jornalismo especializado em tecnologia - que como comentado anteriormente tem o costume de repercutir de maneira acrítica o discurso da inovação comercial. 15 Independente da validade de suas teses, entretanto, Negroponte tornou-se conhecido no mundo inteiro e carregou junto a reputação do Media Lab.

 

3.3 Labs comunitários, hacklabs e hackerspaces

Ainda que na esteira da tal nova economia o Media Lab do MIT tenha tentado sem sucesso replicar seu próprio modelo em outras partes do mundo (tanto o Media Lab Asia na Índia quanto o já citado Media Lab Europe na Irlanda encerraram operações após poucos anos de atuação, sem deixar grande legado), outros centros de pesquisa interessados em novas tecnologias passaram também a identificar-se como laboratórios de mídia. É particularmente digna de nota neste contexto a multiplicação de iniciativas focadas na fronteira entre arte e tecnologia, retomando e renovando a aproximação entre engenheiros e artistas que havia sido apontada pelo projeto 9 evenings nos Estados Unidos. Não parece coincidência que diversos projetos que investigavam a relação entre arte e tecnologias de informação tenham passado a usar o termo media lab para legitimar suas atividades mais experimentais, difíceis de enquadrar em outros tipos de pesquisa. Essa construção de legitimidade, a busca de inserção nos mecanismos institucionais, era um objeto de desejo em meados dos anos noventa. Em 1997, uma série de organizações e grupos de diferentes países europeus participaram do encontro P2P - from practice to policy. Realizado em Amsterdam pelos holandeses Waag Institute for Old and New Media e V2 Institute for the Unstable Media, o P2P teve como resultado a Agenda de Amsterdam, uma declaração coletiva que afirmava que "a pesquisa relevante sobre os novos meios de comunicação não se origina nos laboratórios de grandes empresas e universidades, mas entre artistas, designers e pesquisadores independentes em um processo criativo, crítico e multidisciplinar que atravessa a arte e a ciência atual" (ALÉ, 2011).

Na própria Holanda, a Agenda de Amsterdam engendraria a criação do Virtueel Platform, uma organização que se situava como intermediário entre as instâncias governamentais e os diferentes labs de mídia que então surgiam e se estabeleciam. Inspirados pelo que então consideravam uma bem-sucedida maneira de criar espaços de debate crítico e produção de mídia tática, integrantes do Instituto Waag ajudaram a criar um lab de mídia em Nova Déli, na Índia. O lab chamava-se Sarai, e ao longo da primeira década do século XXI seria, dentro do contexto dos labs de mídia, um dos espaços mais férteis de cooperação global sobre novas mídias. 16

A propósito da disseminação de labs de mídia, Atau Tanaka (TANAKA, 2011, p. 14-15) sugere que existam atualmente diferentes categorias deles: labs industriais ligados a corporações de tecnologia (inspirados em laboratórios de pesquisa como os Bell Labs), labs de artemídia (centros como o austríaco Futurelab em Linz, ligado ao festival Ars Electronica, ou o ZKM em Karlsruhe, na Alemanha), labs universitários diretamente inspirados no próprio MIT Media Lab (como o Media Lab da Universidade Aalto de Helsinque), e por fim aqueles que define como laboratórios comunitários (como o Medialab Prado de Madri e o Kitchen Budapest - também conhecido como KiBu - na Hungria). É uma classificação algo limitada, visto que muitos modelos em atuação não cabem em nenhuma dessas categorias. Ainda assim, é interessante voltar os olhos para aqueles que Tanaka chama de laboratórios comunitários: ”movimentos de baixo para cima e o desenvolvimento da cena criativa faça-você-mesmo levaram ao desenvolvimento de labs baseados em comunidades. O Medialab Prado em Madrid é um lab de mídia de baixo para cima focado no acesso cidadão, e financiado pelo governo local.” (TANAKA, 2011:15). Sugere que estes seriam espaços de resistência à lógica da propriedade intelectual:

"A natureza de instrumentalização das indústrias criativas pode de fato ser incompatível com o processo artístico. Enquanto isso, abrir a criatividade para além do domínio do artista e fazer um modelo mais democrático de prática criativa guarda um potencial enorme para benefícios sociais e é consistente com o foco comunitário de labs de mídia comunitários." (TANAKA, 2011:19).

É precisamente nos tais laboratórios comunitários que surgem alguns cruzamentos de narrativa que busco desvelar neste capítulo. Os dois labs mencionados por Tanaka - Medialab Prado e Kitchen Budapest ou KiBu - fazem parte de uma rede chamada LABtoLAB, criada em 2010 para promover o intercâmbio entre diferentes iniciativas que então se definiam como labs de mídia. Embora tenham bastante em comum - em especial o foco no uso e desenvolvimento de software livre -, eles apresentam também diferenças consideráveis. Representantes de ambos - o espanhol Marcos Garcia e o húngaro Barnabas Malnay - estiveram no Brasil durante a segunda edição do Fórum CulturaDigital.Br, realizado na Cinemateca Brasileira em São Paulo com apoio do Ministério da Cultura do Brasil. Eu organizei naquela ocasião um painel internacional sobre laboratórios experimentais que contou com os dois e ainda com o finlandês Tapio Mäkelä. Durante o painel, Garcia e Malnay falaram sobre o contexto e histórico de suas organizações.

O Medialab Prado é financiado principalmente com recursos públicos, oriundos principalmente da administração municipal de Madrid e do governo federal da Espanha. Foi criado no início do ano 2000, junto ao Centro Cultural Conde Duque, com o nome Medialab Madrid. No início estava mais voltado a grandes exposições e festivais de artemídia e à ligação entre arte, ciência e tecnologia. Muitos cientistas, engenheiros e artistas participaram desta fase que foi, nas palavras de Garcia, muito frutífera. A partir do final de 2006, já transformado em Medialab Prado e localizado em nova sede, passava a dedicar-se menos à parte expositiva e mais a dinâmicas de produção e educação. O Medialab Prado criou formatos de produção crítica colaborativa que foram replicados e influenciaram projetos em diversas partes do mundo, como o "Interactivos?" - laboratórios temporários que duram de duas a três semanas, tipicamente dedicados a um tema específico (como "ciência de bairro", "tecnologia e magia" e outros já desenvolvidos) e atraem dezenas de colaboradores internacionais para desenvolver projetos coletivamente.

Já o Kitchen Budapest foi criado e é financiado quase totalmente pela companhia telefônica húngara, Magyar Telekom. Segundo Malnay, o patrocinador não costuma impor muitas condições de contrapartida, permitindo um grande nível de autonomia para os projetos do KiBu. Em poucos anos de atuação, eles acumularam um grande número de projetos criativos envolvendo tecnologia, design e cultura. Entretanto, como foi debatido naquele encontro em São Paulo a partir de uma intervenção de Eduardo Navas, mexicano radicado nos EUA, esse tipo de patrocínio corporativo costuma impor condições silenciosas - por exemplo, nunca desenvolver nenhum projeto que possa ser interpretado como crítica ao patrocinador, ou que tenha engajamento político. Sobre esse propósito, Malnay contou sobre um projeto no qual integrantes do KiBu queriam oferecer telefones e ferramentas de comunicação a comunidades Romani (minoria cigana, bastante presente nos países do centro e leste da Europa). O patrocinador acabou proibindo porque não queria que o restante da população - consideravelmente racista, nas palavras de Malnay - considerasse que a empresa estava ajudando os ciganos. O patrocinador também é sempre considerado prioritário em termos de agenda e de tomada de decisão, e o KiBu costuma prestar pequenos serviços de design e comunicação para eles. Ainda assim, Malnay sustenta que para manter os oitenta por cento de atividades dos quais os integrantes do KiBu se orgulham, é aceitável suportarem os outros vinte por cento. Afirmou também que buscar patrocínio estatal na Hungria seria uma opção ainda pior, dadas as condições políticas daquele país.

Estes são somente dois exemplos entre os labs que compunham o projeto LABtoLAB. A rede iniciou-se com Medialab Prado, Kitchen Budapest, Constant (Bruxelas) e PiNG (Nantes). Cada um deles sediaria um encontro presencial no qual receberia integrantes dos demais, além de outros convidados, para debater questões e estratégias comuns. O projeto foi financiado pela União Europeia, enquadrado como uma iniciativa de pesquisa sobre educação continuada em tempos de mudança constante. Logo a rede também desenvolveu relações com Area 10 (Londres), Baltan (Eindhoven) e Uselab (Sevilha)17. Uma discussão recorrente nos encontros LABtoLAB surgia precisamente do incômodo em, ao identificarem-se como "labs de mídia", associarem automaticamente sua atuação àquela do MIT Media Lab, que viam como problemática. Por vezes, definiam a si próprios como "labs de mídia organizados por artistas", tentando explicitar a singularidade de sua atuação e universo de referências. Tentavam assim articular outra genealogia para a ideia de media lab, como expresso no livro Future of the Lab organizado pelos Baltan Labs de Eindhoven:

"O media lab como existe hoje em dia é precedido por muitas tipologias de espaço de trabalho e formas de instituições de pesquisa: a oficina de produção, o estúdio de artista e o lab de pesquisa, mas também o museu, o centro comunitário, a biblioteca e a escola. Nós atualmente entendemos media labs como organizações de pesquisa que buscam respostas para as necessidades de uma sociedade informacional." (LABtoLAB, 2010, p. 54)

A conexão sugerida pelos integrantes do LABtoLAB situa o lab por um lado como episódio da própria história da arte moderna e contemporânea e por outro como infraestrutura cultural urbana, acessível a diferentes setores da sociedade. Assumem assim uma postura diferente daqueles labs ligados somente à inovação com fins econômicos. Essa postura ficou explícita em um dos encontros da rede LABtoLAB, realizado em 2012 em Nantes, França. Após problematizar-se mais uma vez a utilização do termo media lab, decidiu-se por não abandoná-lo e sim disputá-lo politicamente. Os representantes de labs ali presentes editaram o verbete da Wikipedia18, no qual anteriormente quase não havia referência a labs que não fossem o MIT Media Lab, tentando deixá-lo mais includente e plural. Optaram por uma ação tática, talvez com poucas consequências práticas mas que definitivamente tinha uma bagagem simbólica - utilizando-se de um dos ícones da cultura digital, a enciclopédia aberta e colaborativa, para incluir outras perspectivas.

Essa utilização de uma estrutura dada para interferir no imaginário remonta a outra vertente importante da história dos labs que diz respeito à apropriação crítica de tecnologias e ao universo da mídia tática, que tentarei expor superficialmente a seguir. Se a história de Stewart Brand indica a influência da contracultura hippie sobre a cultura hacker estadunidense, na Europa as coisas se passaram forma algo distinta. De fato, uma proporção relevante dos envolvidos com atividades de lugares como o Medialab Prado em Madri é de pessoas envolvidas, ou ao menos familiarizadas, com o histórico europeu dos assim chamados hacklabs, surgidos em meados dos anos noventa:

"Hacklabs são, em sua maioria, espaços mantidos por voluntários que oferecem acesso público gratuito a computadores e à internet. Eles geralmente utilizam-se de máquinas reutilizadas rodando GNU/Linux, e além de oferecer acesso a computadores, a maioria dos hacklabs oferece oficinas em diversos tópicos, desde uso básico de computadores e instalação de GNU/Linux até programação, eletrônica e transmissão de rádio independente (ou pirata). Os primeiros hacklabs se desenvolveram na Europa, frequentemente advindos de tradições de centros sociais ocupados ["squatted"]19 e labs de mídia comunitários. Na Itália eles estava conectados com os centros sociais autonomistas; e na Espanha, Alemanha e Holanda com movimentos squatters anarquistas." (MAXIGAS, 2012).

Neste contexto, os hacklabs estariam associados a um universo de referências essencialmente diverso da contracultura hippie estadunidense e da sua transformação gradual em empreendedorismo comercial. Pelo contrário, na Europa essa história também passava por momentos marcantes no fim dos anos sessenta - em especial com o maio de 1968 e os situacionistas -, para depois transitar por movimentos de resistência e uma cultura punk abertamente política até chegar aos anos noventa com a busca de maior acesso a ferramentas de produção de mídia. Maxigas reforça em especial a ligação entre os hacklabs europeus, a cultura dos squats e o ativismo de mídia20:

"Estas tendências entrelaçadas se juntaram na criação dos hacklabs. Os squats, por um lado, diretamente incorporados nos fluxos urbanos da vida, precisavam utilizar infraestruturas de comunicação como o acesso à Internet e o acesso público a terminais. Ativistas de mídia, por outro lado, com frequência enraizados em comunidades locais, precisavam de espaços para reunir-se, produzir, ensinar e aprender." (MAXIGAS, 2012)

O primeiro hacklab teria surgido na Alemanha, com a fundação do Chaos Computer Club em 1981 em Hamburgo. Subsequentemente, também foram criados CCCS em outras cidades alemãs. A partir dessas primeiras experiências, os hacklabs se espalhariam por diferentes cidades europeias nos anos seguintes. ASCII em Amsterdam, Ultralab em Roma, Riereta em Barcelona, entre outros. Eventos periódicos internacionais como o Chaos Communication Congress na Alemanha ou o Hackmeeting na Itália disseminavam e reiteravam a identidade dos grupos que mantinham tais espaços, promovendo o intercâmbio de ideias e de soluções técnicas para diversas questões: de rádios piratas a redes wi-fi independentes, de centros de acesso à internet à instalação de software livre para produção de mídia. O ASCII esteve particularmente ligado aos festivais Next5Minutes, realizados a partir do fim da década de noventa no contexto das teorias de mídia tática que se desenvolviam principalmente em Amsterdam21. Os N5M, por sinal, influenciaram diretamente a realização do festival Mídia Tática Brasil, mencionado no início deste capítulo.

O contraste entre métodos, aspirações e referências do MIT Media Lab e o cenário na Europa fica claro no testemunho de algumas pessoas que frequentaram ambos. Em meados de 2010, tive a oportunidade de entrevistar o designer Cesar Harada. Jovem talento nipo-francês graduado na França, Harada ainda estudou no Royal College of Arts de Londres antes de tornar-se fellow do programa estadunidense TED, que apoia "ideias que vale a pena compartilhar"22 e posteriormente ser convidado a juntar-se ao SENSEable City Laboratory do MIT, que desenvolve ações em conjunto com o Media Lab. Entrevistei-o logo que havia deixado o MIT. Harada expressava claramente a decepção advinda do choque entre uma visão europeia, politicamente situada, e a maneira como os labs universitários estadunidenses funcionam:

"Nos EUA o Media Lab está quase totalmente incorporado à indústria. No laboratório onde eu trabalhava, nenhum projeto é independente. Cada projeto tem um financiador externo. Com exceção de poucas e ótimas exceções, o Media Lab do MIT é extremamente comercial e apoiado comercialmente. O melhor exemplo é o próprio motivo da minha saída. O laboratório me pediu para desenvolver uma tecnologia para limpar a mancha de óleo [do vazamento no Golfo do México]. Eu projetei máquinas para limpar o vazamento de óleo. Mas eles queriam me forçar a trabalhar com uma nanotecnologia que só estará disponível depois de 2020. A ideia deles era pegar 20 milhões de dólares, dividir entre dois laboratórios e desenvolver o conceito das máquinas, em vez de soluções reais. O laboratório estava recorrendo a fundos de emergência para levantar recursos para uma tecnologia que não era adequada para solucionar emergências. Mas eles não se incomodam em usar dinheiro de pessoas que estão passando por problemas agora. Eles só querem associar arte e ciência, aparecer e ficar ricos rapidamente." (FONSECA, 2010)

Seria impossível, por outro lado, afirmar que os hacklabs europeus estão livres da "ideologia californiana" de Barbrook. A própria adoção do termo "media lab" por iniciativas na Europa é um indicativo dessa influência, mesmo que tenha sido uma estratégia de legitimação. Ainda assim, a fé na inovação tecnológica como maneira de construir uma sociedade independente dos "governos do mundo industrial", como queria Barlow, precisou ali adaptar-se a um contexto politico totalmente diverso daquele dos Estados Unidos. Por exemplo, não é insignificante a quantidade de desenvolvedores de software alemães que pagam suas contas pessoais com o auxílio a estudantes concedido pelo governo daquele país. Muitos deles inclusive foram ou são pessoas chave na implementação de hacklabs politicamente atuantes. É a aproximação entre o empreendedorismo digital, o ativismo tecnológico e o estado de bem-estar social que tem resultados interessantes como auxiliar a viabilidade do desenvolvimento de software livre que não seria possível comercialmente. É frequente, inclusive, a atuação frontalmente contrária a interesses empresariais. É o caso, por exemplo, das tecnologias - em boa parte desenvolvidas em hacklabs - voltadas à criação de redes sem fio através das quais as pessoas podem compartilhar suas conexões à internet, a exemplo da alemã Freifunk ou da catalã Guifi. Por outro lado, mesmo políticas oficiais de desenvolvimento econômico da União Europeia têm adotado ao longo da última década mecanismos de apoio financeiro a fundo perdido para a criação de "startups", empreendimentos comerciais de tecnologia e comunicação. O discurso da inovação digital estadunidense expresso pela ideologia californiana com sua suposta fé no livre mercado e na ausência de interferência governamental seria verbalmente avesso a este tipo de instrumento (por mais que, como apontado por Barbrook, grande parte dos desenvolvimentos de tecnologia estadunidense tenha vindo de encomendas ou fundos militares, essencialmente pertencentes ao setor público).

Outro episódio significativo é a progressiva adoção do termo hackerspaces no lugar de hacklabs. Os hacklabs, como vimos, eram bastante ativos durante a virada do milênio principalmente na Europa. Já os primeiros espaços que se identificavam como hackerspaces surgiram durante os anos noventa, mas eles só se tornaram um movimento consistente a partir de 2007. Algumas instâncias do Chaos Computer Club, citado anteriormente como berço dos primeiros hacklabs, já então passavam a identificar-se como "hacker spaces". Naquele ano, um projeto chamado "Hackers on a plane" levou hackers estadunidenses para o Chaos Communication Congress na Alemanha.

"Ohlig e Weiler do hackerspace C4 em Colônia deram na conferência uma palestra revolucionária chamada Construindo um Hackerspace. A apresentação definiu padrões de design de hackerspaces, escritos na forma de catecismo e oferecendo soluções para problemas comuns que surgem durante a organização de um hackerspace. Mais importante, canonizaram o conceito de hackerspaces e inseriram a ideia de criar novos hackerspaces pelo mundo inteiro na agenda do movimento hacker. Quando a delegação dos EUA voltou para casa, eles apresentaram suas experiências sob o nome programático Construindo Hacker Spaces em Todo Lugar: Suas Desculpas Não São Válidas." (MAXIGAS, 2012).

Um dos estadunidenses presentes no Hackers on a plane em 2007 era Bre Pettis. Alguns anos antes, quando ainda era professor de artes em escolas públicas de Seattle, Pettis havia começado a produzir tutoriais em vídeo sobre como fazer coisas que misturavam habilidades manuais e tecnologia. Isso acabaria virando um trabalho profissional para publicações digitais como a Make Magazine. Para projetos mais complexos, como um robô desenhista, Pettis buscava a ajuda de um espaço mantido por hackers em Seattle chamado Hackerbot Labs. Em 2007, depois do Hackers on a plane, Pettis mudou-se de Seattle para Nova Iorque. Como precisasse de ajuda de hackers e não encontrasse por lá um espaço dedicado a reuni-los, e ainda influenciado pelos lugares que visitou em Berlim, ele fundou com amigos o NYCResistor, no Brooklyn (PETTIS, 2008).

No fim de 2008, Pettis convocou integrantes de diversos hackerspaces a enviar contribuições para um livro sobre o tema. À época, cheguei a receber uma mensagem de um hacker europeu envolvido com diversos hacklabs na Itália e Espanha reclamando que ninguém da rede hackmeeting, que organizava o encontro anual na Itália havia alguns anos, tinha recebido a chamada por contribuições. Segundo ele, "nenhum dos colaboradores do livro é do sul, nem mesmo do sul da Europa, e isso é uma separação dramática". Através de um conhecido "mais diplomático", ele buscava estender o prazo para envio de contribuições para o livro, afirmando que "precisamos fazer todo o possível para que essa iniciativa seja inclusiva, do contrário será somente outra invenção hegemônica dizendo que ’fizemos primeiro nos Estados Unidos’, como já aconteceu antes. apropriadores, eles vão fazer a coisa do hackerspace por eles mesmos. nós tínhamos hacklabs no sul na época em que eles ainda nem sabiam digitar em um terminal".

Algumas semanas depois, o mesmo hacker opinaria em um grupo de discussão por email que "muitos hackers entre nós estão preocupados que tal iniciativa não tenha muito contato com o hemisfério sul. embora os hackers do sul que eu conheço prefiram reagir dizendo ’não nos importamos com esses yuppies subsidiados’, existe muito contato a fazer por aqui, e algum histórico a compartilhar (...) um contexto como o ASCII em Amsterdam ou os hacklabs na Itália e Espanha parecem significativamente (muito) diferentes desse novo NYC Resistor, mas isso pode ser bom, já que nós gostamos de diferença, certo? o único problema surge quando as diferenças não são reconhecidas e as pessoas preferem não compartilhar nenhuma base em comum, na minha opinião". Posteriormente, entretanto, ele acabaria desistindo por conta das restrições de tamanho que o livro impunha às contribuições - 500 palavras.

Na versão final do livro, entre os dezenove hackerspaces europeus mencionados, onze eram da Alemanha. Outros cinco eram da Holanda, Áustria, França e Bélgica. Havia ainda um italiano, um espanhol e um croata. Outros dez hackerspaces norteamericanos eram listados também, e contribuições sobre os já inativos ASCII e o PUSCII em Amsterdam foram incorporadas ao livro. O próprio Pettis escreveu um breve histórico sobre o Chaos Computer Club, que como vimos teria originado os primeiros hacklabs alemães. É curioso perceber que Pettis considera o engajamento político do CCC uma característica não somente digna de observação (por demais distante do cotidiano de um hackerspace estadunidense, talvez) como também recente:

"Atualmente o CCC está se envolvendo mais com lutas políticas. Ao conversar com Jens [Ohlig], ele refletiu que aparentemente a cada semana um membro do CCC trabalha com o parlamento em uma ou mais questões que impactam a liberdade, direitos digitais, e a encruzilhada de tecnologia e legislação. Para muitos no CCC, lutar por seus direitos e hacking são inseparáveis. (...) O CCC é geralmente considerado pelo alemão médio como a última linha de defesa para a liberdade e os direitos civis na Alemanha na era digital." (PETTIS, 2009, p.87).

Nos anos seguintes, o mesmo Pettis se tornaria um dos expoentes dos hackerspaces estadunidenses: além de produzir conteúdo para empresas de mídia e negócios como a já citada Make Magazine, o portal Etsy.com e o canal de TV a cabo History Channel, ele ainda fundaria com colegas do NYCResistor a Makerbot Industries, empresa que fabrica impressoras 3D23. Coerente com a matriz estadunidense dos hackerspaces, a Makerbot Industries recebeu aportes financeiros do mercado no valor de 10 milhões de dólares, estabeleceu parcerias com Autodesk e Microsoft (corporações que produzem software proprietário, reconhecidas por impor controle sobre seus usos) e em 2013 foi vendida à Stratasys - fabricante de impressoras 3D - pelo valor de 403 milhões de dólares. Claro exemplo de assimilação pelo mercado.

As diferenças entre hacklabs e hackerspaces não devem, ainda assim, ser tomadas como absolutos. Pelo contrário, existe uma grande sobreposição de temas, técnicas e frequentadores entre uns e outros. A diferença se dá muito mais em termos de visão de mundo, afiliação a uma ou outra narrativa histórica, ou mesmo de momento de constituição e familiaridade com o histórico de hacklabs e hackerspaces. Para Maxigas (MAXIGAS, 2012), a permeabilidade entre esses diferentes modelos seria frequentemente positiva porque complementar, uma vez que os hacklabs buscam um maior engajamento com movimentos sociais, ao passo que os hackerspaces usualmente relacionam-se com públicos mais amplos. Tatiana Bazzichelli, contrapondo-se à ideia de que os hackerspaces estadunidenses seriam apolíticos, afirma que, ainda que tenham uma postura mais voltada aos negócios, isso não significa que tenham uma postura acrítica em relação ao establishment.

 

"A ideia de hacktivismo como uma prática anticapitalista, típica de muitas comunidades hackers europeias (como demonstra a comunidade em torno do site http://hackmeeting.org) não tem uma tradição real na Califórnia. Muitos hackers na Europa inspiraram-se pelo ethos libertário da cibercultura estadunidense, mas trataram de adaptá-lo radicalmente aos contextos sociais e políticos locais nos quais se encontravam, transformando-o em algo mais ’antagonista’. Na Itália, a interpretação prática do conceito de ’hacktivismo’, simbolizado pelas publicações politicamente orientadas da Shake Editions, é um exemplo claro disso. No outro extremo, (...) a atividade de Stewart Brand e do Whole Earth Catalog, [e] o desenvolvimento da cultura hacker da cibercultura na Califórnia entrelaçaram profundamente o empreendimento de negócios, as redes sociais e valores libertários e antiautoritários." (BAZZICHELLI 2013, p. 186)


 

Mesmo entre os hackerspaces da Califórnia, existem nuances no relacionamento com corporações e financiadores. Há hackerspaces com um relacionamento bastante próximo da mentalidade empreendedora e pró-mercado, como o Hacker Dojo, localizado em Mountain View24. Ele teve apoio financeiro de corporações como o Google e a Microsoft desde sua fundação. Segundo Bazzichelli, o Hacker Dojo é visto por seus frequentadores tanto como lugar de autoaprendizado e compartilhamento quanto como uma incubadora de negócios. Os associados pagam uma taxa de cem dólares mensais para fazer parte dele. Por outro lado, também ali na Califórnia existiriam hackerspaces politicamente situados:

 

"Uma abordagem mais similar à ideia radical de hackear como uma prática política e comunitária adotada por alguns coletivos europeus está na raiz do Noisebridge (www.noisebridge.net), um hackerspace no distrito Mission de San Francisco. Jacob Appelbaum, cofundador do NoiseBridge, codesenvolvedor do Tor Project (www.torproject.org) e recentemente tornado famoso por representar o Wikileaks na conferência Hope [Hackers On Planet Earth] de 2010, argumenta que o NoiseBridge inspirou-se em grande medida pela cultura de redes e pelo hacktivismo europeus, como as experiências do C-Base e do Chaos Computer Club em Berlim, MAMA em Zagreb, Metalab e Monochrom em Viena, e ASCII em Amsterdam. Assim, enquanto muitos hackers europeus durante os anos oitenta e noventa do século passado inspiraram-se nas tecnoutopias da cibercultura estadunidense, hoje em dia muitos jovens hackers nos EUA inspiram-se na abordagem comunitária europeia em relação às tecnologias, como evidenciado por alguns grupos hackers e ativistas ativos na última década" (BAZZICHELLI 2013, p. 188).


 

Hacklabs e hackerspaces são frequentemente tomados como sinônimos. É uma confusão que evoca, ainda que em outros termos, a oposição entre software livre e software open source (EVANGELISTA, 2010): não se trata de uma oposição simétrica, à medida em que as pessoas que utilizam um ou outro termo não veem a fronteira no mesmo lugar. Existe também um nível considerável de sobreposição entre aquilo que é chamado de software livre ou de open source. O mesmo pode ser visto entre hacklabs e hackerspaces. É provável ainda que, mesmo que os primeiros grupos a utilizarem e disseminarem os termos hacklabs e hackerspaces tenham proposto descrições claras, com o passar do tempo os dois campos tenham se confundido, e tendam a se confundir ainda mais. Especialmente quando citados por pessoas ou grupos sem tanta familiaridade com seus históricos, que vão utilizá-los mais como metáfora do que definição, assim como também acontece com o software livre e open source.

Nesse sentido, e levando em conta uma aparente popularização dos hackerspaces nos dias de hoje, parece ainda mais significativo quando iniciativas recentes identificam-se como hacklabs. Mesmo em casos que não se enquadram no sentido original - espaços urbanos ocupados, ligados a ideias autonomistas ou anarquistas e que ofereciam acesso à tecnologia -, chamar uma iniciativa de hacklab pode funcionar como um marcador histórico, referência a uma posição de resistência e engajamento político. Hacklab pode ainda ser um termo mais fácil de ser usado por projetos temporários ou itinerantes, uma vez que não faz referência explícita à ideia de um espaço físico específico. Tem sido utilizado também com alguma frequência por projetos de arte eletrônica engajada, talvez precisamente por sua bagagem politizada. Pela mesma medida, projetos que se denominam como hackerspaces podem soar como mais abertos ao empreendedorismo digital e destinados a dialogar com o público leigo ou com o mercado. Mas também podem parecer mais adequados a iniciativas que se proponham a criar e manter espaços físicos permanentes dedicados ao aprendizado sobre e desenvolvimento de tecnologias, mesmo que assumam um posicionamento político aberto. A diferença entre hacklabs e hackerspaces aparece assim como uma tensão que por vezes se manifesta de maneira bastante explícita e em outras se torna muito sutil ou mesmo inexistente. Não me parece que seja possível solucionar essa tensão, e talvez isso nem seja necessário.

 

3.4 Fablabs e makerspaces

Fablabs são uma rede de laboratórios de fabricação digital baseados em um modelo criado dentro do Centro para Bits e Átomos (CBA) no Media Lab do MIT. Os Fablabs - laboratórios de fabricação digital - consistem em espaços nos quais se disponibilizam diversos equipamentos que, mais do que à produção de mídia, prestam-se à criação de objetos a partir de arquivos digitais - fresadoras, cortadoras de vinil e outros materiais, máquinas de bordar, impressoras 3D, por vezes um scanner 3D, entre outros. São em geral tecnologias que já existem há algumas décadas. Até recentemente, entretanto, as máquinas voltadas à fabricação digital voltavam-se primordialmente à produção industrial - se já eram caras e complexas para engenheiros e designers, seriam ainda mais para o público amador e curioso em geral. Os Fablabs também utilizam tecnologias de videoconferência para promover a colaboração direta entre os integrantes de diversos labs, que assim poderiam supostamente buscar soluções para questões específicas em uma rede de pares no mundo inteiro.

O surgimento dos Fablabs deve-se principalmente a pesquisas do MIT que investigavam as consequências do barateamento e do maior acesso a tais tecnologias, na esteira de um curso oferecido por Neil Gershenfeld, diretor do CBA, que chamava-se "como fazer (quase) qualquer coisa". Foi no CBA que criou-se o primeiro Fablab com esse formato. Gershenfeld teria percebido similaridades na relação entre, de um lado, os primeiros computadores de grande porte e os microcomputadores, e de outro lado as tecnologias de fabricação disponíveis para a indústria e o potencial de sua utilização pela sociedade, de maneira pulverizada e em pequena escala. Em paralelo, surgiam também iniciativas como a Reprap. Surgida pelas mãos e mente de Adrian Bowyer, professor de Engenharia Mecânica na Universidade de Bath, no Reino Unido, a Reprap - prototipadora rápida replicante - consiste em uma impressora 3D que além de fabricar objetos também produz partes das peças necessárias para criar cópias de si própria (daí o "replicante")25. Os Fablabs e as tecnologias que utilizam também tornaram-se mais conhecidos à medida em que começaram a ser descritos como ponta de lança da "nova revolução industrial".

As tecnologias de fabricação propriamente ditas têm bastante em comum com outras tendências atualmente em voga, como o hardware livre e a computação física. Tomadas em conjunto e aproximando-se do universo inovador dos hackerspaces, de uma suposta valorização do amadorismo (a partir, por exemplo, de websites sociais para publicação de tutoriais, como o Instructables e a Make Magazine) e do empreendedorismo digital, comporiam a chamada "cultura maker" (que pode ser traduzida como cultura do fazer, ou da fabricação). Além dos Fablabs - usualmente ligados a instituições acadêmicas com acesso a recursos para investir em máquinas que podem custar algumas dezenas de milhares dólares -, existem também espaços voltados à cultura maker inspirados nos hackerspaces, os chamados Makerspaces. No discurso usualmente adotado por integrantes destes espaços como a Betahaus de Berlim, se os Fablabs voltam-se primordialmente a estudantes universitários de design e engenharia, os makerspaces estariam mais abertos a amadores, hackers e mesmo artesãos. 26

Por um lado, soa promissor refletir sobre o potencial da fabricação local, que no limite poderia reduzir drasticamente custos de logística, valorizar talentos criativos em diferentes localidades e promover uma economia da abundância a partir da troca social de esquemas de fabricação de produtos inspirada no software livre. Por outro lado, a ideia de uma rede descentralizada de espaços independentes nos quais se pudesse não somente acessar a internet como também fabricar objetos (entre outras implicações diminuindo o controle e a tributação sobre circulação de mercadorias) cai como uma luva para as aspirações tecnoutópicas. Não é coincidência que um dos nomes de peso a afirmar a cultura maker como plataforma para a nova revolução industrial tenha sido Chris Anderson, que já foi editor da revista Wired e coordenador das conferências TED. Para ele, um dos principais resultados da fabricação digital é expandir o horizonte de atuação da inovação tecnológica - não mais limitada às redes digitais e mídias sociais, mas agora aberta ao "mundo dos átomos" (ANDERSON, 2012)27. Anderson refere-se especialmente a todo o restante da economia que ainda não foi substancialmente afetado pelo e-commerce. Sugere que uma abertura a ideias comerciais inovadoras supostamente presente nas startups digitais da internet estaria agora acessível a inventores-empreendedores voltados para a criação de novos produtos materiais.

Apesar de toda a retórica "revolucionária", é interessante perceber que essa vertente comercial da cultura maker costuma utilizar-se de um vocabulário oriundo da produção industrial, sem muito questionamento. Assim, o grande valor de proporcionar-se acesso a tecnologias de fabricação digital seria que inventores em potencial poderiam prototipar suas invenções a baixo custo. Poderiam, assim, testá-las na prática antes de enviá-las para fabricação em massa (possivelmente em alguma planta industrial na China que aceite encomendas de fabricação a partir de esquemas digitais). Similarmente, Bre Pettis - sobre quem já falei anteriormente na seção sobre os hackerspaces, criador das Makerbot Industries, que fabricam impressoras 3D e caíram no gosto da revista Wired28, também fala muito em protótipos. No mesmo artigo - de três páginas - da revista 2600 em que contou sobre sua viagem à Europa e sobre a fundação do hackerspace NYC Resistor, Pettis usa variações como "prototipar", "protótipo" ou "prototipadora" mais de vinte vezes. O protótipo se faz presente mesmo nos encontros "Interactivos?" organizados pelo Medialab Prado. Usualmente abertos a uma postura mais explicitamente politizada, é frequente que participantes desses encontros afirmem que estão criando "protótipos" de intervenção na sociedade.

Para o pesquisador brasileiro Gabriel Menotti (MENOTTI, 2010), o protótipo é um objeto crítico de sua própria função. Em outras palavras, o protótipo só existiria enquanto etapa anterior à concretização da versão definitiva de um produto. Entretanto, à medida em que a topologia da fabricação se modifica - como parece ser o caso com a cultura maker - a utilização da ideia de protótipo induziria a um prematuro encerramento de possibilidades dos objetos, com a negação de seus diversos usos potenciais. Afirmar um objeto como protótipo implica assumir que ele tem uma existência funcional definida de antemão. Menotti sugere a necessidade de pensar outras definições para os objetos resultantes da criatividade aplicada às novas tecnologias de fabricação digital. Para ele a gambiarra, ao contrário do protótipo, caracterizaria o objeto improvisado cuja individuação é realizada pelo próprio usuário, possivelmente mais adequada a tempos pós-industriais. No limite, a perspectiva da gambiarra estimula uma maior diversidade de maneiras de apropriação e invenção, a partir da exploração de indeterminações materiais. Em outras palavras, aumentam-se as possibilidades criativas à medida em que se recusa o encerramento e delimitação das funções possíveis para determinado objeto ou conjunto de objetos. Mais do que replicar em escala local os processos industriais, é possível pensar em outras formas de relacionamento com as tecnologias digitais de confecção e transformação de objetos. Focar no conserto em vez da fabricação pode ser uma via potente de invenção e resistência.

 

3.4.1 Cultura do conserto

A cidade britânica de Sheffield foi, a partir do século XVIII, um dos centros da Revolução Industrial. Estima-se que durante a expansão da produção industrial da época, sua população tenha se multiplicado por dez. A cidade notabilizou-se principalmente pelo desenvolvimento de técnicas de produção de aço, setor no qual teve importância mundial até os anos setenta do século vinte. A entrada de novos competidores internacionais acabaria levando Sheffield a um acelerado declínio, à medida em que seu parque industrial era desativado.

Em 1997, um grupo de artistas de Sheffield interessados em desenvolver experiências com tecnologias de informação mas que não possuíam recursos para adquirir computadores resolveu fundar a Redundant Technology Initiative. Sua intenção era utilizar computadores descartados para desenvolver projetos artísticos. A cada exposição que realizavam, chamavam mais a atenção e recebiam mais doações de equipamentos. Após alguns meses, decidiram utilizar o excedente de material para montar o Access Space - um autodenominado "lab de mídia criativa". Coordenado pelo artista James Wallbank, o Access Space em pouco tempo se tornaria uma organização singular. Por um lado, tinha características comuns aos hacklabs: afirmam ter sido o primeiro espaço público de acesso à internet funcionando exclusivamente com software livre. De outro lado, estão mais integrados à institucionalidade. Constituíram uma empresa chamada Low-tech, que encaminha equipamentos para reciclagem, além de estabelecer convênios com o governo local para oferecer capacitação a beneficiários de programas sociais - desempregados, pensionistas, ex-presidiários e outros. Em seu website29, o Access Space afirma ser o lab aberto de arte digital mais antigo ainda em funcionamento, e também o mais sustentável. O Access Space foi o lugar onde se originaram projetos como o Zero Dollar Laptop - propondo a reutilização de laptops descartados em contextos sociais, eles atacam de maneira pragmática e distribuída questões de exclusão digital e do lixo eletrônico, ao mesmo tempo em que criticam o projeto do Laptop de Cem Dólares concebido por Nicholas Negroponte junto ao MIT Media Lab30.

Tive a oportunidade de debater com ou assistir a apresentações de Wallbank em diversas ocasiões: durante o festival Futuresonic em Manchester, Inglaterra (2008); no encontro de redes Wintercamp, em Amsterdam, Holanda (2009); no seminário Paralelo, em São Paulo (2009); durante o Festival Pixelache, em Helsinque, Finlândia (2013); entre outras oportunidades. Em suas palestras ele relata que durante os anos noventa, enquanto muita gente se esforçava para captar centenas de milhares de dólares para montar seus labs de mídia - na esteira da multiplicação de labs decorrente da popularização do modelo do MIT Media Lab -, eles decidiram simplesmente reutilizar recursos ociosos. Tais recursos estariam em três escalas: o lugar - o Access Space está localizado em antigo espaço público anteriormente desocupado; a infraestrutura - reaproveitando computadores doados através do uso de software livre; e finalmente o talento e dedicação ociosos dos cidadãos desempregados ou subempregados.

O Access Space publicou em 2008 o livro em quadrinhos Grow Your Own Media Lab (Cultive Seu Próprio Lab de Mídia), com ilustrações e textos elaborados por alguns de seus frequentadores, que conta mais sobre seu modelo de lab: um espaço receptivo a pessoas interessadas em utilizar tecnologias, baseado na troca de conhecimento e na utilização de software livre. Nos dias de hoje seria possível questionar o caráter propriamente experimental dos projetos desenvolvidos no Access Space, uma vez que o modelo apresentado no livro por vezes sugere uma ênfase prioritária no acesso (evocando aquilo que no capítulo anterior chamei de "modelo compensatório"). Mesmo assim, eles têm especial relevância pelo fato de haver proposto um formato de espaço que, ainda que dialogando com a ideia de lab de mídia do MIT e do universo da arte digital de meados dos anos noventa, posicionou-se concretamente de maneira oposta a muitos dos pressupostos tecnoutópicos tão presentes naqueles contextos. Atualmente, seu projeto mais importante, ao menos em termos simbólicos, é o ReFab Space.

ReFab Space é a interpretação do Access Space para a atual onda de cultura maker, em especial a retórica dos Fablabs. É precisamente na encruzilhada entre o grande potencial transformador carregado pelas tecnologias de fabricação digital e sua assimilação pelos mecanismos globais de uma economia industrial baseada essencialmente na especulação e na publicidade que o ReFab Space se situa. Formado a partir do momento em que o Access Space recebeu doações de máquinas de fabricação digital descartadas por indústrias falidas, o ReFab Space já aí se diferencia, para dar um exemplo de contexto socioeconômico análogo, do FabLab de Manchester - que, afiliado à rede de Fablabs do MIT, já foi inaugurado com vultosos recursos para a compra de equipamentos, na esteira de um projeto de revalorização de uma zona industrial da cidade. Wallbank costuma dizer que o problema dos Fablabs é que eles "não precisam de dinheiro" - como são usualmente estruturas criadas dentro do universo acadêmico, seus equipamentos seriam mais usados para criar problemas do que solucioná-los.

De certa forma, a diferença entre um Fablab típico e a maneira como o ReFab Space estabeleceu-se poderia ser análoga àquela entre o protótipo e a gambiarra. Ou, de maneira mais ampla, entre adquirir novas coisas e recuperar as que estão à mão. O legado de atuação do Access Space no tema do lixo eletrônico poderia sugerir uma contraposição entre a "maker culture" (a cultura da fabricação) e uma "repair culture" (a cultura do conserto). De fato, em uma época na qual a humanidade produz quantidades imensas e crescentes de lixo cuja proporção potencial de reciclagem pode no máximo manter-se estável, a mera sugestão de multiplicarem-se os meios de fabricação de novos objetos deveria ser profundamente questionada. A alternativa, utilizar as tecnologias de fabricação para produzirem-se peças que possibilitem a reutilização de materiais, equipamentos e objetos, não encontra tanta repercussão na mídia de tecnologia (e ainda menos, como é de se esperar, na de negócios).

Sintomaticamente, James Wallbank afirma que a impressora 3D é o mais complexo e menos útil dos equipamentos que tipicamente constituem um lab de fabricação. Em suas versões acessíveis, ela tem baixa resolução - resultando em objetos com aparência de inacabados, brutos31. Os objetos produzidos raramente são recicláveis32. E a geração de arquivos para produzir objetos com elas exige o domínio de mais conhecimento abstrato e softwares específicos. Ainda assim, Wallbank sugere que a impressora 3D fala ao imaginário e aos desejos de futuro de camadas maiores da população. Para ele, entretanto, a cortadora laser é um dos equipamentos com maior potencial de gerar inovação concreta, uma vez que já pode entregar produtos acabados ou semiacabados33. Costuma contar o caso de um designer gráfico desempregado que frequentava o ReFab Space e projetou um modelo de caixa para o minicomputador Raspberry Pi. Com o número de encomendas recebidas, ele montou uma oficina com algumas cortadoras laser, que utiliza para fabricar as caixas. Já teria contratado três pessoas para trabalhar com ele.

No Brasil, os Fablabs ainda estão limitados em grande medida ao âmbito acadêmico. Alguns hackerspaces têm suas impressoras 3D, mas via de regra estão ali por enquanto mais como curiosidades do que instrumentos de produção. É digno de nota, por outro lado, que alguns dos equipamentos listados nas recomendações para Fablabs, como cortadoras de vinil adesivo e máquinas de bordar, estejam (há tempos) presentes em empresas de sinalização e faixas em qualquer periferia urbana, quiosques de shopping centers e afins. É possível imaginar que os laboratórios de fabricação teriam maior potencial transformador quando associados a projetos de inclusão social através do empreendedorismo - incorporando a penetração já existente dessas tecnologias, naturalizando a gambiarra como objeto inovador em si mesmo e valorizando a inventividade cotidiana. Contudo, ainda são raros os projetos que se arriscam nessa seara.

 

3.5 Labs, labs, labs

Ao longo deste capítulo tratei de diversos modelos de labs que, acompanhando diferentes momentos e contextos sociais e econômicos, foram desenvolvidos desde a metade do século XX até os dias de hoje. Mais do que simplesmente traçar um histórico, minha intenção era desvelar nuances e dar visibilidade a suposições que frequentemente são deixadas de lado quando se pensa nas bases que deram origem aos laboratórios experimentais hoje em atividade. À medida em que se misturam as histórias das colaborações interdisciplinares do esforço de guerra, da contracultura, do situacionismo, da cultura hacker e do surgimento de novas contradições e realidades com a disseminação da internet, o universo de possibilidades latentes em cada lab parece adensar-se. Ativismo e crítica ao consumismo situam-se lado a lado com empreendedorismo comercial e pensamento tecnoutópico. Não acredito que haja uma solução para essa tensão, que pode ser pensada como uma condição inerente aos hiperconectados tempos atuais.

No capítulo seguinte tratarei de minha pesquisa de campo, durante a qual tive a oportunidade de visitar uma série de projetos na Finlândia que orbitam o cenário dos labs experimentais, ao mesmo tempo em que participava diretamente da organização de um Festival de Arte e Tecnologia que aconteceria naquela cidade e em uma ilha perto de Talim, na Estônia.

 

1A rede Pixelache consiste em uma série de eventos e outras ações focadas na produção transdisciplinar entre arte, ciência e tecnologia, desenvolvidos em diferentes localidades do mundo. O festival Pixelache é realizado em Helsinque (Finlândia) desde 2002, e deu origem a outros eventos e encontros como o Mal au Pixel (Paris, França), Piksel (Bergen, Noruega), Afropixel (Dacar, Senegal), Pixelazo (Bogotá, Colômbia), entre outros.

2Post disponível em http://www.pixelache.ac/blog/2010/the-labs-are-back/ (acessado em 27/11/13).

3Disponível em http://hackerspaces.org (acessado em 27/11/13)

4Disponível em http://www.fablabs.io/map (acessado em 25/02/14)

5Mapa disponível em http://afrilabs.com/labs/ (acessado em 27/11/13)

6Post de blog disponível em http://www.oesquema.com.br/trabalhosujo/2010/12/23/richard-barbrook-x-jo... (acessado em 27/11/13)

7Disponível no original em inglês em https://projects.eff.org/~barlow/Declaration-Final.html (acessado em 23/11/13)

8É interessante perceber ainda que, apesar de uma relatada tendência de Gilberto Gil, como moderador do painel em 2003, em pender para as opiniões de Barlow, Richard Barbrook guardou uma impressão positiva do debate. No prefácio à edição brasileira de seu livro Futuros Imaginários, afirma: "Os que têm computadores e acesso à banda larga podem ser em número bem menor no Brasil do que na Europa ou EUA, mas era ali que se poderia achar os primórdios da cultura participativa da Internet. O carnaval, e não o mercado, era o modelo do Ministro da Cultura para a emergência da sociedade da informação. Fazendo jus às suas raízes na Tropicália, Gil é um verdadeiro cosmopolita. Imitação não é subserviência - é inspiração e cooperação. Remixar, samplear e citar são ferramentas do trabalho coletivo na economia da dádiva da alta tecnologia" (BARBROOK, 2010).

9Nicholas Negroponte é um arquiteto e acadêmico estadunidense. Fundou o Media Lab com Seymour Papert (que havia trabalhado com Jean Piaget na Suíça), Marvin Minksy (que assumiu com Papert a área de Inteligência Artificial do Media Lab) e a designer Muriel Cooper, que segundo Negroponte promoveu a aproximação do Media Lab com o mundo das artes.

10Também no Brasil, as revistas e "cadernos de informática" da mídia corporativa seguem o estilo da Wired na cobertura da área: uma perspectiva superficial que entende "inovação" como sinônimo absoluto de "novas formas de fazer dinheiro". É em si uma opção bastante lucrativa, à medida em que o tom publicitário é bastante atraente para anunciantes de empresas de tecnologia, mas peca justamente pela ausência quase absoluta de uma postura crítica - exceto quando se trata de desvalorizar qualquer opinião que destoe da visão que Turner chamou tecnoutópica (TURNER, 2006).

11Bulletin Board Systems eram sistemas de fórum online populares entre usuários de computadores antes do surgimento da internet comercial. Outro californiano ligado à contracultura, Howard Rheingold cunhou o termo "comunidade virtual" como título do livro em que relata a sociabilidade que se desenvolvia através dos BBSs.

12Como mencionado no verbete sobre Brand na Wikipedia, disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Stewart_Brand (acessado em 27/11/13)

13Richard Stallman é fundador da Free Software Foundation e criador da licença pública geral (GPL, na abreviação em inglês) utilizada para a distribuição de software livre e aberto. Steven Levy definiu Stallman como "O último dos hackers verdadeiros" (LEVY, 1984). Ele mantém até os dias de hoje uma rotina intensa de participação em conferências em diversas partes do mundo para fomentar o uso e o desenvolvimento de software livre. É definitivamente um dos mais importantes disseminadores de uma cultura de compartilhamento, e é reconhecido por hackers e afins em qualquer parte do mundo.

14Disponível em http://media.mit.edu/ (acessado em 28/11/13)

15De maneira alguma estes setores entrariam no mérito de questionar a verdadeira falácia que é sugerir a fruição do "digital" por pessoas comuns. De fato, praticamente todos os usos que as pessoas faziam e fazem dos computadores (assim como dos tablets e smartphones de hoje em dia) são por essência analógicos: música e a voz precisam fazer vibrar o ar, enquanto imagens e a movimentação do mouse (ou de dedos em uma tela) são igualmente maneiras analógicas de receber informação ou de operar um sistema.

16Como mencionado no capítulo anterior, tive a oportunidade de participar de algumas etapas da plataforma Waag-Sarai, que propunha o desenvolvimento de um "centro de mídia" em algum lugar do Brasil. Os resultados foram algo diversos daquilo que esperavam tanto os holandeses quanto os indianos, mas ainda assim julgo que o processo tenha sido bastante positivo ao propor que projetos brasileiros se situassem em um cenário internacional relevante para a época.

17Em 2010, o encontro LABtoLAB que se realizava em Madri acolheu também a participação de mais de uma dezena de representantes de projetos experimentais da América Latina. Estive presente no encontro, a convite da Agência Espanhola de Cooperação Internacional e Desenvolvimento. Publiquei um relato do LABtoLAB aqui: http://desvio.cc/blog/labtolab-dia-dia (acessado em 28/11/13). Um resultado interessante do encontro surgiu a partir da percepção entre os latino-americanos de que as conversas estavam por demais eurocêntricas. Foi dali que surgiram as bases para o labSurlab, evento que já teve edições em Medelín, Quito e La Paz (http://labsurlab.org/, acessado em 28/11/13).

18Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Media_Lab (acessado em 30/11/13)

19O squatting propõe a ocupação coletiva de espaços desabitados. Na Europa, o movimento squatter está particularmente ligado à atuação política anarquista e autonomista, em especial com vertentes manifestas na cultura punk.

20Como sugerido no capítulo anterior, deve ter sido em meados de 2004 ou 2005 que ouvi pela primeira vez sobre os "hacklabs". Trabalhava, junto a cerca de outras oitenta pessoas em todas as regiões do Brasil, na elaboração, planejamento e implementação da estratégia de cultura digital para os Pontos de Cultura, projeto do Ministério da Cultura do Brasil. Alguns colegas propunham então que o projeto deveria apoiar o surgimento de hacklabs, laboratórios de cultura hacker. Referiam-se ao termo já utilizado à época para definir alguns espaços, localizados usualmente na Europa. Eram, como discorri naquele capítulo, laboratórios que afirmavam-se independentes e auto-organizados, nos quais eram explorados e desenvolvidos usos críticos de tecnologias da informação. A imagem me interessou inicialmente porque o tipo de prática que afirmavam desenvolver dialogava diretamente com os espaços de MetaReciclagem que existiam no Brasil, cujo funcionamento tentávamos então replicar dentro da rede de Pontos de Cultura.

21David Garcia e Geert Lovink foram expoentes do movimento da mídia tática, que propunha uma utilização politicamente situada das novas tecnologias de informação e comunicação. Inspiravam-se na oposição sugerida por Michel de Certeau, segundo a qual a estratégia seria domínio exclusivo da indústria e dos usuais detentores do poder, enquanto a tática - a esperteza do uso cotidiano - estaria acessível a todos os grupos sociais. (CAETANO, 2006).

22O TED é outro braço importante das ligações entre MIT Media Lab, Wired e a opinião pública. Teve origem em 1984 como uma conferência dedicada a "Tecnologia, Entretenimento e Design". Aquela edição, além de apresentações pioneiras do microcomputador Macintosh e do CD - que na época era uma novidade, desenvolvida pela Sony -, recebeu também palestras de Nicholas Negroponte e Stewart Brand. O organizador da conferência foi o arquiteto e designer Richard Saul Wurman. Foi só em 1990 que Wurman transformou o TED em uma conferência anual - somente para convidados -, que tornava-se um veículo de grande alcance para difundir ideias tecnoutópicas acompanhando a popularização da internet. Ao longo dos anos noventa, Wurman escreveria colunas para a revista Wired com alguma frequência. Em 2000, o comando do TED passaria a Chris Anderson, que no ano seguinte também assumiria como editor-chefe da Wired. Em meados da década passada, passaram a transmitir e disponibilizar pela internet algumas das apresentações das conferências, nas chamadas TED Talks. Hoje o TED tornou-se uma espécie de franquia de evento sobre empreendedorismo e tecnologia, adotando uma perspectiva bastante identificada com elementos da ideologia californiana.

23Impressoras 3D são máquinas digitais que fabricam objetos tridimensionais através da deposição de camadas de resina plástica. Falaremos mais sobre elas na seção sobre Fablabs e makerspaces.

24Cidade na Califórnia onde fica a matriz do Google.

25A meta do projeto Reprap é chegar a um modelo de impressora 3D que seja 100% replicante. Algumas das versões atualmente disponíveis podem imprimir todas suas partes de plástico, mas ainda não os circuitos eletrônicos e peças de metal.

26Um dos editores da revista Make, Phil Torrone, publicou em 2011 no seu blog um texto em que elogia o amadorismo em oposição à especialização, e sugere que quando se trata de eletrônicos todos são "iniciantes". http://makezine.com/2011/11/02/zen-and-the-art-of-making/ (acessado em 25/02/2014).

27Já comentei anteriormente e não vou retomar aqui em detalhes minha opinião sobre a superficialidade dessa suposta dicotomia platônica entre bits e átomos, mas me parece importante assinalar a conexão com o discurso de Nicholas Negroponte, fundador do MIT Media Lab.

28Pettis foi tema de capa da edição especial sobre design da Wired, em setembro de 2012, em matéria escrita pelo próprio editor Chris Anderson.

30O projeto One Laptop Per Child (OLPC) baseia-se no desenvolvimento de um computador educacional especialmente voltado para estudantes de países em desenvolvimento. Governos de países como o Uruguai e o Brasil (onde o projeto foi chamado UCA - Um Computador por Aluno) adotaram o projeto. Segundo formatos usuais do MIT Media Lab, o OLPC é um projeto bastante centralizado: é produzido por um só fabricante e requer encomendas de pelo menos um milhão de unidades. O projeto ainda é criticado por estimular o individualismo no uso dos computadores, por haver deixado de lado bandeiras que ajudaram na sua disseminação (como a manivela para carregar suas baterias ou a ênfase em redes wi-fi distribuídas, chamadas de redes mesh) e por focar-se principalmente no software, não sendo planejado para permitir o intercâmbio de peças e o conserto local.

31A própria nomenclatura utilizada para denominá-la indica um foco primordial em características técnicas - a impressora 3D se diferencia das impressoras de papel, que produziriam ("somente") em duas dimensões. Pode-se tentar uma interpretação alternativa, segundo a qual a impressora 3D permite "dar saída" a arquivos gerados em softwares de modelagem tridimensionais, mas isso é jogar a mesma limitação conceitual para o software. Outros nomes, como "máquinas de prototipagem rápida", como discuti acima, também carregam muito mais do que se costuma refletir - por que precisaríamos pensar que elas só se prestam a protótipos? Uma solução possível seria deixar de lado a dicotomia improdutiva entre duas ou três dimensões e chamá-las de "impressoras de coisas" ou "fabricadoras de coisas". Afinal, em um Makerspace são utilizadas lado a lado ferramentas bidimensionais e tridimensionais.

32Existem pesquisas a respeito de plásticos e resinas que permitiriam transformar objetos fabricados por essas tecnologias em matéria-prima para novos objetos, mas ainda são muito incipientes. Como também, vale registrar, usos como a fabricação, em equipamentos similares, de alimentos, placas de circuito impresso ou compostos orgânicos.

33Cortadoras laser são máquinas que permitem recortar ou fazer gravações em diversos materiais - chapas de madeira, metal, acrílico ou outros materiais - a partir de arquivos digitais. São utilizadas industrialmente para fabricar desde brinquedos até roupas. Uma cortadora laser, assim, permite não apenas fazer protótipos de produtos para futura fabricação, mas também objetos prontos para o uso.