Primavera Gelada

4 Primavera Gelada

Helsinque, na Finlândia, é sede de diversas iniciativas que operam na fronteira entre arte, ciência e tecnologia. Aproveitei duas visitas que fiz àquela cidade – durante as quais estaria colaborando com a realização de um festival internacional que opera justamente nestes campos – para desenvolver uma observação de inspiração etnográfica. Me interessava obter um retrato mais aprofundado do cenário como um todo do que seria possível simplesmente estudando labs isoladamente e à distância. O grande número de arranjos experimentais e a diversidade em suas configurações e metodologias, em contraste com a escala de uma cidade relativamente pequena, acabariam trazendo insights importantes para entender possibilidades correntes dos labs experimentais. Este capítulo traz um relato deste período em Helsinque.

A previsão do tempo foi infelizmente acertada. A primavera demorava a vir neste ano, segundo os conformados finlandeses. Antes mesmo de chegar, eu já chamava a cidade de "Gelo-sinque, capital da Friolândia". Estávamos na terceira semana de abril, época em que o frio já deveria estar amansando. Mas naquela tarde de sábado o vento gelado conseguia entrar pela menor fresta de roupa. O número reduzido de pessoas na rua piorava ainda mais a sensação térmica naquela parte da cidade. Cruzávamos Kallio, bairro originalmente operário que nas últimas décadas foi-se transformando em área boêmia, em direção a Vallila, que passa por um processo similar mas ainda mantém oficinas e áreas de indústria1.

Acompanhava-me naquela tarde Nathalie Aubret, coordenadora do Festival Pixelache. Nathalie vem de Paris, mas vivendo em Helsinque há alguns anos já se considera mais finlandesa do que francesa. À nossa frente, em passo rápido, ia Antti Ahonen. Fotógrafo com longa lista de serviços prestados ao Pixelache, Antti é também integrante do Koelse, grupo de artistas e programadores que utiliza eletrônicos descartados e outros objetos para desenvolver obras, instalações e intervenções. Nosso destino naquela tarde era a sede do Koelse. Ambos vestiam casacos e gorros de lã, contrariando minha expectativa de que os habitantes locais teriam uma maior tolerância ao frio. Segundo Nathalie, Antti veste o mesmo gorro desde que ela o conheceu, anos atrás. Ele confirma a observação, como se orgulhoso de cada pequena contribuição para criticar o consumismo no mundo.

Eu fazia minha primeira visita àquela cidade e àquele país por ocasião do Festival Pixelache, que se realizaria no mês seguinte. O Pixelache acontece desde 2002, promovendo a aproximação e a colaboração entre diversas áreas de conhecimento. Em seu website, o Festival é definido como uma "plataforma transdisciplinar para arte, design, pesquisa e ativismo experimentais". Comparado a outros eventos inseridos no cenário internacional dos festivais de arte e tecnologia, o Pixelache é considerado um dos mais informais e despojados. Ainda assim (ou justamente por isso), é respeitado por uma suposta maior liberdade em experimentar com formatos e produções aliando pioneirismo e profundidade. Realizado usualmente em Helsinque, o Festival ainda engendrou ao longo de uma década de atividade uma rede de festivais independentes que identificam-se coletivamente como Rede Pixelache: Piksel (Noruega), Afropixel (Senegal), Mal au Pixel e Electropixel (ambos na França), Pixelazo (Colômbia), Pikslaverk (Islândia), Pikselvärk (Suécia) e mais recentemente o Tropixel, no Brasil2.

Para a edição de 2013 do Festival em Helsinque, a equipe de organizadores do Pixelache decidiu receber propostas de curadoria através de uma convocatória aberta. O tema deste ano seria "Facing North/Facing South", que pode ser traduzido como "encarando o norte / encarando o sul". Era um tema que dizia respeito a dois enquadramentos: o mundial e o regional. Por um lado explorava a tensão geopolítica entre os supostos norte e sul globais, habitualmente associados respectivamente a países ricos e países pobres ou "em desenvolvimento". De outro, refletia as tensões e convergências da integração de fato entre Helsinque, capital da Finlândia, e Talim, capital da Estônia. Separadas por oitenta quilômetros de mar, as duas cidades têm um histórico de relacionamento cultural e econômico intensos. Os textos iniciais do Festival, que estava planejado para acontecer nas duas localidades, já sugeriam uma cidade híbrida (chamada alegoricamente de Helim ou Talsinque), e parte da programação seria dedicada a debater esta imagem e suas implicações.

4.1 Bricolabs

Curioso com aquelas questões (e instado por algumas pessoas chave ligadas à rede Pixelache), costurei no segundo semestre de 2012 uma proposta de curadoria do Festival junto à rede Bricolabs3. Foi uma construção colaborativa reunindo pesquisadores, curadores, artistas, hackers e articuladores de diversas partes do mundo. Fizemos uma série de reuniões pela internet, durante as quais debatemos questões que estariam refletidas em nossa proposta. Um dos pontos recorrentes era uma crítica à dicotomia norte-sul, que nos parecia por demais simplificadora e inadequada frente a casos dos quais era exemplo a própria rede Bricolabs. Com cerca de duzentos integrantes de diversas partes do mundo, acreditávamos representar uma dinâmica de colaboração que fugia a tais divisões superficiais (norte com dinheiro e conhecimento, sul com demandas materiais e mão de obra braçal).

Posteriormente eu entenderia que para os finlandeses, a tensão norte-sul não diz respeito somente à divisão entre hemisférios, mas fundamentalmente à própria identidade do país. Helsinque, cidade situada no extremo sul da Finlândia, é ainda assim a segunda capital mais setentrional do mundo (atrás apenas de Reiquiavique, na Islândia). Ou seja, do ponto de vista da Finlândia, também praticamente todas as capitais europeias estão ao sul. O país tem ainda outras particularidades. Os finlandeses falam uma língua quase autóctone4. Por centenas de anos, foram dominados alternadamente pela Suécia e pela Rússia. Ao longo do século XX, inclusive durante a Guerra Fria, a Finlândia era formalmente um país neutro. Recebia influência direta da então URSS, mas ao mesmo tempo era integrante de órgãos internacionais como a OCDE e a Associação Europeia de Livre Comércio. Durante os anos setenta, a Finlândia era vista como ponte diplomática entre os blocos capitalista e comunista. Hoje convivem ali um estado de bem-estar social com corporações internacionais como a Nokia. O país situa-se assim como zona fronteiriça, característica que pude sentir pessoalmente andando pelas ruas de Helsinque. Muitas coisas eram familiares, evocando características de outras cidades europeias. Pode-se usar o idioma inglês para falar com as pessoas sem a necessidade de perguntar se o dominam, ao contrário de outros países europeus. Ainda assim, tive uma sensação de estranhamento com alguns detalhes - arquitetura, comportamento, silêncio, natureza - que me pareceram bastante particulares.

Desde a criação da rede Bricolabs em 2006, já havíamos criado e desenvolvido uma série de projetos colaborativos internacionais. Em 2009 fizemos em Amsterdam uma reunião de encontro da rede, à qual estiveram presentes nove pessoas de oito nacionalidades distintas (vindas de três continentes diferentes). A rede Bricolabs facilitou ainda inúmeros encontros e colaborações pontuais ou em pequenos grupos. Nossa proposta para o Pixelache baseava-se nestas dinâmicas. Propusemo-nos a organizar discussões sobre colaboração multidirecional e tecnologias livres e abertas, sessões ao vivo via internet com grupos em diferentes partes do mundo, oficinas e exposições.

Enviamos a proposta em novembro de 2012. Em dezembro, recebemos a notícia de que ela havia sido selecionada. A partir de janeiro, entramos em uma rotina de reuniões semanais pela internet com integrantes da Bricolabs e do Pixelache para construir nossa parte da programação. O Festival aconteceria por dois dias em Helsinque, e então migraria para a ilha de Naissaar, na costa da Estônia, perto de Talim. À rede Bricolabs foi designada uma parte central do Pixelache: uma exposição e um seminário, ambos em Helsinque. Estávamos também convidados a participar do Camp Pixelache, uma desconferência - encontro cuja agenda de atividades é definida na abertura pelos próprios participantes - que aconteceria durante os dois dias em Naissaar.

Estabelecemos uma rotina de reuniões pela internet que continuaria durante toda a fase de preparação para o Pixelache. Havia, como usual nesse tipo de construção, alguma limitação de entendimento uma vez que nos comunicávamos basicamente em inglês, idioma nativo para não mais do que três entre as cerca de dez pessoas envolvidas. As reuniões davam-se por texto, ocorrendo geralmente em salas de bate-papo via IRC5. Ainda assim, conseguimos elencar um conjunto de temas que faziam sentido para todos os envolvidos. Além da já citada inquietação com a superficialidade de uma dicotomia norte-sul, outros tópicos de interesse envolviam a "colaboração antidisciplinar", as "redes ressonantes profundas" e as "infraestruturas subjetivas".

Um pouco mais complexo foi administrar a tensão entre o ritmo aberto e informal das conversas online e as necessidades concretas de um evento que acontecia em um lugar específico, com datas definidas e um orçamento fechado. No processo, encontrei uma série do que poderia chamar de determinantes culturais. Eu vinha de mais de uma década de experiência com todo tipo de eventos diretamente informados por práticas cambiantes das redes digitais - nas quais o formato das conversas é por vezes até mais importante do que aquilo que se fala nelas. Havia participado de e promovido desde reuniões abertas em lugares públicos organizadas sem nenhuma antecedência até mesas de debate internacionais em um formato mais tradicional, passando ainda por laboratórios temporários sem propósito definido, ciclos abertos de conversas e oficinas, e até certa vez uma tarde de discussões temáticas com dezessete microapresentações entre cerca de cinquenta participantes. Participara de paródias de seminários acadêmicos e da leitura cantada do estatuto de uma ONG, cuja primeira assembleia havia acontecido em uma escada, seguindo a ordem de quem gritava mais alto. Essa diversidade de práticas, apesar de frequentemente frustrar as expectativas de uma ou outra instituição, sempre me pareceu bastante enriquecedora para os grupos que delas participavam.

Para os organizadores do Pixelache na Finlândia, entretanto, era natural que um evento como aquele tivesse três elementos: seminário, exposição e oficinas. O máximo de informalidade com que eles conseguiam lidar era a desconferência, que ainda assim tem regras simples e claras. Me pareceu que, do ponto de vista finlandês, é desperdício de tempo questionar os formatos, uma vez que o seminário, a exposição e a oficina fazem parte de um modelo consagrado que garante grande objetividade. Sob este ponto de vista, estes três formatos têm finalidades e características invariáveis. O seminário permite que ideias sejam apresentadas e confrontadas umas com as outras. A exposição oferece expressões concretas da reflexão e da experimentação que vão além da palavra escrita e falada6. Já a oficina seria a maneira correta de compartilhar conhecimento aplicado, em especial técnicas para fazer-se qualquer coisa. É frequente, inclusive, que nesses meios fale-se em "transmissão de conhecimento", expressão que para meu universo de referências influenciado pela pedagogia de Paulo Freire soa absurda.

Foi só depois de insistir algumas vezes sem muita reverberação que comecei a pensar que essa visão mais estrita é reflexo de uma sociedade urbana instruída - na qual toda a população tem acesso ao mesmo tipo de educação, com instituições estáveis e, em especial, bastante racionalizada. Talvez seja natural que no Brasil, onde frequentemente o que vemos são simulacros de debate, exposições superficiais e oficinas repetitivas ou mesmo equivocadas, queiramos experimentar não somente com o que se fala mas com os próprios formatos de se falar. Ou então seria nossa vertente antropofágica que emerge, buscando a síntese entre o mundo como é e as ideias sobre como o mundo é. De todo modo, o processo de planejamento do Pixelache ensinou-me bastante a respeito daqueles formatos mais tradicionais - aos quais acabaríamos por fim nos conformando.

 

4.2 Lugares na cidade

A visita em abril seria o momento para conhecer um pouco da cidade, do cenário local e dos espaços previstos para nossa programação no Pixelache. Em pleno andamento da pesquisa de mestrado, atraía-me também a Helsinque a curiosidade sobre modelos e formatos estruturais voltados a fomentar a produção experimental entre campos como cultura, ciência, educação e ativismo. A Finlândia, e em particular sua capital, têm tradição na produção de fronteira entre tais áreas, que o senso comum contemporâneo costuma apontar como apartadas. Desde que comecei a pesquisar tais temas, percebi que pessoas e instituições finlandesas são referências recorrentes. Estava assim interessado em visualizar de que maneira essa produção acontece e como se articula com as dinâmicas próprias da cidade.

Havíamos nos encontrado no início da tarde em Kulmahuone, uma entre as muitas iniciativas que oferecem espaço de trabalho para freelancers. O que primeiro chamou minha atenção no Kulmahuone foi justamente quão ordinário ele é. Trata-se de uma sala simples, decorada com bom gosto mas sem excessos. Tem alguns sofás, internet wi-fi e uma pequena cozinha com uma máquina de café expresso. Como outros espaços que eu conheceria posteriormente em Helsinque, o Kulmahuone não tem em si nenhum equipamento ou maquinário fixos particularmente relevantes. É um espaço aberto e reconfigurável.

O que nos levava ali naquela tarde era o encontro do Trashlab Repair Cafe, uma das linhas de atuação da Pixelversity - braço do Pixelache dedicado a ações permanentes e de formação abertas ao público. Aquele dia era dedicado ao conserto de roupas e bolsas. Havia um monte de máquinas de costura, agulhas, linhas de todas as cores e um grupo animado de pessoas, inclusive crianças e um cachorro. Alguém comentou que na Finlândia os homens costumam entender mais sobre costura do que as mulheres, pois têm aulas disso na escola. Os presentes usavam o material disponível na sala para consertar ou fazer suas próprias carteiras, calças, bolsas e mochilas.

Aquela cena que poderia parecer prosaica refletia na verdade um posicionamento que eu veria frequentemente entre os finlandeses. Ao contrário dos sentidos que podem ser evocados nas culturas médias brasileiras, para as quais consertar uma roupa pode trazer uma conotação negativa - a pessoa conserta porque não tem os meios para comprar uma nova -, para aqueles finlandeses o conserto era um ato de resistência. Inseridos em uma sociedade com alto grau de conscientização ecológica (a casa do amigo que me hospedou tinha cinco lixeiras para diferentes tipos de resíduo), para aquelas pessoas reformar uma peça de roupa é uma ação granular que significa alinhar-se a diversos movimentos internacionais que posicionam-se contrariamente ao consumismo exacerbado que alegadamente permeia a sociedade mundial.

Impressionou-me perceber quão importante era aquela pequena reunião informal, alegre e familiar, dentro do contexto da reflexão que o Trashlab vem propondo acerca de diversos tipos de resíduo, desperdício e reaproveitamento. Não era simplesmente um ato individual de resistência, mas um evento aberto situado em uma cidade relativamente pequena7. Pelo que se depreende da expectativa dos participantes, um simples encontro entre pessoas que têm preocupações em comum pode interferir em uma série de dinâmicas locais, articular questionamentos e por vezes até oferecer novas respostas a temas de alta relevância para a vida cotidiana, abrindo espaço de decisões usualmente atribuídas a especialistas para a interferência de outros tipos de agentes. É, entre outras coisas, uma maneira de mobilizar forças que podem ser articuladas para ajudar na construção de uma sociedade atual em que o poder encontra-se cada vez mais difuso. Sob esta perspectiva, ações como o encontro do Trashlab podem assumir a importante carga simbólica de apontar caminhos alternativos para o futuro da sociedade.

 

4.3 Gambiarra escandinava

Depois de cerca de vinte minutos caminhando sob o vento frio com Nathalie e Antti após o Trashlab Repair Cafe, chegamos à frente de um grande prédio. Antti sacou um molho com algumas dezenas de chaves. Abriu o portão, contando-nos que estávamos em uma fábrica de cosméticos que havia sido desativada. Em vez de acontecer o que se costuma ver em casos parecidos nas cidades brasileiras - o abandono do espaço ou, ainda pior, sua transformação em mais um shopping center ou empreendimento imobiliário de "classe média alta" -, a construção foi mantida como estava e dividida em salas que são alugadas a preços acessíveis. Cada sala, e há dezenas delas, é um universo em si. Logo na entrada vimos uma pequena oficina que confecciona e vende equipamentos para sauna, uma tradição finlandesa. Existem também produtoras multimídia, gráficas, empresas de tecnologia, escritórios, e projetos diversos. Ali também tive a impressão de uma configuração que dialoga com a autonomia e a indeterminação.

No caminho para lá, Nathalie afirmara que o movimento squatter não tem muito peso em Helsinque, ao contrário de outras capitais europeias. Me parece que isso pode ser resultado de uma sociedade em que há oferta suficiente de moradia e espaço para trabalho. Cheguei a perguntar-me se a aproximação criativa entre necessidade real, inconformismo e desobediência civil que costuma acontecer no contexto squatter naquelas outras cidades não faria falta na Finlândia. Não encontrei dados para responder a esta questão.

Tomamos um elevador industrial, sem porta de proteção, e subimos alguns andares. Antti sacou novamente suas chaves e conduziu-nos para dentro da sede do Koelse. Senti-me imediatamente em casa, como se entrasse em algum espaço de MetaReciclagem em qualquer lugar do Brasil8. Prateleiras e mais prateleiras de equipamentos empilhados, ferramentas, bancadas e componentes eletrônicos. Uma tal quantidade de material estocado que parece ser difícil encontrar qualquer coisa específica. Uma visão ainda mais surpreendente em contraste com a propensão finlandesa pelo design clean, pela austeridade e pela praticidade que testemunhei em outros estabelecimentos, espaços públicos e residências.

Atravessamos a primeira sala e nos sentamos em algumas cadeiras na sala dos fundos. Antti contou um pouco sobre o grupo. O Koelse é um coletivo de artistas que desenvolve projetos geralmente ligados à reutilização de eletrônicos. São também pessoas bastante interessadas em sustentabilidade e na crítica ao consumismo e à obsolescência planejada9. Eles armazenam inclusive equipamentos para os quais não veem utilidade imediata - nas palavras de Antti, nunca se sabe quando vão precisar exatamente de um motor com as características específicas daquele encontrado em um gravador de cassete que encontraram na lixeira.

Logo chegaram mais dois integrantes do coletivo, Tomi Flinck e a italiana Sara Milazzo. Os dois estavam ali buscando peças para uma mesa de controle que gerenciaria uma série de sensores para interagir com uma dançarina de flamenco em um evento de que participariam. Mostraram alguns equipamentos que construíram à mão, que me fizeram recordar das produções do coletivo brasileiro Gambiologia10. Antti mencionou um documentário sobre o Koelse que estaria quase pronto. Conversamos por algum tempo sobre o Brasil, lixo e material eletrônico.

Encontramos durante a conversa muitas questões comuns entre ações deles e as de grupos brasileiros, apesar dos contextos socioeconômicos díspares. Achei particularmente curioso o fato de que Tomi exibia a mesma postura, gestualidade e até contava o mesmo tipo de piadas que já vi entre hackers em outros países, inclusive no Brasil. Não era uma personagem desconhecida. Existem de fato diversos pontos em comum entre hackers e ativistas em diferentes partes do mundo. São pessoas que frequentemente compartilham referências culturais: filmes e animações (em especial ficção ciberpunk11), videogames antigos e recentes, séries de TV, música pop de algum lugar exótico. Têm também em comum a familiaridade com ícones contemporâneos como Richard Stallman. Ele mesmo uma espécie de peregrino divulgando o software livre em eventos e conferências internacionais, Stallman acaba tornando-se tema de conversas para quebrar o gelo entre hackers e ativistas em qualquer parte do mundo.

 

4.4 Helsinki Hacklab

Saindo da sede do Koelse partimos rumo ao destino seguinte, que ficava um ou dois andares abaixo. Tentamos descer pela escada, mas deparamo-nos com um robusto portão de grade, trancado. Voltamos e tomamos o elevador. Paramos em frente à porta encimada por uma faixa em inglês dizendo "porque podemos" ("because we can"). Ao centro o símbolo hacker e o nome Helsinki Hacklab colados com fita, e abaixo a foto de um osciloscópio ou algo parecido. Percebi ali mesmo uma questão de nomenclatura: Hacklab, e não Hackerspace. Como discorri no capítulo anterior, os termos têm diferentes genealogias que ainda que não sejam determinantes acabam por afiliar-se a históricos que sugerem posicionamentos políticos diversos: hacklabs costumam estar associados a um contexto ativista europeu, frequentemente (embora nem sempre) ligado a grupos anarquistas ou autonomistas; enquanto os hackerspaces se popularizaram a partir de uma releitura estadunidense dos hacklabs, evitando assumir uma politização explícita e sendo mais permeáveis a projetos comerciais e voltados ao mercado.

Fomos recebidos no Hacklab por outro finlandês chamado Antti, cujo sobrenome não registrei. Logo no hall, as usuais particularidades finlandesas: um banquinho para que os frequentadores tirem seus sapatos - e logo circulem descalços pelas salas -, além de um grande cabide para pendurar casacos. Antti nos levou a conhecer as instalações. Deu ênfase especial aos equipamentos e ferramentas. Começamos pela sala de eletrônica, no fundo. Materiais e químicos para gravar placas de circuito, ferros de solda, alguns circuitos prontos. Continuamos por outra sala que segundo Antti deveria ser uma sala de áudio. Entretanto, em uma bancada no centro do ambiente, uma grande impressora 3D chamava a atenção. Muitos computadores, mas tudo bem organizado.

Passamos por mais uma sala, onde alguns projetos eram desenvolvidos. Um grande mural com paineis LCD que são levados a eventos. Não para uso comercial, mas também nenhuma inclinação política explícita. Parece especialmente importante para seus integrantes a exploração e experimentação com o funcionamento e os usos potenciais das tecnologias. Havia ainda um monte de caixas fechadas, de aspecto robusto e com inscrições em alfabeto cirílico. Antti conta que trata-se de um antigo radar russo, para o qual não encontraram manual de instruções. Uma das caixas está aberta, e podem-se entrever válvulas dentro dela. O plano é desenvolver coletivamente maneiras de utilizá-lo. Na mesma sala estava uma reprap, a impressora 3d replicante.

A infraestrutura do Helsinki Hacklab é mantida com a contribuição financeira de cerca de cem pessoas, grande parte delas oferecendo periodicamente valores pequenos. Os integrantes ativos, que estão no hacklab com maior frequência, são cerca de trinta. Apesar do nome do espaço - fundado em 2010 - sugerir uma afiliação ao histórico de contestação dos hacklabs, tive a impressão de que ele poderia igualmente ser chamado de hackerspace. Da maneira como o conheci - e isso pode ser um condicionante importante, afinal fui guiado por um único integrante -, ficou a impressão de que ali os equipamentos são mais centrais do que uma hipotética posição de resistência. Inclusão e acesso parecem distantes, até em decorrência de obstáculos concretos: para chegar-se à sala, é necessário passar por vários portões trancados. E o ambiente recendia muito mais a normalidade alternativa (e espaço para utilização de tempo disponível) do que a ativismo politicamente engajado.

 

4.5 Suvilahti

Minha visita à Finlândia aconteceu principalmente, como mencionado, pela participação da rede Bricolabs no festival Pixelache, que aconteceria no mês seguinte. Precisávamos planejar uma série de detalhes relacionados a logística, hospedagem e grade de programação. Eu queria também conhecer os espaços onde se realizaria o festival. Por esses motivos, passei uma tarde trabalhando no escritório da organização responsável pelo Pixelache. Nathalie encontrou-me em Kallio e tomamos a única linha de metrô, na direção norte. O escritório localiza-se em mais um espaço urbano ressignificado: Suvilahti, a antiga usina de eletricidade de Helsinque. De seu pátio com ares de zona industrial abandonada - amplos espaços de concreto e asfalto, grandes construções austeras de paredes descascadas ou pintadas em cores sóbrias, estruturas de metal enferrujado, e àquela época do ano grandes montes de gelo e entulho - pode-se ver a nova usina, construída em estilo contemporâneo. Uma das laterais da área é emoldurada por um extenso muro grafitado, costumeiramente renovado pelos frequentadores. O outro lado é delimitado por uma avenida de tráfego intenso e pela estação de metrô Kalasatama.

Assim como a fábrica de cosméticos onde se localizam a sede do Koelse e o Helsinki Hacklab, também Suvilahti foi fracionada e suas partes são alugadas para dezenas de iniciativas culturais e criativas. Além da organização responsável pelo Pixelache, também se localizam ali um ateliê de grafite e murais, estúdios e produtoras multimídia, uma escola de circo, a Eesti Maja (casa de cultura estoniana), além de escritórios de design e outros empreendimentos assemelhados. Dedicando-se a áreas complementares, é frequente o intercâmbio entre diferentes organizações no local. Como é comum na Finlândia, um dos prédios centrais do complexo tem uma sauna compartilhada. As instalações da Suvilahti também recebem frequentemente festas, shows e eventos. É um espaço bem conhecido na cidade, relativamente perto de Kallio e outras áreas boêmias.

A organização do Pixelache compartilha o escritório com a Sociedade Finlandesa de Bioarte, reforçando sua posição de fronteira entre arte, cultura e ciência. Fica em um prédio difícil de discernir de outros similares em Suvilahti, sem nenhuma sinalização específica. Para chegar-se até o escritório é necessário passar por duas portas usualmente trancadas, mas não existe nenhum tipo de portaria ou interfone. Em Helsinque, espera-se que qualquer pessoa tenha um telefone e o número dos presentes para avisar que está chegando. Encontros casuais são tão raros quanto alguém sem telefone. Em um saguão interno em frente à escada, ficava uma maquete da área de Suvilahti. O escritório é uma sala simples, com alguns objetos empilhados em um canto, e naquela tarde tinha quatro ou cinco pessoas trabalhando. Mesmo sendo uma sala sem divisórias, com uma grande mesa central onde todos sentam-se de frente uns para os outros, estranhei o silêncio no ambiente. Todos trabalhavam voltados para seus próprios computadores, concentrados em suas atividades. Só dirigiam-se aos outros quando tinham alguma pergunta sobre trabalho. Uma situação natural para finlandeses, ao que pareceu, mas quase insuportável para um brasileiro. Por outro lado, o fato de estarmos próximos a iniciativas de naturezas similares provou-se importante. Mais de uma vez, tínhamos alguma questão a resolver e simplesmente caminhávamos alguns minutos até algum vizinho para perguntar sobre cabos, equipamentos, materiais, infraestrutura ou tintas.

Parte da programação do Pixelache aconteceria em lugares dentro de Suvilahti ou no entorno. A exposição da rede Bricolabs ficaria dentro de três contêineres de transporte marítimo, alugados especificamente para este fim. Dentro deles estariam expostas obras enviadas por integrantes da rede - vídeos, instalações, objetos tecnológicos feitos à mão e outros. Aproveitei a visita para medir os espaços possíveis para os contêineres e enviar fotos deles para Kruno Jost, o croata integrante da Bricolabs que ficaria responsável por montar a exposição. Decidimos colocá-los em frente à casa estoniana. Jost chegaria alguns dias antes do festival, acompanhado da artista eslovena Maja Kohek. Os dois tratariam então de montar a exposição com as peças enviadas por correio pelos artistas e participantes. Não teriam um projeto detalhado da montagem antes de chegar a Helsinque. "Curadoria em tempo real", como diziam Jost e Kohek. Naquela tarde em Suvilahti, aprendi que essa maneira de preparar a exposição - usual, do meu ponto de vista - era considerada por demais improvisada para os finlandeses. Estavam inseguros de que algum imprevisto pudesse comprometer a abertura da exposição, que aconteceria em um mês. Tratei de tranquilizá-los mas a tensão permaneceria, ainda que silenciada.

Para encerrar o reconhecimento de espaços fui visitar o Happi, do outro lado da avenida que ladeia Suvilahti. A rede Bricolabs havia aceitado trabalhar com todos os formatos compreendidos pela organização do Pixelache - exposição, oficinas e seminário. Precisávamos então de um espaço para realizar o seminário - um dia inteiro de painéis e debates sobre alguns dos temas que haviam emergido de nossas conversas através da internet, com pessoas de nove países diferentes. Propusemos também a participação de integrantes da Bricolabs em outras partes do mundo, através da internet. Precisaríamos também de espaço para realizar algumas oficinas que estavam sendo planejadas.

O Happi é um espaço de uso comunitário, usualmente voltado a atividades para jovens e adolescentes. São quatro andares com equipamentos diversos - de pequenas salas para reuniões com projetores, mesas de trabalho e wi-fi a um lounge com sofás e espreguiçadeiras, passando por uma pequena biblioteca com salas para escutar música e assistir a DVDs, uma sala com grandes bancadas para oficinas, entre outras. Logo à esquerda de quem entra no térreo, depois dos sempre necessários cabides para casacos, havia dois grandes sofás em frente a uma TV com três videogames diferentes. Alguns espaços eram delimitados por cortinas, e portanto facilmente reconfiguráveis. Em um extremo, um café servindo comidas simples e bebidas quentes. Do outro lado, um palco que poderia ser transformado em auditório utilizando-se as cadeiras dobráveis que eles mantinham no almoxarifado. Naquela tarde, uma dúzia de adolescentes montava uma exposição. A coordenadora do espaço levou-nos a conhecer seu escritório, no último andar. Mostrou-nos a agenda do Happi na tela de seu computador - um monitor de 32 polegadas sobre uma mesa alta, sem cadeiras, para ser utilizada em pé. Era uma pessoa enérgica, com ares de esportista - como muitos dos finlandeses. Mas não falava inglês, algo inusual para a geração dela. Confirmou a reserva das datas. Descemos para falar com o "zelador", um finlandês de uns dezoito anos de idade. Nem ele nem o recepcionista pareciam muito felizes com nossa presença ali, demandando coisas para um evento cujos objetivos eles não entendiam muito bem. Mas acabaram passando seus emails para que pedíssemos tudo formalmente. Já os jovens que frequentavam o espaço - e pareciam estar ali principalmente para passar o tempo -, demonstravam alguma curiosidade sobre nós. O Happi fez-me lembrar de alguns Pontos de Cultura e centros comunitários no Brasil. Como estes, tinha um aspecto de infraestrutura primordialmente voltada ao acesso, com uma agenda de atividades abertas para a população. Por outro lado, como eu também veria na prática no mês seguinte, era profundamente reconfigurável.

 

4.6 Aalto FabLab

Na casa de um amigo finlandês, eu folheava um livro - que ele havia adquirido em uma recente viagem ao Brasil - sobre casas projetadas por Oscar Niemeyer. Empolgado, apontou para uma página específica onde havia um móvel que havia sido projeto por Alvar Aalto. Ficou decepcionado ao perceber que eu não sabia quem havia sido Aalto, conhecido designer e arquiteto finlandês. Reconheci somente o nome que batiza também a renomada Universidade, cujo Fablab fui conhecer. Além de unidades ligadas aos diversos campos do conhecimento, a Universidade Aalto conta também com quatro "fábricas", plataformas multidisciplinares de colaboração: design factory, services factory, health factory e media factory.

O bairro Arabia de Helsinque é uma área residencial no entorno do prédio de mesmo nome, onde costumava localizar-se o que chegou a ser a maior fábrica de cerâmica da Europa. As antigas instalações industriais hoje sediam o campus da unidade de Arte, Design e Arquitetura, onde localiza-se a media factory. O exterior austero do prédio contrasta com as rampas, elevadores e corredores modernos. Cheguei acompanhado de Nathalie Aubret, coordenadora do Pixelache. Ela contou que supostamente todas as atividades daquele campus serão movidas nos próximos anos para novas instalações do outro lado da cidade. Até chegarmos no Arabia, ela não sabia se poderíamos entrar sem autorização prévia expressa. Por fim, não precisamos. No térreo, uma loja vende objetos de design, principalmente cerâmica. Peças com pequenos defeitos são expostas, com descontos significativos. Subimos pelo elevador, atravessamos uma passarela e chegamos a uma antessala que nos levaria ao Aalto Fablab, laboratório de fabricação digital subordinado à media factory. Já naquele ambiente, jovens sentados no chão pareciam debater um projeto. Aparentavam ser estudantes universitários. Atravessamos a antessala e nos vimos em um aquário de vidro, cercado de equipamentos.

Fomos recebidos pela sorridente Anu Määttä, mestre do estúdio. Ela é a pessoa responsável pelo funcionamento cotidiano do Fablab: supervisiona agendamentos, máquinas, pessoal e suprimentos. Precisamente por isso, Anu acompanha de perto grande parte dos projetos desenvolvidos por ali. Levou-nos para dar uma volta pelas instalações. Aqui e ali, indícios de experimentos: uma caixa com pedaços de madeira cortados à máquina, em formas curvas e compridas. Alguns anéis coloridos produzidos na impressora 3D. Uma mesa com objetos mais complexos. Parece ser um jogo comum na cultura maker elaborar e fabricar objetos que não seria viável construir à mão: encaixes, dobradiças, peças embutidas em outras. O Aalto Fablab utiliza pouco as capacidades de videoconferência que costumam ser associadas à rede internacional de Fablabs. Já têm grande parte dos equipamentos usuais em Fablabs, mas pretendem adquirir alguns equipamentos mais complexos ou com maior qualidade, como um scanner 3d.

Ao contrário de nosso guia no Helsinki Hacklab alguns dias antes, Anu parecia estar mais interessada em nos apresentar as pessoas do que as máquinas. Grande parte delas eram estudantes ou professores da própria Universidade, desenvolvendo protótipos para seus próprios projetos. Anu conta que em princípio qualquer pessoa pode agendar horários para usar o Fablab. O uso das máquinas é gratuito e o material precisa ser pago somente por quem utilizar mais do que o equivalente a cinco euros. Eles têm horários específicos para não-estudantes. Mas não é tão comum que apareça alguém de fora da comunidade universitária. Ela demonstrou bastante interesse e flexibilidade para fazer coisas acontecerem. Perguntou se precisaríamos de alguma coisa do Fablab para o Pixelache, mesmo que fosse em horários que não costumam trabalhar, como os fins de semana.

Operando há alguns anos, o Aalto Fablab já é conhecido tanto na cena artística e cultural da cidade quanto internacionalmente, em grande medida pela atuação de Massimo Menichinelli, que além de ter sido um dos responsáveis pela criação do Fablab também costuma escrever extensivamente e fazer apresentações sobre Fablabs12. Apesar da repercussão de suas atividades, entretanto, representantes do Fablab não puderam afirmar muito a respeito de sua continuidade a médio prazo. Aparentemente, eles costumam funcionar através de recursos concedidos anualmente, o que associado à sua dependência de uma infraestrutura mais dispendiosa do que outros formatos de labs cria alguma fragilidade. Somando-se a isso a iminência de mudança de todo o Campus Arabia da Universidade Aalto para novas instalações, o resultado é que algumas pessoas ali estavam menos otimistas do que eu imaginara. Talvez essa insegurança seja justamente uma consequência de sua posição ambígua, lidando simultaneamente por um lado com legítimas aspirações colaborativas e de transformação social, e por outro lado com um contexto, métodos e vocabulário originados na produção industrial tradicional.

 

4.7 Momentos

Cerca de um mês após aquela primeira visita à Finlândia, fui uma vez mais a Helsinque para a realização propriamente dita do festival Pixelache. Pude então presenciar outra dinâmica relacionada ao contexto dos labs experimentais: além da cena local, dezenas de pessoas envolvidas com arte, tecnologia, ativismo e pesquisa afluíram à cidade, vindas de diversos países. A programação de oficinas, palestras e intervenções imprimia outro ritmo às pessoas e às conversas. Uma escolha interessante do festival foi a movimentação constante, acontecendo em diversos lugares. Na noite prévia à abertura, todos os participantes que já estavam na cidade foram recebidos no Made in Kallio. Café, loja com produtos de designers independentes e espaço para trabalho, no dia seguinte o Made in Kallio sediaria algumas das oficinas práticas do Pixelache. Uma sessão de trabalho sobre outro evento e a palestra inaugural também aconteceriam em uma Universidade.

A sessão oficial de abertura foi na Casa da Cultura Estoniana, em frente à qual residia a exposição da rede Bricolabs. À noite, todos os participantes foram convidados à sauna de Suvilahti. No segundo dia do festival, as atividades concentraram-se no Happi, onde realizamos a conferência Bricolabs. À noite jantamos e tomamos a balsa (na verdade, um navio de grande porte) até Talim, na Estônia. Passamos a noite em um hotel e pela manhã tomamos um barco menor, para cem pessoas, em direção à ilha de Naissaar. Já na chegada, foram definidos os espaços e a agenda dos dois dias que passaríamos ali. Mesmo com o frio intenso, diversos debates, conversas e sessões de trabalho tomaram lugar em Naissaar. A sensação que tenho daqueles cinco dias é que se parecem duas semanas. Foram dias cansativos, mas imensamente enriquecedores.

4.8 Intencionalmente EM BRANCO

Entre as impressões que permaneceram após meus dois períodos na Finlândia, me parece particularmente relevante haver encontrado espaços bem mais abertos do que poderia imaginar. Kulma Huone, como mencionado anteriormente, é praticamente uma sala que pode ser transformada no que se quiser fazer com ela. Até mesmo Happi, que parece ter uma natureza de funcionamento bem determinada, adaptou-se bem às nossas necessidades com a reconfiguração de pequenos elementos de mobiliário. O prédio que sedia Koelse e o Helsinki Hacklab, e também o complexo Suvilahti, são simplesmente espaços industriais desocupados que foram minimamente adaptados para o reaproveitamento. Não existe um esforço centralizado de criação prévia de significado para eles, como se vê frequentemente em projetos de reurbanização no Brasil. Simetricamente, também não são espaços deixados para serem devorados pela especulação imobiliária ou então transformados em destroços. Parece existir sim uma intenção de ocupação, mas ela se dá de maneira mais leve e sutil, sem tanta interferência dos detentores da infraestrutura a respeito dos temas, estruturas e métodos de sua ocupação.

Analisando a experiência de campo relatada neste capítulo em contraste tanto com o histórico de labs experimentais quanto com as construções recentes no Brasil, passei a trabalhar com a ideia dos labs como espaços intencionalmente deixados em branco, que exploro a seguir.

1Mesmo na capital da Finlândia, país que ainda mantém a reputação de uma sociedade mais igualitária, parece repetir-se um processo recorrente em outras cidades contemporâneas europeias: à medida em que as fábricas tradicionais as abandonam em favor de países em desenvolvimento, os bairros historicamente ocupados pelos funcionários industriais veem sua população se transformar. Correndo o risco de tornar a situação caricatural, ouso esboçar o ciclo usual da chamada gentrificação: uma desvalorização imobiliária inicial em tais vizinhanças atrai imigrantes em busca de alugueis baixos. Em seguida junta-se a eles uma população boêmia - estudantes e jovens professores universitários, artistas e pesquisadores em início de carreira. Este segundo público é usualmente atraído não somente pelos preços mas também pela liberdade e pela diversidade cultural, usualmente incomuns em bairros europeus de classe média. Por fim, as mesmas regiões - agora efervescentes de produção cultural e vida noturna - acabam por atrair uma classe urbana emergente, com maior poder aquisitivo e curiosa por novidades. Esse processo usualmente acaba por expulsar o que resta dos habitantes tradicionais, os imigrantes e em seguida também os artistas e universitários, que vão atrás de outros bairros nos quais o mesmo processo se reinicia. Ali em Helsinque a questão não é tão radical quanto em cidades como Londres, Berlim ou Barcelona, mas ainda assim o mecanismo da gentrificação parece estar à porta. Me interessa aqui somente apontar essa tendência, que interessa para a investigação sobre labs à medida em que estes dialogam com questões sociais urbanas.

2O autor organizou uma das etapas do Tropixel, realizada em outubro de 2013 na cidade de Ubatuba/SP.

3A rede internacional Bricolabs foi criada em 2006 a partir de uma série de conversas que tive com Rob van Kranenburg, Bronac Ferran, Jaromil e Matt Ratto. A intenção, à época, era promover a articulação entre diversos projetos no mundo inteiro orbitando ideias como "infraestruturas genéricas", a aproximação entre hardware, software e espectro livre, e a apropriação crítica de tecnologias. Organizada através de uma lista de debates por e-mail, a Bricolabs conta hoje com cerca de duzentos integrantes nas Américas, Europa e Ásia - envolvidos com labs experimentais, teóricos críticos, artistas, curadores e produtores culturais.

4O idioma finlandês vem do ramo Fino-Úgrico, aparentado somente ao Estoniano e ao Magiar da Hungria.

5IRC (Internet Relay Chat) é um protocolo voltado à criação de salas de bate-papo na internet. Um dos servidores de IRC mais utilizados no mundo é o Freenode, disponível em http://freenode.net (acessado em 30/11/13)

6Cheguei inclusive a perguntar se nossa exposição poderia ser um laboratório em andamento, ao que me responderam explicitamente que não. Em uma das reuniões da rede Bricolabs, comentou-se sobre o desconforto em trabalhar com "coisas penduradas em paredes".

7Helsinque tem uma população de 610 mil habitantes (Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Helsinki, acessada em 17/11/13)

8O autor é um dos fundadores da MetaReciclagem, rede brasileira que trabalha com a apropriação crítica de resíduos eletroeletrônicos, tendo estabelecido ao longo da última década dezenas de laboratórios de reutilização de computadores doados, em diferentes partes do Brasil.

9Obsolescência planejada ou programada define a escolha da indústria em fabricar produtos cuja vida útil é intencionalmente reduzida, induzindo sua substituição em menos tempo.

10Coletivo de Belo Horizonte que trabalha com esculturas e objetos artísticos construídos com a lógica da gambiarra e da reutilização. Mais informações em http://gambiologia.net (acessado em 30/11/13)

11Movimento literário criado nos anos oitenta por autores de ficção científica como Bruce Sterling e William Gibson. A literatura ciberpunk contrapunha-se às tendências épicas do campo ficção científica, criando cenários distópicos nos quais megacorporações e inteligências artificiais detinham o poder.

12Em seus textos, Menichinelli costuma minimizar o papel do MIT Media Lab na criação da rede de Fablabs - indica que eles surgiram lá "por acaso". Também volta sua atenção para questões particulares que não costumam ser citadas nas referências estadunidenses de Fablabs, como criação de comunidade, sustentabilidade, troca, etc.