Anexo I - Entrevistas

3. Anexo I: Entrevistas

3.1. Lucas Bambozzi

Lucas Bambozzi é artista multimídia e pesquisador em novas mídias. Produz vídeos, instalações, performances audiovisuais e projetos interativos, tendo trabalhos exibidos em mais de 40 países. Conduziu atividades pioneiras ligadas a arte na Internet no Brasil entre 1995 e 1999 na Casa das Rosas. Foi curador e coordenador de eventos como Sónar SP (2004), Life Goes Mobile (Nokia Trends 2004 e 2005) e Motomix 2006, Red Bull House of Art (2009) e Lugar Dissonante (2010), tendo atuado também em eventos coletivos como Mídia Tática Brasil (2004), Digitofagia (2005) e Naborda (2012). Foi artista residente no CAiiA-STAR Centre/i-DAT (Planetary Collegium) e concluiu seu MPhil na Universidade de Plymouth na Inglaterra. Como artista se dedica à exploração crítica de novos formatos de mídia independente. Em 2010 foi premiado no Ars Eletronica em Linz/Austria com o pojeto Mobile Crash e em 2011 teve uma retrospectiva de seus trabalhos no Laboratório Arte Alameda, na Cidade do México. Em 2012 participou das exposições Tecnofagia (Instituto Tomie Ohtake, SP) e da Bienal Zero1 (San Jose, EUA) com trabalhos comissionados pelos organizadores. Entre 2013 e 2014 participou da Bienal de Artes Mediales no Chile, das exposições Gambiólogos 2.0 no Oi Futuro, BH e Singularidades, no Itaú Cultural em SP. São uma constante em seus trabalhos recentes as questões relacionadas ao conceito de espaço informacional e as particularidades de uma arte produzida a partir das mobilidades e imobilidades do contexto urbano. É criador e coordenador do Festival arte.mov – Arte em Mídias Móveis (2006-2012) e do Labmovel, um veículo criado para atividades laboratoriais e artísticas em espaços públicos (2012) que recebeu em 2013 menção honrosa no Prixars, do Ars Electronica. É um dos idealizadores e curadores do Multitude, um evento de arte contemporânea que tem como ponto de confluência o embate com o termo multidão.

Website: http://www.lucasbambozzi.net

Retrospectiva de projetos

“Há uma diferença entre fazer um evento e fazer uma atividade disparadora de outras. Pensamento de formação, que pode levar à criação de novos sistemas e projetos, de passar o conhecimento adiante. Fiz o Fórum BHZ Vídeo. Falta de um circuito em BH. Rio já tinha. (….) Era um evento, mas viabilizou pesquisas e uma mostra. (….) O processo laboratorial está imerso na produção de eventos. Depois fiz o Eletronika, focado em música eletrônica, com Rodrigo Minelli. Pensando uma atividade que explorasse o lado mais processual que poderia ser compartilhado com os frequentadores do festival.”

“Posteriormente participei do Fórum de mídia expandida. Uso de softwares de áudio sendo usados por gente de imagem. Remix. VJ contaminando as artes visuais, o vídeo. O Fórum começava a falar mais de portabilidade e mídias móveis. Aí fizemos o arte.mov. Foi o primeiro festival do Brasil focado na mobilidade, junto com o Mobilefest que é da mesma época. Tinha poucos no mundo. Houve exploração processual, laboratorial. Exploramos o que dava pra fazer com isso que não seja só para as companhias venderem.”

“Pra mim nunca interessou fazer o evento em si, grandes eventos. Mas sim eventos que pudessem viabilizar isso [processos laboratoriais]. Isso não é um discurso vazio, é por uma necessidade minha de nunca ter encontrado essas oportunidades para desenvolver meu próprio trabalho.”

“Na primeira edição do Arte.mov tivemos vídeos de curtissima metragem. Levavam em consideração a linguagem, a deficiência técnica dos aparelhos. Dava um celular top de linha como prêmio. Alguns ganhadores usaram os celulares que receberam para fazer vídeos no ano seguinte, e daí viraram realizadores.”

“Com o arte.mov, lançamos um edital. O trabalho do Bruno Vianna foi uma espécie de modelo para o edital. A gente comissionou um trabalho dele que em 2008 serviria como modelo para o edital de arte em mídias moveis. Ele criou uma espécie de laboratório. Levamos ele no parque, ele pesquisou, desenvolveu um processo laboratorial que a gente buscou repetir nos anos seguintes. Isso fez estimular uma cena, assim como algum pensamento crítico, já que era muito nítida a pegada consumista naquele momento. O aspecto laboratorial vinha como forma de neutralizar o aspecto consumista, dar outro uso para aquilo [a tecnologia].”

“A gente sempre fez catálogos. Tem uma pilha, todo ano a gente fez 1000, 2000. Distribuímos pra muita gente. É anacrônico, estamos acumulando papel.”

“Falei antes sobre o evento criando coisas que continuam para depois do evento. Uma parte é criar coisas que fazem sentido no evento, mas também tem o lado de ver o que falta. A escassez é o que leva à discussão. A constatação de que sempre faltou um laboratório, nunca foi suficiente, mesmo entre os que existiram.”

“Edital de mídias locativas do Arte.mov: em alguns momentos a gente queria que tivesse sido um lab de fato para algum artista desenvolver ali junto com outros uma atividade, assim como aconteceu no caso do Bruno. Ele fez o software, levou lá e desenvolveu. Teve um processo laboratorial mas não um lab de fato. Mas o que é um lab de fato? Quais suas características? Proporcionar a oportunidade, viabilizar algo, mas em termos de quê? De recursos, a gente conseguia. Mas talvez estes recursos estejam associados a tempo, espaço, e instrumental (equipamentos). O edital funcionou assim, mas em algum momento a gente pensou 'Por que não criar uma oficina'? Em vez de um projeto que será apresentado no ano seguinte, por que não algo que possa ser mostrado 5-10 dias depois? Aí surgiu o Networked Hacklab.”

“Networked hacklab tinha uma vertente mais educativa. Tinha um bom relacionamento com a Vivo, antiga Telemig Celular. A equipe foi para a VIVO e passou a definir as diretizes culturais da empresa.”

“Pensamos o Vivolab como uma parte mais educativa. A primeira ação foi o Networked Hacklab. Isso era pensado por nós e proposto para a Vivo. A gente conseguia parceiros para abrir as portas dentro da Vivo. Tínhamos um bom contato, algo privilegiado, mas na instância nacional da Vivo não era tão fácil. Eles seguem uma lógica do marketing, da marca, peças gráficas, visibilidade. Tivemos parceiros que estavam interessados não em marketing, mas nesse tipo de projetos que propusemos. Assim foi que surgiu a Nuvem, e teve outros vários também em Belém, Porto Alegre, Salvador, Goiânia. Eram ações que antecediam o festival e realizavam hacklabs temporários, por meio das leis estaduais de isenção fiscal.”

“Se a gente dependesse somente do Minc ou Lei rouanet, usaria só um tipo de isenção fiscal. E isso é uma coisa crítica do ponto de vista das leis do Brasil. Quem consegue um projeto na Rouanet pode receber verbas vindas de um tipo de imposto, mas tem muita gente querendo. Quando se chegava com uma carta de projeto aprovado pela lei Rouanet precisava disputar com dezenas de projetos que estavam já na fila. Nossa saída foi descentralizar usando as leis estaduais que são menos burocráticas, têm valores menores mas são mais ágeis. Fomos disparando projetos com parceiros no Brasil inteiro. Esse era um interesse expresso do ministro Gil e do Juca, a descentralização.”

“Sendo mídias locativas, a gente fazia coisas específicas de cada lugar. Belém nas praças. Salvador é uma cidade ruidosa. Porto Alegre game na orla. Lidando com as características de cada cidade. Pensando cada ação em função da especificidade (da lei e topográfica, da cidade mesmo). Nosso centro era BH, não era exatamente um centro. Rio fechou a lei estadual por muito tempo, e quando voltou, já tinha pronto o projeto da Nuvem. Assim como Felipe em Ubatuba, dependíamos da lei estadual.”

“A Vivo acabou descontinuando o apoio e escolheu voltar para a lógica dos grandes eventos em São Paulo e no Rio, que é uma lógica de agência de publicidade, nao de gente de arte e cultura.”

Labmovel

“Labmovel surgiu por necessidade de espaço alternativo e flexível. Com arte.mov, às vezes não conseguíamos trabalhar porque os espaços são agendados com um ou dois anos de antecedência. Mesmo quando precisávamos só de uma base. Surgiu a ideia de um trailer. Apareceu um edital da telefônica de arte, tecnologia e educação, e então montamos o projeto que estava latente, pensando num espaço deslocável. Eu e Gisela Domschke. Teve apoio, ajuda estrutural do arte.mov. Coincidiu com a desestruturação do programa da Vivo. Tentamos entrar com os editais que existem, ganhamos o Prince Claus Fund, Proac, Mondriaan. Estamos no momento finalizando o Proac.”

“O primeiro projeto do labmovel foi uma residência. Foi circunstancial, proposto pelo NIMk, Instituto de Mídia-arte da Holanda, mas a gente não continuou. O NIMk tinha um trailer e perguntou se não queriamos fazer o mesmo por aqui. Lá o NIMk foi desestruturado em seguida pelo governo, junto com todas as outras organizações - só sobraram os grandes patrocinadores. O Labmovel inicialmente era um projeto de oficinas em lugares onde não havia oferta de arte e tecnologia. Tentamos o primeiro Proac. A atividade cultural em São Paulo se concentra na região central. Zona Norte, por exemplo, não tinha nada, mas concentra 90% das escolas de samba. Só o SESC tem atividades em toda a cidade. A ideia era levar projetos para onde não há oferta. Não só com o arte.mov, mas outros eventos sabem que levar público ao centro é complicado. Os eventos concorrem com dezenas de outros na Paulista, na Augusta. Fazer o cara deslocar-se duas horas para vir ao centro e voltar é demais, por isso a ideia foi de criar uma situação laboratorial em lugares onde ela não existe.”

“A ideia era fazer em qualquer lugar, mas aos poucos vimos que era bom ter uma situação de apoio, um banheiro por perto, energia, etc. Não conhecemos Sacomã, Paraisópolis, Heliópolis, Freguesia, e chegar sem conhecimento local é difícil. Fizemos uma parceria com centros locais, em especial nas oficinas para mulheres com o recurso do Prinz Claus. Não pedimos recursos para os parceiros locais, chegamos com a estrutura paga. Oferecemos tecnologias fáceis de ser replicadas, que podem continuar depois, como ensinar a fazer um amplificador com microfone, e ele pode fazer outros depois. Fizemos na Casa do Zezinho com o Panetone (Cristiano Rosa). Quem quiser, pode continuar fazendo, e pode encontrar nisso um ganha-pão, um hobby pra complementar salário.”

“Para entender os lugares, contamos com os parceiros. Labmovel foi restrito a São Paulo, com poucas exceções. Fomos a Ubatuba, fomos a Santos, realizamos uma oficina de escuta e histórias em Campinas num manicômio.”

“Foram oficinas curtas, um processo laboratorial bem rápido, de 1 a 3 dias. Não é uma lógica de pensar em resultados. A comunicação é prioritariamente através do site e das redes sociais. No começo contratávamos assessorias de imprensa, mas não fazia sentido. Estão muito acostumadas com evento grande, notícia, release, cobertura, mas o que a gente faz não é nada grandioso. Não interessa à grande mídia. Buscamos mais inscrições e documentar, mais documentação do que divulgação.”

“Um dos formatos herdados do arte.mov foram pequenos documentários, um teaser e outro de 7 a 10 minutos que fica no canal de Vimeo, e pode ser usado para referência. Depois vai para o blog e redes sociais. Com arte.mov a gente já fazia isso. Do arte.mov temos uma ótima documentação em vídeo, péssima em website (era promocional, de divulgação e não registro). Mas arte.mov investia muito em catálogo, na maioria bilíngue, o que é trabalhoso. Eram textos inéditos, incluindo a biografia dos participantes, análise critica, fotos. Vêm sendo estocados e não sei o quanto as pessoas continuam juntando e colecionando. Na época as pessoas querem os catálogos, mas uns anos depois fica obsoleto, com poucas exceções. Arte.mov era cabeçudo, de crítica, nem tão preocupado com grande política.”

Produtos e documentação

“O produto está sobretudo na documentação feita, que mostra tanto o processo quanto o potencial de afecção, de encantamento e transformação. A ideia [do Arte.mov e Labmóvel] não era gravar só o resultado, era gravar enquanto estava acontecendo, fazendo, depois que parou de fazer, e gravar depois da coisa pronta. [...] Quando o patrocinador cobrava o produto, a gente mostrava o processo e a alegria de alguém fazendo. Isso sanava a ansiedade por um produto. A mediação envolvia mostrar que isso também é produto. O sorriso na criança também é produto.”

“A Vivo em algum momento descobriu que uma das ações mais interessantes de marketing foram os desdobramentos produzidos pela instalação de uma antena próxima a Alter do Chão (Pará) que proporcionou conectividade a uma população que não tinha acesso à telefonia. Os professores começaram a dar aula dentro do barco, começaram a perceber que o acesso à tecnologia poderia incorrer numa dinâmica de mudança social. Começaram a ver a antena de Alter do Chão com um dos grandes projetos da Vivo. Isso nos ajudou a não precisar um comprometimento de resultados, tanto é que a Nuvem nunca precisou de relatório para demonstrar coisa pronta, apenas o logo está no portal.”

“Foi um equívoco pensar o site [do projeto] como divulgação factual e promocional para o ano, e não de conteúdo disponível para um futuro próximo Tinha os videos, mas houve um problema técnico e o material dos anos anteriores não está disponível na web.”

“O Labmovel está parecido, mas é um blog, mais fácil, além do Vimeo e Flickr. E agora investimos em um catálogo para juntar todas as ações do Labmovel até hoje, citando tudo. Para mostrar um resultado, em vista das falhas que a gente perecebeu no site. Há irregularidade de redação. Já os documentários foram feitos sempre com o [Lucas] Gervilla comigo, existe uma afinação que funciona, um formato que funciona. Não é para o patrocinador, é para o projeto, como responsável pela memória do projeto. No Labmovel, com Gisela, isso vira uma responsabilidade de recontar a história para novos contextos.”

“Labmovel é feito para o tamanho que é. Difícil pensar em expansão. Como seria? Criar 5 ou 6 kombis? Fui em quase todas as ações, tenho um envolvimento afetivo. Trata-se de um projeto modesto, que tende a permanecer. Se tiver que expandir, vai ter que encontrar parceiros que queiram levar isso como a gente vem levando, com a mesma paixão.”

“Acreditar no processo laboratorial não é difícil porque a falta de laboratórios é patente. No meu período de universidade, nunca tive acesso a laboratório. Quando fui estudar na Inglaterra, não tinha lá, só depois que eu saí. Dou aula em universidades como SENAC e FAAP que têm recursos, estrutura tecnológica mas não têm pensamento laboratorial. Não se deixa usar aquilo para fins de experiência, de mera experiência, mas só pra trabalho demandado por professores. Isso é um problema na academia, na arte. A gente fica tentando trazer a experiência da ciência para o campo artístico, pela falta dessa dinâmica no campo artístico.”

“Acho que esses processos laboratoriais hoje estão muito conectados com o processo de residência. Quando a gente começou no Labmovel uma residência a gente acreditou que a residência era o dispositivo, a dinâmica que permitiria o trabalho laboratorial. Colocar-se em residência é colocar-se num processo de tentativa e erro, de deixar que coisas surjam, viabilizar ideias que não são as grandes ideias mas são tentativas. Foi virando uma prática mais comum que a dos labs. Porque a residência pode acontecer sem nenhum recurso. Demanda muitas vezes só um espaço, ponto de encontro, a pessoa nem precisa residir de fato, mas ter um espaço, atelier a ser compartilhado. O que precisa tanto para um lab ou residência ou algo que seja uma fusão de ambos não é muita coisa: é espaço, tempo, a soma dos dois, e acesso a alguma tecnologia. [Por exemplo] 'vamos fazer um projeto em torno de uma impressora 3d'.”

“Quando eu comecei como artista, quase pedia desculpas por me ver artista. Não fiz arte, não pretendia. Então sempre coloquei o nome “experimental” nos meus trabalhos: vídeo experimental, experiência. Lab e experiência são duas coisas que estão juntas. Sempre fiz projetos experimentais mesmo não tendo um laboratório. A minha ideia é sempre ter um laboratório para continuar fazendo experiências. O Labmovel é isso, eu nunca fiz um projeto meu no Labmovel, sempre de outros artistas - que tenho certeza que querem esse tipo de oportunidade para fazer experiências. Querem ter essa circunstância - residência, viagem, dispositivo, tecnologia.”

Exposição Multitudes

“É uma exposição que é uma experiência e tem um dispositivo que permite um laboratório curatorial. Tem inspiração de outras experiências anteriores, a ideia do SUS, atendimento público, curador de plantão. Não é uma invenção, é um modelo, muitos artistas já fizeram trabalhos em função disso. Vinham, falavam com o curador. Voltavam e ele ainda tentava fazer alguma coisa diferente. Isso tem um parentesco com a questão laboratorial.”

“Multitude não vai ter catálogo impresso. O SESC desaprova isso pelo custo, ecologia e medo do encalhe. E pelo trabalho que dá não justificava ser só em PDF. Sabendo disso, carregamos mais o site com esse compromisso como ponto de reunião de materiais. Tem trabalhos que entraram pela curadoria de plantão que só estão no site. Um dos trabalhos inclusive foi dar uma bagunçada no site. O site vai continuar, é nossa forma de registro. Está no SESC, mas vamos manter um backup em outro servidor.”

Políticas públicas de cultura no Brasil

“Já participei da elaboração de editais, no arte.mov tivemos o edital de mídias móveis e outro só para a região amazônica, mais um para o sul. Fui da comissão de muitos editais. Sei que há muita dificuldade de entender o experimental. Eu sou sempre o membro que entende o estranho. Raramente surgem editais que dão conta do aspecto experimental. Os poucos que aparecem não duram. Não há interesse em montar uma cena, mas sim de se aproveitar da cena. É o avesso do laboratório, é o avesso da pesquisa. Se não há ressonância de marketing, parece que as iniciativas se apagam.”

“Como exemplo prático, o edital de arte e tecnologia da Telefônica que escolheu o Labmovel teve projetos bem arrojados, muito interessantes, bem-sucedidos. Mas o edital acabou, talvez porque ao valorizar o lado processual eles não tiveram resultados quantificáveis e não acharam que compensava a continuidade. Quando o Labmovel ganhou eu senti o peso da quantidade de gente que estava de olho no edital e me falou 'você ganhou, hein?'. Havia muita concorrência.”

“Pouco antes houve um do MINC, o XPTA, para pensar arte e tecnologia com a vertente da educação. Havia uma expectativa imensa com relação a esse edital. Foi extremamente concorrido, bastante debatido, existia muito interesse que ele acontecesse e continuasse existindo. Mas ocorreu uma única vez. Eu me pergunto: por quê? Por que só uma vez se havia tanta gente interssada nele? Gente de arte e tecnologia, e afins, e social e ativismo e pensando em politicas públicas. Eu digo que haveria lastro de público de interessados para ele continuar por mais 4 ou 5 anos pelo menos, e aí se fazer a avaliação de continuidade ou não. As politicas públicas parecem emperrar no interesse imediatista da gestão daquele momento, do gabinete, do secretário. Muda o secretário, o outro não tem interesse em dar continuidade.”

Economia criativa, experimentação e inovação

“Tenho certeza de que a experimentação seria um caminho natural da inovação. Mas parece que por marketing tentaram colocar uma nova embalagem no termo inovação, como uma nova vertente hype, que vem sendo pregada por essa lógica de indústria cultural. Nunca fui simpático a essa ideia por alguns motivos. Vinha como tábua de salvação para uma política que parecia ter caminhos interesantes. Coloca nas mãos da iniciativa privada uma responsabilidade que poderia ser do Estado. Vem com uma roupa de neoliberalismo que não se encaixa na lógica de uma responsabilidade de política cultural dentro da qual a gente vinha acreditando, na medida que deixa na mão do empresariado, mesmo que jovem, e coloca nos mesmos parâmetros de sobrevivência de uma empresa, o lucro. Transformar a experimentação em lucro não acredito que seja o caminho ideal. A experimentação tem que abarcar o prejuízo, o erro, a falta de público. Uma experiência que pode não funcionar agora mas pode funcionar para uma proxima geração. A indústria cultural quer resultados imediatistas, quer resultados que sao muito próximos da ideia de marketing. É uma continuação, um tentáculo mais refinado, capilar, do neoliberalismo.”

3.2. Pedro Soler

Formado em Artes Digitais pelo Instituto Audiovisual da Universidade Pompeu Fabra, Barcelona – Espanha (1997-1998), Pedro Soler desenvolveu uma intensa carreira profissional como criador e agitador cultural. Articulador de inúmeras iniciativas individuais ou coletivas relacionadas com a arte multimídia e o teatro, tais como Fiftyfifty (distribuidora independente de conteúdo multimímida), Dadata (criação audiovisual), Didascalie.net (plataforma para teatro e multimídia), GISS.tv (serviços de streaming com software livre). Curador do Festival Sonar em Barcelona entre os anos 2000 e 2006, artista-programador para teatro em Paris de 2003 a 2006. Entre 2006 e 2009 trabalhou como Diretor de Hangar.org, Centro de Produção de Artes Visuais em Barcelona. Foi curador de diversas exposições. Em 2011 iniciou Plataforma Cero, um centro de produção e pesquisa artística dentro do centro de arte LABoral em Gijón, Espanha. A partir de 2012 participou com oficinas e intervenções no Pixelache (Helsinque), Grec mov|i|ment (La Caldera, Barcelona), LabSurLab (Quito), Summer of Labs (Euskadi/Galizia/Portugal), 404 School Not Found (Intermediae, Madrid), RCK (La Porta, Barcelona), Tecnomagxs (Laboratorio de Arte Alameda, México) entre outras atividades. Atualmente reside em Medelín, na Colômbia, onde colabora com instituições como Casa Tres Patios, Platohedro e Centro de Arte Contemporânea de Quito. Atualmente é consultor do projeto “Taller Público de Experimentación”, um laboratório que será inaugurado no Parque Explora de Medellín (Colômbia) em meados de 2015.

Website: http://root.ps

A cultura como um bosque

“A ideia da 'cultura como bosque' vem da observação de como a cultura cresce e é multiplicada, fazendo uma analogia direta do funcionamento da natureza e como a gestão e as políticas públicas poderiam aplicar o ponto de vista da permacultura. A base do trabalho é a escuta, o olhar, ou a atenção. Prestar atenção a tudo o que acontece ao redor, o que realmente existe, o que as pessoas estão gerando e desejando. A partir daí é possível começar a entender o que está acontecendo com a cultura. Muitas vezes achamos que sabemos o que é melhor para os outros, mas às vezes estamos enganados. E a partir do fazer, das práticas é possível construir políticas públicas de gestão e espaços para dar acolhida a este tipo de práticas.”

“A permacultura nos ensina que a natureza já sabe como se organizar. Diferente do sistema industrial, onde se promovem as monoculturas e os cultivos geneticamente modificados, nosso ponto de vista é o da diversidade, dos nichos, este bosque que floresce em múltiplas formas. Aqui a ideia de utilidade, de verdadeiro e falso, de certo e errado deixa de fazer sentido. Imaginamos uma cultura de diversidade imensa com um monte de nichos que procuram o seu lugar. Então o interessante é dar suporte a essa diversidade e fortalecer as culturas, além de apoiar as pessoas nos seus processos de criação. Não devemos esquecer que os gestores culturais não são os criadores, os criadores são a base e toda a gestão deve estar muito conectada com o que está acontecendo na base. E tem que se preocupar em colocar em movimento estratégias e políticas que enfatizem a diversidade e a multiplicidade da produção cultural. Também há uma multiplicidade de formas de sustentabilidade, imaginamos uma mistura de crowdfunding, recursos públicos e privados. Cada projeto tem seu próprio perfil de gestão, financiamento e apoio. Acreditamos que é uma função pública do Estado e dos municípios o apoio desta diversidade cultural (de acordo com a declaração da Convenção sobre a Proteção e promoção da diversidade das expressões culturais da Unesco, em 2005).”

“Outra questão é a mudança da ideia do consumidor e produtor. Esta cultura está mais relacionada ao fazer do que ao consumir, e o que consumimos tende a ser o que é produzido pelos nossos pares. Também pensamos em como a cultura é distribuída e compartilhada, o que leva a considerar a necessidade de estratégias de documentação e gestão do conhecimento. Por isso é importante que os conhecimentos sejam abertos e compartilhados, o que vai além de publicar um documento na internet. Há todo um trabalho para que a cultura seja acessível, replicável, para que seja estendida para além de uma atividade pontual. Um exemplo disso poderia ser o trans-hack-feminismo, que inventamos em 2011 quando aconteceu um encontro do movimento transfeminista na Espanha com o movimento hacker, que aconteceu no Summerlab de 2011 em Gijón (Asturias-Espanha). A partir daí começou a se chamar assim e há uma semana tivemos o primeiro festival trans-hackfeminista em Calafou. Estas coisas vão emergindo, não dá para planejar as práticas. É um exemplo de algo que emerge organicamente e depois tem continuidade, ninguém inventou. Identificar o que está emergindo nas práticas e dar acolhida, arriscar-se a dar espaços para este tipo de práticas.”

“Também temos que considerar como responder às necessidades dos criadores, tanto em termos de espaços e máquinas, e como vamos viver fazendo tudo isso. Não é fácil viver como artista, temos que construir economias mistas, que atravessem as práticas, a partir da replicação de atividades, do conhecimento. Na minha experiência a sustentabilidade vem de sistemas variados, múltiplos e diversos de financiamento. Em 2013 fiz um trabalho de pesquisa no Canadá sobre como se sustentam os artistas digitais. Ninguém se dedicava somente a criar arte. Todos davam aulas, faziam oficinas, outros trabalhos, e todos vivem numa economia mista. É muito diferente financiar um espaço em São Paulo do que no nordeste, ou num lugar afastado. Na Colômbia e no Equador acontece a mesma coisa. Aqui a diversidade pode ser pensada como territorialidade, e a partir das diferentes linguagens de um país multicultural, levando em conta os mecanismos de acesso para toda a população. Há pouco estive como júri para o Ministério da Cultura do Equador e eles tinham um sistema bastante estrito de distribuição pelo território. Você ganha mais pontos se está trabalhando com indígenas, fora dos centros urbanos, num contexto rural, em espaços orientados à transformação social. Não estamos falando somente em dinheiro, mas em sustentabilidade, numa mudança na matriz produtiva do modelo.”

Exemplos de experiências de laboratório relevantes/contextos de emergência

“Durante o processo de pesquisa e criação interativa em teatro, experiências desenvolvidas entre 2001 e 2004, começamos a trabalhar com software de imagem e áudio em tempo real. Começamos então a fabricar protótipos de software e foi montada uma plataforma para socializar essas informações. Era preciso inventar todo um entorno e aí o sucesso de um projeto depende totalmente da capacidade de colaborar, compartilhar recursos, algo fundamental no teatro já que é tão cara a realização. Neste laboratório geramos diversos espetáculos e realizamos oficinas na França.”

“Depois disso passei pro Hangar, que é um lugar importante devido a ter uma comunidade muito ativa em volta, há recursos para contratar uma equipe de trabalho que acompanha e faz a mediação, algo extremamente importante porque um laboratório não pode ser um espaço onde aconteça qualquer coisa: tem equipamentos, as coisas têm que ser cuidadas no seu lugar, há uma série de protocolos para que um laboratório possa funcionar coletivamente.[….] É um espaço de cruzamento das comunidades de desenvolvedores, pessoas que gostam de hackear, e também artistas que procuram criar algo por si mesmos, ou encarregar a realização de um projeto, daí que conseguimos bastante financiamento do laboratório por meio dos pedidos de produção técnica dos artistas. Sempre tem que cuidar do equilíbrio, do espaço ficar disponível para a comunidade. O laboratório tem que ser compreendido como espaço de experimentação e prototipagem, não espaço de produção em massa. Tem que ser possível o erro, a experimentação. Isso pode nutrir também uma rede mais ampla de negócios, de empresas e organizações que depois se encarregam da parte de produção e desenvolvimento. O laboratório nutre outro espaço, não só de artistas de fora mas também de residentes que aproveitam a infraestrutura do lugar.”

“Quando estive no Hangar imaginamos junto com a diretora de La Laboral fazer um encontro anual dos hackers ibéricos em Gijón, Astúrias. O Summerlab é um encontro de uma semana, você vem e propõe um nodo de trabalho, e qualquer um pode participar. A organização é completamente horizontal baseada nos “nodos” ou grupos de trabalho. Cada um vem fazer suas coisas. No início foram 30 ou 40 pessoas, e em 2011 quase 200. Num espaço compartilhado as coisas começam a se misturar e gerar essas diversidades e mutações que estamos buscando propiciar. No caso do Summerlab os encontros em Gijón foram até 2011, mas continuamos realizando em outros lugares. Em 2012 foi em Nantes, Bilbao, Casablanca, Galícia, igual em 2012 e em 2013 na Galícia, Nantes e Casablanca. Esta é uma das estruturas que inspiram e são replicadas. Uma coisa importante é que não havia pressão sobre a produção no Summerlab, não havia tentativa de instrumentalização. A liberdade de pesquisa dos participantes era respeitada, as pessoas podiam trabalhar no que elas queriam. Às vezes isso é chocante. Em 2011 os diretores da Laboral ficaram horrorizados com todas as meninas com corte de cabelo punk, até colocaram seguranças. É importante levar isso em conta para elaborar normas de convivência não baseadas na aparência, mas no que você está fazendo. Isso é fundamental para um contexto latino-americano onde se pretende oferecer acesso massivo a este tipo de recursos. Um acesso aberto e ao mesmo tempo com cuidados de segurança.”

Experiências nômades, precárias, ocupações

“Pulando no tempo, a renovação do Hangar surgiu também da matriz de Fadaiat e das comunidades de usuários de software livre na Espanha. Estive envolvido no segundo Fadaiat em 2004-2005, era um laboratório em condições precárias para o trabalho e pesquisa temporários. O Summerlab também não é um laboratório fixo, fazia parte da programação de Plataforma Cero, um espaço fixo de produção e pesquisa dentro de La Laboral. Nos últimos anos tenho me interessado muito em projetos que são mais marginais, que tem a ver com a ruralidade, como a Nuvem no Brasil, onde se combinam atividades pontuais com outras continuadas, que vão gerando redes de pessoas e redes de conhecimento. É também o caso do Minkalab na Colômbia. Estes labs voltam-se muito para a questão da mudança da matriz produtiva, de habitar o planeta de outra forma.”

“Na América Latina é importante não importar modelos, mas gerar a partir dos próprios contextos locais e das próprias experiências, isso é absolutamente fundamental. Se a gente voltar para a ideia da cultura como bosque, cada vegetação está relacionada a seu contexto, que oferece condições favoráveis e apropriadas. Não faz sentido tentar transplantar um pinho na Amazônia porque não vai vingar. Temos que observar quais são as necessidades e desejos, e como criamos este espaço, estas estufas, espaços protegidos onde a diversidade pode se manifestar.”

Como avaliar resultados de experiências emergentes, processos vivos?

“Um dos critérios são os números, quantidade de pessoas. Outro são as temporalidades, quantidade de tempo. Não é a mesma coisa um grupo de pessoas que se encontra uma ou quinze vezes, onde há repetição ou regularidade. Também a produção de documentos e sua sistematização, são indicadores muito importantes, por exemplo dizer que como resultado foram sistematizados quatro protótipos replicáveis. O compartilhamento destes conhecimentos. E ainda a questão econômica: o que foi gerado não só no contexto do próprio lab, mas os projetos que foram gerados a partir disso. Por exemplo: a pessoa que participou do projeto está agora realizando oficinas, ou trabalhando em outro lugar, etc. É interessante avaliar ao longo do tempo, mas nem sempre é possível. No caso do Summerlab isso acontecia por meio da responsabilidade de cada nodo de documentar sua experiência. De fato a única equipe que recebeu um cachê foi para streaming e documentação, para garantir um bom registro.”

Fomentar participação/comunidades

“É preciso ter gente apaixonada, que entusiasma outras pessoas e passa seu conhecimento, pessoas muito antenadas no que está acontecendo, para que estes espaços surjam por meio da identificação das iniciativas de base. Senão ficam vazios e ninguém os utiliza.”

Inovação, criatividade e experimentação

“É nossa tarefa realizar uma reapropriação da ideia de inovação, temos que fazer nosso discurso. Temos que subverter a ideia de inovação a partir de nossas práticas e vivências.”

3.3. Susana Serrano

Susana Serrano é gestora e comunicadora cultural, focada em práticas artísticas que realizam usos sociais e criativos das novas tecnologias. Complementa atividades de pesquisa teórica com a prática em diferentes âmbitos da gestão cultural independente, instituições públicas e organizações privadas.

Trabalha com práticas de “código aberto”, vinculadas ao movimento do software livre e da cultura livre, com destaque para os novos espaços de criação no formato de “laboratorio”. Colaboradora de diferentes veículos de imprensa, produz também conteúdo para diferentes blogs pessoais e redes sociais.

Licenciada em História da Arte pela Universidade de Sevilha, atualmente é doutoranda em Comunicação pela mesma universidade. Também é docente e oferece palestras em centros educacionais, culturais e universidades.

Website: http://susanaserrano.cc

Práticas culturais de código aberto

“O Decálogo de Práticas Culturais de Código Aberto1 foi um booksprint2 que organizei e foi dedicado ao trabalho das instituições no âmbito cultural, sem estar restringido às práticas artísticas. O nome código aberto pode confundir, ser entendido como aberto demais e assim apropriado pelo capitalismo. Estas questões são tratadas no livro. Para mim, código aberto significa estar vinculado a uma maneira de fazer as coisas onde a máxima principal é a livre circulação do conhecimento, considerando a arte como um meio de conhecimento. Se a cultura é um direito, precisa seguir parâmetros coerentes com a idéia do aberto que estamos trazendo aqui.”

“Recentemente fui convocada a participar de um novo booksprint sobre o futuro dos centros culturais na Europa criativa. Software e hardware livre são um condicionamento básico. Não se limita à distribuição e às licenças, aqui estamos falando de uma nova visão da cultura que não é só cultura livre mas que também está contagiada da ética hacker, e que não se limita à distribuição. Tem a ver com aproveitar o conhecimento que foi gerado anteriormente, o que já foi criado, procurar a sustentabilidade, algo que os governos nem sempre respeitam porque costumam destruir o que os anteriores fizeram e seguir os interesses dos que governam. Também inclui uma regulação das práticas baseadas no bem comum e na meritocracia.”

Experiências de laboratórios

“Assim que me formei em história da arte comecei a trabalhar no Centro Andaluz de Arte Contemporânea, e escrevia crítica de arte para o jornal Diario de Sevilla. Comecei a entrar em contato com o circuito de medialabs temporários que começaram a surgir e o movimento de software livre. Não me interessava muito pelo mundo das galerias, e achava que o principal elemento que era preciso transformar era o mercado da arte. Considerava que ele era negativo para a cultura e que gerava uma elite que se afastava do tipo de práticas artísticas do meu interesse. O primeiro projeto que começamos foi o lab Átomos y Bits em 2008, que convocava aos frikis (nerds), daí formamos uma associação para levantar a necessidade em Sevilha de uma infraestrutura similar ao Medialab Prado. Outras referências foram o Hangar, os hackmeetings e o movimento de hacklabs que funcionaram muito bem em centros sociais como o Patio Maravillas de Madrid ou La invisible de Málaga. Para mim todos esses lugares faziam parte de um circuito de medialabs não restrito aos mais institucionais.”

“A experiência do Átomos y Bits foi incrível, lembro que entre os convidados veio o pessoal que depois montou a rede social livre e autogerida N-1, um projeto muito bom que teve seus problemas de sustentabilidade, o que acontece com muitos projetos independentes, mas que trazia a importância de que estamos habitando cotidianamente redes sociais que não são livres, estamos visitando um tipo de centros comerciais como Facebook, Twitter, etc. E todo esse trabalho de conscientização foi muito importante. A gente convidou essas pessoas para que se reunissem e continuassem desenvolvendo seu trabalho. Realizamos oficinas, mesas redondas sobre estes temas. Chegamos a convidar até alguns políticos da cidade, eles não entendiam nada sobre o assunto. Era difícil o diálogo porque não entendiam o que a gente pedia, que basicamente era um espaço com uma mínima estrutura, internet e alguns computadores. Para além do equipamento físico, que poderíamos conseguir de outro jeito, o que sempre pedimos era espaço que pudesse ser autogerido, e que funcionasse como um centro que não se adapta tanto ao que geralmente se conhece como centro de arte, porque inclui outras disciplinas também, mas que está atravessado pela criatividade. Deu certo, conseguimos uma pista de carrinhos abandonada que foi convertida num espaço cênico experimental com boa infraestrutura chamado Pista Digital, com um equipamento de streaming muito bom, tudo feito em software livre, e onde participou muita gente de toda Espanha. Essa foi a primeira experiência, e foi onde me dei conta que tínhamos que continuar nessa linha.”

“A partir daí tenho participado de diferentes redes e eventos, nos Summerlabs em diferentes lugares de Espanha. Acho que o Summerlab tem sido uma das coisas mais significativas, com Pedro Soler liderando de alguma forma essa rede, e é uma pena que tenha se desarticulado mesmo que ainda existam alguns como o pessoal de Alga-lab em Galicia e no País Bsasco também. Em Madri os companheiros de Tabacalera continuam lutando e ainda no Hangar continua havendo atividades bem nessa linha. Mas é uma pena que não haja mais apoio para o Summerlab, porque sabemos que se esses espaços de liberdade e criação não são fomentados, ninguém ganha. Porque a inovação cultural e de conhecimento parte desse tipo de espaços. É a nossa conclusão depois de muitos anos pesquisando e lendo muito, entrevistando muitas pessoas. Sempre houve espaços alternativos, em todas as épocas, temos que ser cuidadosos com tudo que está muito controlado pelo Estado ou pelas empresas privadas. Não há motivos para rejeitar patrocínios públicos ou privados, sempre que seja mantida a autonomia para programar atividades.”

Poéticas de laboratório www.poeticasdelaboratorio.cc

“O projeto Poéticas de Laboratório sobre práticas artísticas de código aberto representou uma volta ao que eu realmente queria estudar. A arte me interessa e começou a me incomodar que nestes medialabs sempre se fala da sociedade, da tecnologia, mas ninguém quer falar de arte, não há critérios ou valoração. Mas na hora de pedir financiamento a etiqueta da arte era utilizada porque serve. Isso me incomodava porque respeito muito a prática artística, considero que é um método de pesquisa tão válido quando o científico. Não são métodos racionais, as metodologias artísticas muitas vezes chegam a um conhecimento mais profundo que depois pode ser aplicado a diferentes áreas. O código aberto é o paradigma atual que segue qualquer prática engajada. Tive a sorte de ter sido selecionada para a residência artística da Nuvem no Brasil em 2012, foi maravilhoso porque convivi com 5 artistas num lugar onde se desenvolviam uma série de projetos muito diferentes, onde vivi o dia a dia, o processo, o intercâmbio de ideias, como se trabalha neste tipo de medialabs inclusive no meio rural, onde há uma preocupação com a sustentabilidade e a ecologia. Selecionamos 6 categorias para definir estes processos, algumas em português e outras em espanhol. Uma delas era mutirão (fazer tudo coletivamente, algo típico destes projetos); refil (relacionado com a reciclagem e o remix de materiais e ideias); poéticas de laboratório (uma reflexão estética sobre estas práticas agrupadas com a etiqueta “laboratório” por ser experimentais e colaborativas) e software livre como ferramenta básica; janelas - porque dialogava com temas de percepção, por exemplo utilizando as tecnologias para se comunicar com a natureza, e essa janela para outra coisa com o componente de pesquisa científica que tinham a maior parte dos projetos.”

Relação das práticas de laboratório com as instituições

“Minha experiência dialogando com as instituições para realizar este tipo de projetos tem sido complicada, porque elas não costumam entender as bases destes jeitos de fazer, daí o valor do esforço de fazer o catálogo de práticas culturais de código aberto, que pretendia ser uma ferramenta de mediação. As instituições têm dificuldades para compreender os tempos, os objetivos [dos laboratórios]. Como não buscamos um tipo de resultados objetivos, é difícil atingir um número de público mensurável para justificar estas práticas, e isso é uma das linhas do meu trabalho. Poéticas de laboratório acabou sendo uma exposição, algo que para mim é um formato obsoleto para este tipo de práticas, mas, por outro lado, foi uma forma de socializar os conhecimentos adquiridos a partir do que foi produzido no medialab. É preciso socializar os processos, porque senão fica difícil validar sua existência e encontrar apoio econômico para continuar. E aí há um grande desafio. As exposições estão obsoletas, mas podem implementar coisas novas dentro deste formato. Nossa experiência foi muito boa, e teve alguns elementos interessantes: não tinha muitos objetos, para que o visitante não ficasse perdido entre um monte de invenções. Foram poucos projetos desenvolvidos coletivamente, um processo que tentou visibilizar os intercâmbios de conhecimento. Também foi muito importante a realização de oficinas, inclusive para crianças, e ainda os debates, as performances.”

“Algumas instituições são mais sensíveis a estas questões. Medialab Prado, Tabacalera, Hangar também. Mas sempre há o risco de que as práticas culturais sejam politizadas de uma forma negativa, especialmente quando se procura espetáculo, número de visitantes. Isso não tem nada a ver com o âmbito que estamos pesquisando, que trata de produzir conhecimento como se fosse qualquer laboratório de química ou genética, e depois compartilhar isso. Agora estamos vendo como fazer isso de forma sustentável.”

“O último projeto que estive envolvida é o festival de cinema Creative Commons de Sevilha, que parte de uma rede de festivais com base em Barcelona, com gente incrível que iniciou o festival promovendo a máxima hacker de “copie este festival” para promover a replicação e facilitar apoio de conhecimento e de material. Isso é genial, oferece uma alternativa aos festivais mais clássicos, à questão da exclusividade. Queremos que os filmes sejam vistos em todos os lugares, principalmente o cinema independente.”

Avaliar produtos/resultados

“A arte processual não é algo novo, existe desde o século XX. Lembro muito bem uma exposição do movimento Fluxus no Centro Andaluz de Arte, fiquei triste porque tinham colhido elementos e colocado em vitrines, isso não fazia sentido porque o movimento fluxus teve sentido na ação, quando estava vivo. Morto não fazia sentido algum. A arte tem que ser entendida e respeitada no seu processo vivo e livre. O desafio é o processual, as experiências que às vezes não têm autor, que têm muitos erros, um processo que até diria não pretende nem quer ser “museificado”. Talvez devêssemos entender a cultura de outra forma, sem tantos autores, onde todo o mundo participa. Aquilo de “todo o mundo é um artista” hoje faz todo o sentido, você olha na internet e está cheia de criatividade. O papel das instituições evidentemente tem que mudar. Não dá para fazer exposições da mesma forma. Precisamos estar antenados aos movimentos. Alguns deles são anônimos e somente precisam de apoios pontuais, como residências. Aposto muito na aprendizagem a qualquer idade, nas residências artísticas de produção, e que enxerguemos coletivamente como são as coisas sem tantas etiquetas.”

Summerlab

“Os medialabs que hoje funcionam bem provavelmente estão se perguntando as mesmas coisas que estamos conversando por aqui, tentando resolver. Porque estamos atravessando uma mudança de paradigma que não é tão fácil de resolver. Por exemplo, o fato de que La Laboral tenha deixado de apoiar a realização dos Summerlabs é o típico caso de como uma instituição comete um erro, pois o Summerlab era o mais interessante que oferecia aquela instituição. E a frase “o lab é a rede” que já ouvi de alguns brasileiros é o que sempre tento dizer, às vezes as políticas são feitas de costas para as pessoas, e não se dão conta que cada centro de arte são as pessoas que frequentam o lugar, e se ninguém vai perde o sentido. La Laboral considerou polêmicas algumas performances feitas na última edição, e não entendiam o valor disso tudo, quando vinham artistas de toda Espanha, que não pediam nada em troca, era uma fonte de criatividade incrível, e na trajetória de cada participante talvez tivesse mais importância este evento que qualquer outra exposição. Este tipo de encontro devia acontecer a cada verão. Pessoas desconhecidas conviviam com os artistas, e era o único que fazia entender estas novas práticas porque te convidava a estar dentro. Ninguém fechava a porta e todos podiam aprender.”

Comunidades/participação/gestão

“Outra das ações básicas que um centro de arte devia levar à frente é estar em contato com as comunidades, com o que já está sendo feito nas comunidades locais, pelo movimento cidadão. Isso também é perigoso porque muitas vezes as instituições procuram seus benefícios e os coletivos sentem-se um pouco utilizados. Por isso é importante ter bons gestores.”

“Percebo também uma hibridização de perfis. Muitos curadores realizam um tipo de trabalho que poderia ser estudado como o de qualquer artista, inclusive vários artistas vivem do trabalho de curadoria mais do que sua própria obra. É necessário melhorar a formação e o envolvimento dos profissionais da cultura.”

“Nos últimos tempos fala-se mais em comunidades do que redes. Ao falar em comunidades pensamos em pessoas que decidem agrupar-se por afinidades ou interesses em comum, e que cuidam umas das outras nesse processo de convivência, trocando ideias, mas também com a maneira em que as coisas são feitas e nas condições de realização. Neste sentido pode ser mais interessante pensar mais em comunidades do que em redes. As redes são um pouco mais invisíveis, outras são muito extensas e com pouco contato entre si, mas é a nossa maneira de nos organizar, não só na cultura. Quando disse aquilo de “o lab é a rede” quis destacar o fato de que o lab é feito pelas pessoas. Não são os equipamentos, nem os espaços, nem os lugares. Claro que em muitas redes estamos super próximas ao Brasil e à Colômbia, mesmo separadas por tantos quilômetros, e um pouco mais afastados da França, por exemplo, que fica aqui do lado. No Decálogo de Práticas Culturais de código aberto dedicamos um dos capítulos para as comunidades, tentamos explicar a sua importância. E ao falar de centros de arte, prefiro falar em comunidades afins a cada lugar em vez de públicos.”

Inovação/economia criativa

“As práticas artísticas e culturais são um terreno adubado para a inovação, isso é fato, é real, e muitas empresas já entenderam isso e estão criando espaços com outras dinâmicas para que essa liberdade necessária aconteça, sem estar dirigida a finalidades concretas, para que a inovação se produza de forma útil. Sempre foi assim, temos visto a parte criativa dos engenheiros e os cientistas que acontece se oferecemos as condições necessárias. Por outro lado, há um perigo no discurso que entende a arte e a cultura como motor da economia. Não é assim. Arte e cultura são direitos básicos para o desenvolvimento da sociedade, por muitos motivos. O trabalho de YProductions (livro Innovación en Cultura) é muito bom para entender todo esse processo de empreendimentos culturais e compreender que a cultura é um direito, não um recurso para criar economia porque fabrica coisas. Claro que também pode gerar dinâmicas, pensamento, trabalhos, protótipos que servem para outras produções de empresas. De fato gosto muito da ideia de que a indústria colabore com os artistas. O projeto Conexiones Improbables desenvolveu uma residência com este conceito e foi bem-sucedida. Mas temos que ser cuidadosos com a bandeira da cultura como motor da economia, porque não é como a mentalidade neoliberal quer nos fazer acreditar, e esse discurso está entrando com força na América Latina.”

1Publicação disponível em http://10penkult.cc/ (acessado em 23/08/2014).

2Um booksprint é um encontro de trabalho dedicado a reunir pessoas para produzir uma publicação ou grupo de publicações em tempo curto. É comum que sejam realizados em períodos de 3 a 7 dias.