Laboratórios Experimentais em Rede
1 Laboratórios Experimentais em Rede
Esta dissertação de mestrado resulta de um processo de reflexão, descoberta e questionamento sobre formatos de produção criativa colaborativa nos tempos atuais. O foco da investigação situa-se no universo formado por diversos arranjos coletivos operando em campos como a cultura digital, a arte eletrônica, o ativismo de mídia, o empreendedorismo voltado a questões sociais, a inclusão social articulada com as tecnologias de informação e comunicação, a educação informal e o design engajado. Dentro destes contextos, determinados grupos identificam-se como laboratórios - labs de mídia, hackerspaces, fablabs, entre outros - como maneira de, por um lado, definirem suas metodologias, ações e aspirações, e por outro afiliarem-se a uma rede internacional de iniciativas assemelhadas. A intenção da pesquisa é observar o surgimento desta imagem de laboratório e debater alguns de seus pressupostos e implicações.
Meu percurso de investigação não nasce originalmente de interesses acadêmicos. Em abril de 2010, época em que nem imaginava cursar um mestrado, fiz a seguinte anotação em um caderno: "RedeLabs. Há pouco mais de cinco anos, um projeto de centro cultural em São Paulo mencionava como público-alvo os ’artistas desabrigados’. Hoje em dia, um laptop e uma rede wifi são muitas vezes suficientes. Quais são os espaços atuais para produção?". Era a verbalização - bastante superficial, como vejo agora - de uma questão recorrente. Questão que acompanhava um longo processo de reflexão e ações, iniciado no meu caso por volta de 2002. Naquele ano fui um dos fundadores da rede MetaReciclagem, iniciativa organizada através da internet que incentivava - como só conseguiríamos resumir alguns anos mais tarde - a "apropriação crítica de tecnologias da informação para a transformação social". A rede MetaReciclagem propunha concretamente a recuperação de computadores descartados utilizando-se softwares livres e de código aberto. Apesar de ter surgido na internet, ela acontecia na prática em lugares que eram chamados de "Esporos" - uma metáfora das ciências biológicas utilizada para ressaltar a autonomia de cada grupo local: mesmo compartilhando uma genealogia comum, diferentes Esporos poderiam assumir formatos e formações totalmente diversos.
Desde a primeira vez em que pus os pés no que viria a ser um Esporo de MetaReciclagem1, movia-me a vontade de atrair pessoas para juntas fazerem coisas interessantes. Eu era então um entusiasta da internet e da criatividade que ela aparentemente permitia, ainda que decepcionado tanto com o que via como superficialidade e efemeridade das empresas, em especial das agências de comunicação nas quais havia trabalhado por alguns anos; quanto com a burocracia e o engessamento que via no mundo acadêmico - minha graduação era tão pouco interessante que demorou sete anos, em três instituições diferentes. A atuação da MetaReciclagem, nos anos seguintes, acabaria por me colocar em contato com uma enorme diversidade de grupos e projetos, no Brasil e no mundo. Pude conhecer espaços críticos e autônomos em lugares como Amsterdã, Berlim e Barcelona, ao mesmo tempo em que testemunhava a (e interferia na) gradual abertura de espaço institucional para a emergência no Brasil de uma cultura digital politicamente situada, em projetos como os Telecentros de São Paulo ou os Pontos de Cultura do Ministério da Cultura. Participei também da criação da Bricolabs, uma rede internacional que reúne hoje cerca de duzentas pessoas trabalhando com questões de arte, tecnologia e ciência - muitas delas ligadas a diferentes laboratórios ou similares. Durante todo esse trajeto, a questão do lugar de encontro e trabalho estava sempre latente.
Aquela anotação de caderno em 2010 vinha embalada também pela decepção com o que parecia ser uma situação de acomodação e certa neutralização de algumas forças que haviam articulado uma série de ações relevantes no Brasil nos anos anteriores. Dezenas de artistas, ativistas e pesquisadores criativos e talentosos se haviam transformado em "oficineiros", dedicando grande parte de seu tempo a ensinar técnicas, e consequentemente restava-lhes pouco tempo para atividades propriamente artísticas, ativistas ou de pesquisa. Em um sentido concreto, não havia espaço (nem tempo, nem reconhecimento institucional) para essas atividades. Nesse sentido, parecia extremamente necessário investigar possibilidades de espaços que sediassem um tipo de produção não voltada necessariamente à replicação de conhecimento já estabelecido. Isso envolveria necessariamente questionar os diferentes envolvidos com essas questões a respeito de infraestrutura, autonomia, assimilação, financiamento e repertório.
Ao longo dos meses seguintes, desenvolvi (junto com a pesquisadora Maira Begalli) um estudo para o Ministério da Cultura do Brasil sobre laboratórios de cultura digital. O estudo foi desenvolvido para a Gerência de Cultura Digital do Ministério da Cultura, e tinha por objetivo embasar futuras ações de apoio a laboratórios dentro de políticas públicas de cultura e inovação. Nossa motivação vinha da percepção de que representantes da arte digital brasileira vinham demandando apoio do poder público para a criação de "laboratórios", sem entretanto levar em conta o acúmulo, em nossa opinião bastante fértil, das ações descentralizadas de cultura digital desenvolvidas no país durante os anos anteriores. A essa falta de atenção com experiências locais concretas somava-se uma espécie de encanto com instituições estrangeiras, em especial o Media Lab do MIT2, como se fosse uma fórmula mágica que resolveria todos os problemas dos supostos representantes da arte digital brasileira. Decidimos investigar que espécie de laboratório faria sentido pensar no Brasil daqueles dias, supondo que o começo da segunda década do século XXI exigiria uma construção bastante diferente de todas as outras que conhecíamos. Partiríamos de uma perspectiva abrangente - em vez de subordinar-nos à arte digital, queríamos entender como ela poderia engajar-se e dialogar com outros campos importantes de atuação. Interessados em explorar a possibilidade de uma política de laboratórios em rede, chamamos essa investigação de Rede//Labs3.
Durante alguns meses, tivemos a oportunidade de pesquisar referências, entrevistar pessoas e comparar metodologias de laboratórios experimentais em diversas partes do mundo: o Medialab Prado de Madri (Espanha), o Access Space de Sheffield (Inglaterra), o KiBu de Budapeste (Hungria), entre outros. Articulando esses modelos de labs com as formações emergentes que víamos no Brasil, identificamos nestas uma certa iconoclastia, uma informalidade e uma liberdade - advindas, nos parecia, da falta de restrições observadas nos nossos laboratórios-em-movimento. Parte desse dinamismo poderia ser creditado como resposta cultural a um ambiente no qual crise econômica, instabilidade institucional e disparidade social são fatos corriqueiros – o que nos situava mais próximos a outros contextos latinoamericanos do que àqueles europeus. De fato, com frequência essa inventividade tácita parecia ser justamente o que os integrantes de laboratórios estrangeiros demonstravam ter curiosidade de aprender com o Brasil, ainda mais em uma conjuntura caracterizada por uma crise financeira internacional, por projeções pessimistas sobre o meio ambiente e por dificuldades em conciliar diferentes culturas. Em outras palavras, buscávamos fora do Brasil referências institucionais e conceituais para o desenvolvimento da cultura digital, ao mesmo tempo em que pessoas ligadas a essas mesmas referências de fora observavam o Brasil em busca de soluções para suas próprias questões.
Ao longo do processo, tentamos jogar com essa busca bidirecional de soluções - o Brasil buscando modelos estabelecidos lá fora, os labs estrangeiros voltando-se para modelos dinâmicos brasileiros -, e aproveitamos as conversas com dezenas de pessoas - artistas, pesquisadores, representantes de diferentes instituições ou coletivos - para refinar um pouco mais o foco da investigação. A partir destas conversas, propusemos a discussão do termo ”cultura digital experimental” - um braço da cultura digital brasileira que incorporaria intenção investigativa, projeção de futuro e reflexividade. Não nos detivemos particularmente a questionar o mérito da ideia de "cultura digital", que nos parecia em si certamente passível de críticas. Limitamo-nos a aceitá-la como uma imagem então utilizada por organizações, coletivos e indivíduos de todo o país para referirem-se tanto a uma série de percepções a respeito do papel das novas tecnologias na sociedade contemporânea, quanto à situação institucional particular que utilizava esse nome no Brasil: iniciativas do Ministério da Cultura, de Secretarias Estaduais de Cultura e de algumas instituições privadas propunham explicitamente a cultura digital como seu campo de atuação. E debatemos com diversas pessoas a relevância de adicionar-se o "experimental" para denominar ações que tinham em comum algumas características. A cultura digital experimental estimularia a invenção e a criação inclusive com o próprio meio, aqui sim aproximando-se da arte, mas também do desenvolvimento de novas tecnologias em si. Valorizaria o erro - como ”matéria-prima do acerto” - e estaria mais orientada a gerar processos abertos e compartilhados do que chegar a produtos finalizados e fechados. Incorporaria práticas das culturas populares como a gambiarra e o mutirão na busca de novas possibilidades criativas.
O estudo ofereceu elementos para nos aprofundarmos em algumas questões. Ao fim de alguns meses, havíamos entrevistado um bom número de pessoas, proporcionado um encontro com cerca de cinquenta convidados de todo o país envolvidos com laboratórios e afins, organizado um debate internacional sobre o tema e elaborado um programa piloto de política pública de apoio a cultura digital experimental. Infelizmente, o ano seguinte viu uma significativa mudança de rumo no Ministério da Cultura, e uma série de ações planejadas para consolidar as conclusões daquele levantamento foram canceladas.
À medida que trabalhava com esses elementos, os labs gradualmente passaram de interesse marginal ao centro de minhas inquietações. À mesma época, começava também a refletir sobre qual formato deveria assumir um possível laboratório experimental em Ubatuba, onde vivo, para que se tornasse minimamente relevante para a cidade - e não espaço privilegiado para uma classe média urbana de vanguarda repetir formatos já desenvolvidos em outras partes do mundo. No ano seguinte, comecei também a escrever uma série de artigos sobre laboratórios em rede para uma iniciativa de intercâmbio entre Brasil e Espanha.
Também em 2011, organizei um laboratório temporário - chamado LabX - durante o Festival Internacional CulturaDigital.Br. O LabX reuniu pessoas de diversas localidades do Brasil e do mundo que trabalhavam com projetos experimentais, ativistas, educacionais e artísticos4. Foi por volta dessa época que cursar o mestrado começou a parecer uma possibilidade viável. Em uma discussão por email com os integrantes da MetaReciclagem, eu havia questionado a quantidade de recursos voltados à pesquisa em temas que me interessavam, mas que só estavam disponíveis a integrantes da academia. Uma das respostas foi um link para o site do programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural do Labjor, que estava com inscrições abertas. Li o programa e me interessei. Mas travei já no pré-projeto de pesquisa. Senti que precisava adequar minhas curiosidades, que abrangiam um monte de assuntos aparentemente desconectados, ao programa do curso. Assim, elaborei um rascunho que tentava falar sobre ciência cidadã, então tema de eventos e projetos em lugares como o Medialab Prado e outros labs experimentais. Durante o processo de seleção, esse esboço de projeto foi devidamente desconstruído, mas minha inscrição foi generosamente aceita. Ao longo do mestrado, meu objeto de pesquisa ainda mudaria duas ou três vezes, até finalmente entender que em vez de investigar temas eventualmente desenvolvidos em labs experimentais, poderia aceitar os próprios labs como meu eixo principal de interesse. Foi daí que parti na jornada que resulta nesta dissertação5.
1.1 Etnografia, campo e participação
Uma das maiores dificuldades que enfrentei durante a pesquisa de mestrado diz respeito a meu envolvimento pessoal direto com o objeto de pesquisa. Não somente eu tinha sido um participante engajado do cenário dos labs experimentais e das redes de labs no Brasil e fora dele, como também continuaria atuante durante o período da pesquisa. Somavam-se a isso meus próprios preconceitos, baseados no senso comum de que a análise acadêmica deve adotar uma perspectiva distanciada em relação ao objeto de pesquisa, a fim de melhor estudá-lo. Este incômodo esteve presente durante todo o mestrado. Algumas trilhas interessantes que me permitiram uma rota de escape dessa aparente contradição puderam ser encontradas na antropologia. Não a antropologia clássica surgida no seio do colonialismo europeu, baseada na reiteração da superioridade de uma racionalidade objetiva tipicamente moderna e ocidental, com a divisão clara entre sujeito e objeto, entre o antropólogo e o nativo. Pelo contrário, interessou-me outra antropologia na qual, ecoando Viveiros de Castro (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), existiria uma equivalência entre os procedimentos de investigação e os procedimentos investigados.
Expandindo essa hipotética continuidade, seria possível assumir um papel no qual, ainda que momentaneamente dedicado a estudar os labs experimentais, os resultados da minha pesquisa poderiam eventualmente tornar-se parte do próprio objeto. Em outras palavras: minha produção durante o mestrado não seria somente uma análise externa sobre a emergência dos labs experimentais, e sim potencialmente uma parte integrante do próprio cenário dos labs. Para adicionar um pouco mais de complexidade, o reconhecimento de que eu teria ocupado ao menos dois lugares diferentes em diferentes momentos - primeiro a minha atuação anterior à pesquisa, como ator engajado no cenário da cultura digital brasileira, e posteriormente minha inserção acadêmica com a pretensão de analisar o mesmo cenário - traria implicações inevitáveis. Ao observar a emergência de uma tecnoutopia associada à disseminação da internet comercial, a crítica que o eu acadêmico tece direciona-se tanto aos demais atores da cultura digital brasileira como também ao eu-engajado do passado. E por mais que o processo de construção da pesquisa tenha oferecido outras perspectivas, é possível que a mesma crítica continue aplicável ao eu presente e possivelmente aos futuros eus. A perspectiva assumida pela minha afiliação acadêmica não se pretende mais acertada do que aquela da minha atividade engajada. Talvez, pelo contrário, minha pesquisa esteja carregada de profunda desconfiança com o próprio pesquisador e sua atividade.
Longe de tentar solucionar esses incômodos, limito-me a assumir que eles devem estar presentes na versão final da dissertação, assim como estiveram durante toda a pesquisa. É provável que o texto esteja materialmente carregado dessa tensão, oferecendo alguma inconsistência na maneira como trata o objeto de pesquisa - com brancos ocasionais de parte a parte, detalhes excessivos em algum canto, etc. Nesse sentido, evoco a distinção proposta por Tim Ingold entre a pintura e o desenho como metáforas para o fazer etnográfico. A pintura buscaria preencher uma superfície em toda sua extensão, limitada apenas pelos quatro lados da moldura. O pintor, assim, precisaria antecipar a totalidade da pintura antes mesmo de começá-la. Já o desenho permitiria maior experimentação, uma vez que o próprio traço pode a cada momento desdobrar-se e preocupar-se mais com sua própria continuidade do que com a composição geral. Para Ingold, grande parte da antropologia do século XX teria a pintura como sua postura padrão (INGOLD, 2011, p. 221), enquanto adotar a lógica do desenho seria profundamente libertador. Quero crer que esta dissertação segue por este segundo caminho.
1.2 Tecnoutopia californiana
O imaginário usualmente associado à internet carrega um aspecto ideológico que só não é mais óbvio porque inteiramente entremeado nos mecanismos de poder vigentes na sociedade contemporânea. Muitos de seus elementos propagadores costumam repetir a cartilha de uma economia baseada na circulação de informação, na qual circunstancialmente os usuais intermediários remanescentes de uma economia industrial estariam obsoletos. Tal contexto estaria baseado em - ou melhor, exigiria - um regime de inovação constante, dentro do qual mesmo as relações sociais deveriam ser corriqueiramente transformadas em valor de mercado. Primordialmente, essa economia exigiria um alto nível de liberdade em relação a regulações do Estado (que não a entende) tais como os direitos trabalhistas (que engessariam seu dinamismo). Ainda segundo essa visão de mundo, elementos como a liberdade individual (importante principalmente no que tange à livre iniciativa empresarial) e a competição comercial seriam os principais motores de transformação da sociedade. Essa transformação teria atualmente um rumo claro - em direção a comunidades autônomas e autorreguladas através de tecnologias de informação, nas quais laços de afinidade se sobreporiam às obrigações da ultrapassada sociedade moderna. Todos esses elementos apontariam para um futuro hiperconectado e "livre".
Richard Barbrook e Andy Cameron denominam “ideologia californiana” essa construção na qual “a ágora eletrônica é interpretada essencialmente como um mercado eletrônico”. Acusam o paradoxo de que tais ideias tenham sido propagadas como afiliadas a conceitos caros à nova esquerda estadunidense, apesar de também se aproximarem do ideário da direita liberal: "Quem pensaria que uma mistura tão contraditória de determinismo tecnológico e individualismo libertário se tornaria a ortodoxia híbrida da era da informação?" (BARBROOK; CAMERON, 1995). Já Fred Turner sugere que esse pensamento foi forjado não exatamente na nova esquerda mas nos "Novos Comunalistas", representantes da contracultura estadunidense dos anos sessenta que se afastaram da disputa política tradicional:
Entre 1967 e 1970 (...) dezenas de milhares de jovens decidiram estabelecer comunas, muitas delas nas montanhas e nas florestas. Foi para eles que [Stewart] Brand começou a publicar o Whole Earth Catalog. Para essas pessoas que voltavam à terra, e para muitos que nunca chegaram a estabelecer novas comunidades, os mecanismos da política tradicional para proporcionar transformação social estariam falidos. Ao mesmo tempo em que seus pares organizavam partidos políticos e marchavam contra a Guerra do Vietnã, esse grupo, que eu chamarei de Novos Comunalistas, desistia da ação política e ia rumo à tecnologia e à transformação da consciência como fontes principais de transformação social (TURNER, 2006, p. 5).
Stewart Brand, como mencionado por Turner, organizara a publicação do Whole Earth Catalog - um catálogo de "acesso a ferramentas" que mostrava desde maneiras de plantar até fornecedores de domos geodésicos ou ferramentas de construção. Posteriormente, como veremos no terceiro capítulo, Brand estaria diretamente envolvido com episódios significativos da história da internet e da propagação da ideologia californiana. Durante esse processo, os Novos Comunalistas adotaram a visão que Turner chama de tecnoutópica, que refletiria duas transformações profundas na sociedade estadunidense: de um lado a evolução dos computadores de grande porte rumo a microcomputadores conectados em rede que alcançavam toda a população; de outro o receio que a geração nascida nos Estados Unidos após a Segunda Guerra tinha de ser engolida por uma sociedade burocrática ameaçada pela extinção nuclear. A tentativa de escapar a esse futuro sombrio é um dos elementos que conectariam a contracultura dos anos sessenta às tentativas de utilizar as tecnologias de informação como plataforma de construção de uma sociedade digital igualitária e antiburocrática. Essa construção, baseada em um modelo de sociedade inspirado na cibernética, acabaria por implicar em uma situação de neutralização de impulsos transformadores, como veremos adiante. Em relação a esta nova situação, cada vez mais presente na sociedade dos dias de hoje, haveria ainda rotas de escape? Seria possível driblar a subordinação ao determinismo tecnológico que estaria presente no pensamento tecnoutópico? Estes elementos e a tensão entre eles fazem parte do cenário de fundo no qual se desenvolvem os labs que são objeto desta dissertação.
1.3 Estrutura da dissertação
Esta dissertação identifica diferentes caminhos de exploração partindo da ideia de labs na ampla fronteira entre cultura e tecnologia, que operam em rede e funcionam como espaços experimentais. Cada capítulo dedica-se a trilhar um desses caminhos. No capítulo Cultura Digital Experimental, procuro refletir sobre o campo da cultura digital brasileira, sua articulação em duas dinâmicas distintas ainda que interpenetradas - a compensatória e a exploratória -, e o que pode ser uma contribuição brasileira à discussão internacional sobre labs e afins. O capítulo Labs no Mundo traça um histórico amplo dos labs, incluindo a narrativa usual que parte das colaborações transdisciplinares desenvolvidas nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial e se estende até a criação do MIT Media Lab, mas oferecendo também outras linhas históricas relevantes durante o mesmo período. Em seguida, descrevo desenvolvimentos recentes como os labs comunitários, hacklabs, hackerspaces, fablabs e makerspaces. O capítulo Primavera Gelada trata de uma pesquisa de campo que desenvolvi na Finlândia, durante a qual tive a oportunidade de conhecer e visitar formações experimentais de diversos modelos. Por fim, o capítulo Espaços em branco sugere caminhos possíveis para a construção de labs experimentais relevantes para questões contemporâneas.
1O primeiro Esporo de MetaReciclagem era uma grande sala no Shopping SP Market, na zona sul de São Paulo, onde a ONG Agente Cidadão estocava as doações materiais que recebia para posteriormente redistribuir para entidades sociais da capital paulista. Foi ali que, em parceria com o Agente Cidadão e juntamente com Dalton Martins e outros integrantes do Projeto Metá:Fora - uma "chocadeira colaborativa" que reunia uma centena de pessoas em todo o Brasil - a MetaReciclagem ganhou corpo físico pela primeira vez.
2No terceiro capítulo conto um pouco mais sobre a postura e estrutura do MIT Media Lab, e algumas de suas implicações econômicas e políticas.
3O processo foi documentado no website http://blog.redelabs-org.github.io (acessado em 25/02/2014).
4Foi a primeira vez em que me chamaram de "curador" de alguma coisa, um termo originário das artes que, percebi então, me incomodava. Lembro de conversar com um amigo artista sobre o desconforto que eu sentia em me identificar com o campo da "arte eletrônica". Me tomava a síndrome do impostor, uma vez que não tenho formação artística, e não me considero qualificado para debater tais temas apropriadamente. Ainda assim, uma das maneiras com as quais outras pessoas descrevem projetos semelhantes àqueles aos quais costumo dedicar meu tempo é dentro do campo da arte. Isso não diminui meu desconforto, mas oferece ao menos uma série de justificativas que se legitimam na própria construção da narrativa. Assim, sou certamente um estranho dentro do universo da arte, mas é esse mesmo universo que me possibilita desenvolver os projetos que atraem meu interesse.
5Logo nos primeiros dias do mestrado, à posição de forasteiro no mundo da arte somou-se o estranhamento com o mundo acadêmico. Entre as minhas anotações dos primeiros dias de aulas, fiz alguns apontamentos sobre palavras e expressões que ali adquiriam significado ou importância especiais. "Artigo", "Ciência", "Seminário", "Ler um capítulo", "Dar aulas", "Produtividade", "Minha monografia...". Percebi relações de poder bastante claras também, na posição das carteiras submissas ao professor, na determinação de leituras, tarefas e questões, na importância dos títulos. Após quase dez anos fora de uma rotina universitária, precisei me reacostumar com muitas coisas. Todos os textos que produzi durante a pesquisa (inclusive esta dissertação) foram construídos sob a tensão entre meu ritmo de escrita anterior ao retorno à Universidade, que hoje me parece mais fluido embora superficial, e a necessidade presente de compor um texto que possua alguma relevância - na academia e fora dela. Tento ir atrás de um espaço híbrido entre arte, ciência e transformação social. A ideia de laboratório me parece suficientemente flexível para receber algumas dessas inquietações.