HackPraxis Boom 2011 – parte 1.
Hacklabs, Bricolabs, Redelabs, Medialabs, PósLabs em um Movimento dos Sem Satélite.
Arte, ciência, indústria, manufatura, reciclagem, ecologias e consequências.
Propostas pragmáticas de convergência por Glerm Soares.
Este é um texto em primeira pessoa almejando esta primeira e plural “nós”. Uma carta onde vou propor uma convergência de atividades onde gostaria e poderia colaborar com minha atual pesquisa e repertório. Mas é também uma sugestão aberta, para pensarmos um “gênero de atividade” como práxis, ritual, ciência, indústria, identidade, linguagem em comum.
Quero aqui também ajudar a pensar e propor atividades pontes entre estas especialidades e a possibilidade destes pesquisadores, produtores e sobretudo criadores interagirem com uma cultura de Hacklabs que acontece globalmente em vários níveis: desde o tal improviso reciclado “gambiarra” até os “astronautas autônomos”. O caminho passional e comprometido desta interação parece-nos o mais honesto e crítico. Mas como podemos trabalhar no limite entre o espetáculo do entretenimento neutralizando a profundidade das reflexões, a pressa e frieza progressista da indústria e comércio atropelando a ecologia, a autorreferência axiomática e hierarquia autoral e a burocracia institucional da ciência?
Práticas, logística, código, música, vertigem, corpo... Para construirmos ambientes onde aprendemos, celebramos, revelamos urgências mas também tornamos possível a construção de objetos pós-industriais menos ingênuos quanto a nossa potência de comunicar globalmente... e o que comunicar? O que contar e cantar? O que sublimar? O que reclamar? Pra saber o que e como precisamos estar abertos e atentos.
Vou iniciar de maneira bem propositiva convidando todos interessados para a participação em algumas atividades este ano, e ir inserindo algumas dúvidas que surgiram da tentativa de traçar este mapa.
- Interfaces humano-computador em novos rituais audiovisuais computacionais
A construção de instrumentos em hardware e software livre trouxeram-me alguns caminhos que gostaria de propor tanto como técnica como uma análise inicial de contextos e sítios específicos para pensar computabilidade da arte e arte da computabilidade, e todas epifanias derivadas direta ou indiretamente destes percursos.
1.a) A diferença entre acidente programado, interação errante, e programação.
A computação e a eletrônica por “tentativa e erro” são certamente a mais utilizada e inevitável das descobertas e lida diretamente com intuição e curiosidade. Temos exemplos do chamado “circuit bending” (curto-circuito intencionalmente musical) e brincadeiras com a aleatoriedade de acesso via software de dispositivos de vídeo, áudio e toda sorte de entrada e saída do computador sendo usados como o improviso musical ou a velha metáfora da pintura abstrata performática abrindo liberdades para a desmistificação deste meio para o além do “meio-como-mensagem”, mas como exercício primeiro de contato corporal com os códigos e desconstrução da indústria.
1.b) Quando entramos na exploração de protocolos ou formatos de arquivos, entramos na problemática dos padrões de interação do usuário e suas maneiras de reaproveitar esta informação. No caso da música, por exemplo, ele estará previsto como alguém que quer gravar sons, reproduzir, sintetizar (criar sons a partir de cálculos da física dos auto-falantes), ter alguma representação visual destas composições, preparar uma interação em tempo real com estas interfaces. Como mapear um movimento gestual de um acorde num instrumento similar a algo acústico porém podendo depois atribuir qualquer som a este gesto? Ou como converter um gesto feito em frente a uma câmera em um evento sonoro relacionado? Como sincronizar motores, impressoras, dispositivos mecatrônicos com ritmos? Esta conversa entre diferentes padrões de entrada e saída dos dados demanda uma escolha por protocolos e esta escolha também está condicionada ao nível de liberdade que você quer ter de acesso e redistribuição de códigos. Começamos aqui a pensar software e hardware livre... Mas também a influência de interesses de engenharia reversa nesse processo de disponibilidade dos drivers, ou a fabricação de drivers livres já como política industrial de hardware... Quem faz seu driver de webcam, joystick, placa de som, placa de vídeo? Como isso funciona? Como essa programação poderia ser “subvertida” pra criar novas linguagens se você pudesse ler este código? Como você poderia criar hardwares livres a partir destas necessidades? E se você pagar por algo fechado – quais suas restrições?
Surge disso uma fundamental pergunta:
- Existe ou existirá mesmo um Hardware Livre?
A ideia e importância do Software Livre para uma cultura mais colaborativa e menos alienada dos meios de produção e comunicação já está bastante em pauta no Brasil e várias outras fronteiras que temos interagido. Tomarei como óbvia a necessidade de sua inclusão num ciclo saudável de construção de uma práxis de código computacional como cultura. Quero aprofundar um pouco mais a possibilidade conceitual e aplicada de Hardware Livre.
No momento o Hardware Livre está sendo pensado sobretudo como um objeto de eletrônica, que geralmente é um circuito impresso em trilhas de cobre, que utiliza microchips diversos (geralmente microchips que possuem bibliotecas livres para compilação do acesso a suas instruções básicas ) onde seu “esquemático” e em alguns casos o próprio arquivo de impressão industrial ou semi-industrial da placa é disponibilizado abertamente, com licença para cópia, reprodução e recombinação deste esquemático. Licenças como GPL e CC tem sido utilizadas em hardware livre. Mas algumas tentativas de criar padrões específicos para isso e talvez também para formatos, protocolos e outras ideias para um cenário mais conceitual desta prática têm sido tentados.
Um esforço recente de estabelecer este conceso é o Open Source Hardware http://freedomdefined.org/OSHW{target=”_blank”} .
Uma coisa importante que gostaria de analisar nisto são as dificuldades industriais desta situação no caso de um artista ou hacklab situado em algum país, cidade ou fronteira com acesso limitado a indústria de microchips e processadores especializados.
Pensemos então novamente como exemplo na continuidade de nosso projeto prático “fio condutor” da construção de interfaces audiovisuais gestuais em hardware livre e seus softwares livres poderia também ajudar nesta reflexão.
Para nosso projeto podemos partir de um novo hardware onde temos consciência de todo o projeto e o tornamos de esquemático aberto, altamente reproduzível por qualquer pessoa. Qualquer pessoa?
Começa aí nossa dificuldade no Brasil (e em vários outros países menos industrializados). Poderíamos iniciar algum estudo com algum projeto de hardware livre como Arduino, BeagleBoard, Chumby Board ou outras onde temos licenças de cópia e uso e uma comunidade acessível discutindo códigos, ideias etc. Porém a primeira dificuldade é que teremos que importar essas placas sempre que o projeto for novo ou se resolvemos fazer os microchips de instrução do processador terão que ser importados ou com muita sorte você encontrará alguém vendendo pela internet por um preço que compense, mas certamente não encontrará em alguma loja da sua esquina feitas para quem conserta controles de portão e televisores. Isso se houver uma loja de eletrônica na sua cidade. Isso não torna o processo “impossível”, mas dificulta e encarece algo que poderia entrar na cultura como uma nova linguagem pra ser mimetizada imediatamente. Não estou nem questionando aplicações diretas em produção de larga escala ou outro tipo de aplicação mais de engenharia, onde o viés é muito mais de oferta e procura de consumo de tecnologias. Estamos aqui sempre falando de Hacklabs como um vetor cultural de ciência com liberdade artística e intelectual e vice-versa.
Fica aqui então uma primeira reflexão sobre esta “liberdade” do hardware. Que solução podia ser exigida de uma política pública? Isenção de impostos para hacklabs? Fábricas de microchips mais próximas? Como isso pode ser feito de maneira ecologicamente inteligente?
Outra coisa para pensar – existem hoje padrões para se desenhar instruções de máquina básica em microchips que são bastante documentados – onde produzi-los? Poderíamos ter algum tipo de “birô” que imprime chips como quem manda imprimir cópias de um cartaz colorido, em pequena escala? A mesma pergunta para os esquemáticos, onde começa existir esse tipo de serviço mas ainda bastante caro para objetivos menos comerciais. Nos EUA e alguns lugares da Europa é comum, por exemplo, um cenário de pessoas criando “periféricos” de Arduino (chamados “shields”), com licenças livres e em pequena escala, muitas vezes para vender para amigos ou outros interessados em contato para um estudo de algo bem específico. Em outros casos encontramos projetos mais artesanais resultado de residência artística (como nos projetos de microresearch) ou projetos de hardware usando especificações de protocolo em implementação e sua divulgação de esquemático incentivando o hardware livre, acabam por incentivar a adoção do protocolo – como no caso do “digital radio mondiale” (DRM) utilizado pelo hardware de digitalização e transmissão de rádio digital ETTUS .
Uma solução fácil por estas bandas é a que vai para o lado da “gambiarra”, o que dentro de nossas redes próximas acaba até estetizada, como se fosse um ato intencional de escolha. Dentro do mesmo projeto de construção de instrumentos recentemente me dei conta, por exemplo, que ao invés de estudar com um kit de desenvolvimento para protocolo wi-fi ou outro como tornar o instrumento musical sem fio, para um primeiro estudo seria muito mais rápido, 1/3 mais barato e com um protocolo bastante divulgado por causa dos videogames reciclar um joystick wireless destes que começam aparecer como “clones” das grandes marcas. Mas como esse processo poderia ser reproduzível em uma escala um pouco maior? Nessa instância você fica dependente do modelo x ou y que você precisa reciclar, modelos fechados onde você nunca terá uma documentação muita detalhada e sim no máximo alguma engenharia reversa disponível a deriva na rede. Um exemplo que tornou-se até “mainstream” deste tipo de gambiarra é o uso da câmera de videogames Kinect para detecção de movimentos e contorno de objetos implementada em hardware. Pela alta procura deste dispositivo, sua engenharia reversa tem gerado vários projetos artísticos derivados. A Microsoft já previa esta possibilidade e deixou o caminho aberto – com certeza não por generosidade e nem como algo declaradamente hardware livre, mas já experimentando alguma aproximação com este “nicho”. Na verdade seria muito mais interessante se fosse um dispositivo altamente documentado como hardware livre desde projeto inicial.
Bom lembrar, entretanto, que isso de buscar meios reciclados de acesso não pode tornar-se uma desculpa para continuarmos à margem de discussões atualizadas sobre padrões industriais e meios de adaptar a indústria a um mundo mais humanizado, justificando com um conformismo este gosto de louvar o “jeitinho” e querer tornar isso de acabar cuidando do lixo tecnológico dos “avançados” como uma espécie de “ethos”. Precariedade não é saudável nem sustentável. Entra aí toda a reflexão em ecologia da obsolescência programada, muito discutida em comunidades como Metareciclagem e Bricolabs. Mas como poderíamos também ter papel mais ativo na criação e manutenção destes ciclos?
Para ser pensado também é a diferença de uso de chips cada vez menores pela industria. Os circuitos estão ficando cada vez menos visíveis e manipuláveis, mais monolíticos. Isso potencializa a complexidade computacional em objetos cada vez mais adaptados a ao cotidiano, mas dificulta a manipulação, estudo e possibilidade de manufatura artesanal nestes objetos. Caímos também aí na problemática da obsolescência programada novamente. O pragmatismo da diferença entre fazer um objeto para ser reproduzido em escala e ergonomia projetada versus um objeto didático, efêmero, instável mas de artesanato mais tátil.
Ettiene Delacroix circulou muito por aqui com seus artesanatos digitais em chips z80 e memórias EPROM de bios de placa mães garimpados do lixo tecnológico da “web 1.0” e da arpanet pré-histórica. Quem realmente conseguiu atentar para todo minimalismo e objetividade envolvido em reinventar a roda? Não é à toa que em torno de toda sua pesquisa ele montava uma estrutura totêmica de escultura para sensibilizar quanto a outras escalas, mas o que havia nos alicerces? A invisibilidade do projeto industrial da computabilidade não é glamourosa como a nova tela touch screen, um robô que canta seus posts do facebook, mas contém um profundidade molecular capaz de revelar potências impensáveis.
Queremos então fazer música para fazer chips ou fazer chips que fazem música? Chips que fazem chips? Pensar ciclos de chips cantando a música sobre a música? A intenção é estar além.
Eu diria particularmente que queria pensar a computação como penso a música: assobiá-la, ou ainda, ouvi-la no sopro do silêncio.
Digamos que podemos a partir de uma série de conhecimentos que vamos trazer na exploração de possibilidades de [1.a] e [1.b] construir nossa própria “Orquestra” de interfaces que vão nos permitir novas linguagens
O que virá desta pós-Orquestra? O pós-cinema? O cinema pós-industrial? A pós instalação multimídia e o deslumbre com um condicionamento ergonômico do gesto e do consumo de gadgets? Que tal o “Cotidiano Sensitivo”[*] de uma internet-das-coisas além da rota tcp/ip? O “Panophonos”[*] sinestésico da ruidocracia - “A bomba atômica sonora que vai mudar o mundo”[*].
E para compartilhar tudo isso uma rede mais nossa... Continua então nossa busca pelo satélite que trará nossa rota de uma internet conceitualmente prevista como rede de compartilhamentento, onde todo conhecimento é livre e a pirataria torna-se desnecessária, pois a dádiva move a rede.
Ou seria esta uma busca pelo mais cotidiano? Pela flauta de bambu? Mas homem não quer parar de sonhar com a colonização de Marte com a expansão do universo... Como então a Terra e sua Lua interage sem explodir neste big bang eterno que move esta humanidade?
Uma convergência possível além de fronteiras, linguagens, preconceitos e indústria. Uma cibercultura menos deslumbrada pelo objeto tecnológico como status, “sofisticação” das mídias e condicionamento do gesto “produtivo” e mais consciente de caminhos a trilhar para uma sociedade melhor, para uma crítica mais eficaz das opressões, para uma imaginação mais fantástica, para uma democratização das comunicações.
Um discurso sobre um método interdependente para uma computação revelada em ritmo, poesia, ruído e um tempo de sístoles e diástoles compartilhadas. Estéticas possíveis. Éticas aplicadas. Políticas do Afeto. Calendários. Encontros. Hacking. Praxis. Boom...!
…continua…
notas
- Cotidiano Sensitivo: http://cotidianosensitivo.info/{target=”_blank”}
- Panophonos: http://pt.scribd.com/doc/32338852/GIULIANO-OBICI-Condicao-da-escuta-Midias-e-Territorios-Sonoros{target=”_blank”}
- Gnoise: http://finetanks.com/records/ribeiro/GNOISE_0.11.pdf{target=”_blank”} /